Despertar no Sonho: sonhos lúcidos e Ioga do sonhos

Matéria publicada originalmente na Revista Tricycle

Durante séculos, as pessoas ao redor do mundo têm relatado experiências de sonhos lúcidos, nos quais eles sabem que estão sonhando, enquanto eles estão no estado de sonho. Mas até recentemente, cerca de 30 anos atrás (cem anos após o estudo científico da mente começar) não existia nenhuma evidência científica de que qualquer um poderia ser consciente durante o sonho, e a maioria dos psicólogos ainda estavam convencidos de que os sonhos lúcidos eram impossíveis. Haviam razões filosóficas para tal ceticismo: afinal, como alguém poderia estar acordado e dormindo ao mesmo tempo?

Isso simplesmente não fazia qualquer sentido, especialmente para aqueles que nunca tiveram um sonho lúcido e não podiam imaginar qualquer outra pessoa tendo um.

Autor e psicofisiologista, Stephen LaBerge foi uma das muitas pessoas que tinham ocasionalmente apresentados sonhos lúcidos desde a infância, e quando jovem, concluiu que esta seria uma área fascinante de pesquisa. Em 1977, iniciou seus estudos de pós-graduação neste novo campo da Universidade de Stanford, desenvolvendo gradualmente métodos para induzir sonhos lúcidos e gravar suas próprias experiências pessoais, resultando em quase nove centenas de relatos de sonhos lúcidos ao longo dos sete anos seguintes. Mas como convencer seus colegas cientistas que realmente podemos ficar lúcidos durante nossos sonhos?

O desafio, ele reconheceu, era se comunicar durante um sonho lúcido com as pessoas ”acordadas”. Um obstáculo foi que durante o sono, a maioria do corpo do sonhador está paralisado, mas os psicólogos já tinham descoberto que os olhos se movem durante o sonho e que os movimentos dos olhos de uma pessoa dormindo correspondem aos movimentos dos olhos da pessoa dentro de um sonho. Em um famoso estudo feito pela Universidade de Stanford pelo pesquisador do sono William C. Dement,  um sonhador foi despertado depois de fazer uma série de cerca de duas dezenas de movimentos oculares horizontais regulares. Quando perguntado o que ele estava sonhando, nesse momento, ele respondeu que estava assistindo a uma longa disputa em um jogo de ping-pong! Isso deu a LaBerge uma idéia. Se ele pudesse ficar lúcido em um sonho, enquanto seus colegas cientistas estavam monitorando seus estados cerebrais e movimentos oculares rápidos para garantir que ele estava na verdade sonhando, ele poderia, então, enviar sinais para eles, movendo seus olhos no sonho de uma forma previamente combinada. Já que seus olhos físicos iriam acompanhar da mesma forma como os olhos no sonho, ele poderia fornecer a evidência objetiva de que ele sabia que estava sonhando. No final, LaBerge foi bem-sucedido em fornecer tal prova empírica de sonho lúcido. Sua obra e outros estudos relacionados são hoje aceitos no seio da comunidade científica ocidental, e os pesquisadores científicos no campo dos sonhos lúcidos criaram uma série de métodos engenhosos para ajudar as pessoas comuns despertar em seus sonhos.

Uma surpreendente gama de possibilidades é aberta ao sonhador lúcido que está interessado em explorar a natureza da mente. Você pode usar sonhos lúcidos simplesmente para fins recreativos, com a gama de possíveis eventos no sonho limitados apenas por sua imaginação. Em seguida, conforme você se aprofunda em atividades mais significativas, você pode aprender a resolver problemas psicológicos no sonho ou explorar a maleabilidade do sonho, alterando seu conteúdo à vontade. Ou talvez você vai escolher tocar para as profundezas da sua própria sabedoria intuitiva. Você pode, por exemplo, invocar o seu próprio arquétipo de sabedoria – um filósofo grego, a deusa da sabedoria, ou qualquer figura que representa seu ideal de sabedoria. Conforme você conversa com essa pessoa em seu sonho, você não está acessando qualquer fonte externa de conhecimento, mas desenterrando recursos escondidos dentro do seu sub-consciente que você normalmente não têm acesso.

Para além destas explorações da mente, o sonho lúcido é um fórum ideal para examinar a natureza essencial dos sonhos, da realidade e da relação entre os estados de sonho e vigília. De acordo com recente pesquisa científica, a principal diferença entre o sonho e imaginação, e o estado ”acordado”  é que as experiências de vigília estão diretamente ocasionadas por estímulos do mundo exterior, enquanto a imaginação e sonho são criações livres, sem restrições ou influências do meio físico e do ambiente. De acordo com o pensamento budista, no entanto, a ciência ocidental diz apenas metade da história. Budismo e ciência concordam que, apesar de visões, sons e sensações táteis do mundo ao nosso redor parecerem existir ”lá fora”, eles não têm existência para além da nossa consciência perceptiva deles. Mas o budismo acrescenta que massa, energia, espaço e tempo como são concebidos pela mente humana, também não têm existência para além da nossa percepção conceitual deles, não mais do que os nossos sonhos à noite. Todas as aparências só existem em relação à mente que os experimenta, e todos os estados mentais surgem em relação aos fenômenos vividos. Estamos vivendo em um universo participativo, sem sujeitos ou objetos absolutos. Com esta ênfase principal sobre a natureza ilusória da realidade tanto acordada quanto em sonhos, os budistas tibetanos formularam um sistema de ensinamentos conhecidos como ioga dos sonhos, a mais de mil anos atrás, que usa o poder do sonho lúcido para quebrar as nossas ilusões e abrir a porta para a iluminação.

No ioga dos sonhos, uma vez que você aprende a reconhecer o estado de sonho, (através de sonhos lúcidos), você pode começar a explorar a natureza da psique – sua própria consciência nesta vida. Em um nível mais fundamental, você investiga a natureza da consciência substrato (alayavijnana), o continuum de consciência individual a partir do qual a psique se desenvolve durante a gestação e em que se dissolve com a morte. No estágio mais elevado da ioga dos sonhos, a natureza última, “luminosidade” de consciência, ou a consciência imaculada (rigpa), é revelada; essa realização é central para a escola tibetana conhecida como Grande Perfeição, o Dzogchen. Cada estágio da prática da ioga dos sonhos leva a níveis cada vez mais profundos de auto-conhecimento, resultando finalmente em si mesmo o estado de Buda. Os ensinamentos Dzongchen declaram que a única diferença entre os budas e seres sencientes comuns é que o os Budas sabem quem eles são, e os seres sencientes comuns não.

A prática durante o dia do ioga do sonhos, se concentra em manter a consciência desperta de que tudo o que experimentamos em torno de nós é ilusório. Embora as coisas parecem estar ”lá fora’’, e que parecem existir de forma independente (sem depender da percepção ou concepção de um sujeito), tudo é “vazio” de tal natureza própria inerente e de um ”eu”. A separação absoluta de Descartes entre sujeito e objeto, que tem exercido um efeito enorme e persistente na ciência ocidental, é totalmente rejeitada e refutada no budismo. Todas as coisas, mentais e físicas, consistem em eventos relacionados dependentes, (ler sobre cooriginação dependente) sem demarcações absolutas entre sujeito e objeto, mente e matéria, ou externo e interno.

A prática noturna da ioga dos sonhos começa com o reconhecimento de que você está sonhando e, em seguida, sustentar essa consciência. Para alcançar essa estabilidade de atenção e clareza, é muito útil começar pela prática de shamata (palavra que literalmente significa “quiessência”) para explorar em primeira mão a natureza da mente. Tais práticas conduzem a estados avançados de samadhi, ou concentração mental, onde a pessoa é capaz de focar com atenção inabalável um único objeto, tanto durante o dia e antes de dormir. Depois de estabilizada a sua capacidade de estar consciente enquanto você está sonhando, você pode avançar para a segunda fase, na qual você aprende a controlar e transformar o conteúdo dos seus sonhos. Esta não é apenas uma viagem de ego, vendo o quanto você pode dominar seus sonhos. Pelo contrário, é uma maneira prática de investigar a natureza maleável de seus sonhos e de entender mais e mais profundamente como ilusórios que eles realmente são.

Por exemplo, você pode definir a você a tarefa de atravessar paredes. Afinal de contas, as paredes são feitas do material dos sonhos, então por que o seu corpo de sonho não poderia ser capaz atravessar uma parede de sonho, sem obstrução? Mas quando você tentar fazer isso, você pode notar, para a sua surpresa, que você pode ficar impedido na metade da parede! Isso mostra que há toda uma gama de graus de lucidez. Você pode saber que você está sonhando, mas esse conhecimento ainda não foi incorporado o suficiente para você transformar qualquer coisa no sonho como você bem desejar. (Você ainda pode ser capaz de voar, uma das mais fáceis habilidades paranormais de alcançar  em um sonho lúcido.) Nesta segunda fase do ioga dos sonhos, como uma criança explorando o mundo ”acordado” real, você investiga o mundo do sonho, interagindo com seu ambiente, descobrindo através da experiência como todos os objetos do sonho surgem em relação ao sujeito da experiência.

O treinamento sustentado da ioga dos sonhos é destinado a incitar o seu subconsciente, ocasionalmente, resultando em sonhos bizarros e aterrorizantes. Estes fornecem uma oportunidade especial para aprender a superar o medo e obter insights sobre a natureza ilusória dos sonhos, a terceira fase desta prática. Sempre que você se sente ameaçado em um sonho, talvez devido a animais ferozes, fogo, ou maremotos- aprofunde a sua consciência e percepção, reconhecendo a natureza do sonho se perguntando: “Como podem tais aparições ilusórias possivelmente machucar meu ”eu” ilusório?” Então, permita ser atacado pelo que te ameaça, queimado pelo fogo, ou se afogar na água. Tudo isso é como um arco-íris agredindo outro arco-íris, e na medida em que você reconhece a natureza ilusória de tudo no sonho, não há nenhuma maneira que você pode ser machucado.

Um sonho lúcido lhe fornece um laboratório perfeito para explorar a natureza da mente, porque tudo o que você experimentar no sonho consiste apenas em manifestações da consciência. Segundo o budismo, a consciência tem duas características definidoras: luminosidade e cognição. “Luminosidade” refere-se à capacidade da mente para criar, ou iluminar, as aparências. Conforme você investiga a natureza das aparências no sonho, você começa a compreender o potencial luminoso da mente. Então, enquanto mantém a consciência de que você está dormindo, você pode deixar o cenário do sonho desaparecer, deixando apenas um espaço vazio de consciência sem nenhum objeto. Ai, você fica com nada além do reconhecimento da consciência, a consciência sem nenhum objeto que não ela própria, a consciência que repousa nela mesma.  No Dzogchen, isto é entendido como sendo a consciência substrato, que se caracteriza por três qualidades: bem-aventurança, luminosidade, e não-conceitualização. Penetrando a ilusão ainda mais profundamente, você vai entrar na dimensão mais profunda da consciência, conhecida como rigpa, ou a consciência prístina.

De acordo com os ensinamentos Dzogchen, assim como o mundo dos sonhos emerge do espaço relativo da consciência substrato, todos os mundos de experiência em última análise, surgem do reino não-dual do espaço absoluto dos fenômenos (dharmadhatu) e consciência primordial (jnana). O ioga dos sonhos fornece um caminho para explorar e despertar para as profundezas da consciência e do seu papel no mundo natural. Quando perguntado que tipo de ser que ele era, um ser humano ou um deus, o Buda respondeu simplesmente: “Estou desperto.” Em nossos sonhos inconscientes, estamos imersos na ilusão de que estamos acordados, e nós sofremos por nos apegar por tudo no sonho como sendo absolutamente real. Da mesma forma, estamos aflitos durante o dia por considerar nós mesmos e tudo ao nosso redor como separados e desconectados. Imagine a bem-aventurança de se tornar lúcido em todos os momentos, percebendo todas as coisas como displays luminosos da dimensão mais profunda da nossa própria consciência. Esta é a verdade que nos liberta.

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Acorde! 5 métodos para induzir sonhos lúcidos

  1. Note eventos que são impossíveis de acontecer quando você esta acordado. Alguma coisa está estranha – muito estranha! E de repente você percebe que deve estar sonhando! Um momento você está em Londres, e no momento seguinte você está em Nova York. Você está envolvido em uma conversa com um velho amigo, e um momento depois, ele se transformou em um poodle mastigando um osso. Ou você pode estar no meio de um pesadelo estranho, e logo você percebe que é muito bizarro para ser verdade, você reconhece que você está sonhando.
  2. Prepare-se, notando alguma coisa estranha ou anomalia que ocorra durante o dia. Sempre que ocorrerem, pergunte a si mesmo: “Eu estou sonhando?” Se você perguntar a si mesmo o suficiente, eventualmente, a resposta pode ser sim.
  3. Se você quer saber se você está sonhando ou acordado, encontre algo para ler. Leia e memorize uma linha, tire o livro de sua vista e, em seguida, olhe para ele novamente. Psicólogos descobriram que quando você está sonhando as mudanças nos materiais ocorrem na segunda leitura 75 por cento do tempo. Se você lê-lo pela terceira vez, as chances de ele mudar são 95 por cento.
  4. Induzir sonhos lúcidos pelo poder da “memória prospectiva.” Quando acordados, podemos lembrar de fazer as coisas no futuro, como lembrar de fazer as compras no caminho do trabalho para casa. Da mesma forma, ao longo do dia, você pode desenvolver uma forte vontade easpiração de reconhecer que você está sonhando depois de ter caído no sono. Você pode direcionar a sua memória prospectiva para reconhecer coisas ou eventos em um sonho que são muito estranhos para ocorrer no estado de vigília, definindo-as como sinais de que você está sonhando.
  5. Adormecer sem perder a consciência. Este é talvez o método mais sutil para a indução de sonhos lúcidos; o truque é manter a clareza da consciência enquanto você relaxa e cair no sono. Lentamente, seus sentidos físicos se desligam, e você pode conscientemente passar por uma fase de consciência sem conteúdo. Este é o estado de sono lúcido sem sonhos. A partir desse estado, um sonho pode emergir, e você poderá reconhecê-lo pelo que ele é, desde o início. O desafio agora é manter tanto o sonho, quanto seu reconhecimento de que você está sonhando, e isso leva um pouco de prática. Depois de ter estabilizado o seu sonho lúcido, a verdadeira aventura começa.

Na semana passada (De 16 a 23 de janeiro), Alan Wallace esteve no CEBB Viamão para conduzir um retiro sobre Ioga dos Sonhos. Neste retiro de uma semana, B. Alan Wallace ofereceu a transmissão oral e o comentário às notas do texto raiz sobre ioga do sonhos de Terdak Lingpa (1646-1714), um dos maiores reveladores de tesouros (tertön) da Escola Nyingma e fundador do Monastério de Mindroling. Terdak Lingpa foi discípulo e também professor do quinto Dalai Lama, e essas notas foram escritas por seu irmão Minling Lochen Dharmashri (1654-1718), um dos maiores eruditos da Escola Nyingma. O texto raiz e as notas oferecem instruções práticas profundas e sucintas para aprender como tornar-se lúcido com respeito aos próprios sonhos – reconhecendo-os como sonhos – e usando-os como uma base para a experiência da natureza vazia e ilusória de todos os fenômenos, e para atravessar diretamente até a dimensão mais profunda da consciência, a sabedoria prístina. Alan Wallace recebeu esses ensinamentos de seu Lama, o Venerável Gyatrul Rinpoche, que o autorizou a passar esta transmissão e o comentário oral. O retiro foi todo transmitido ao vivo, e você pode assisti-lo na integra, clicando aqui.

Também, você pode aprender mais sobre o assunto lendo o livro ”Despertar No Sonho – Sonhos Lúcidos E Ioga Tibetana Dos Sonhos Para Insight E A Transformação”, disponível para compra em diversas livrarias.


Outro mestre que trata do mesmo assunto, esteve no Brasil em fevereiro.  Tenzin  Wangyal Rinpoche é fundador do Ligmincha Institute, dedicado a preservar os antigos ensinamentos tibetanos; mora nos Estados Unidos desde 1991 e tem centros em mais de 20 países, possui uma abordagem contemporânea e impecável. Tem o título de Geshe, o mais elevado grau acadêmico da cultura tibetana.É autor de livros como Os Yogas Tibetanos do Sonho e do Sono,  A Cura através da Forma, da Energia e da Luz, e Despertando o Corpo Sagrado, entre outros.

”O estado de sua mente ao adormecer pode determinar o rumo de seus sonhos e o rumo de sua vida.” Neste vídeo de aproximadamente 10 minutos, Rinpoche explica o propósito da prática ancestral de Yoga dos Sonhos.

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