O SALTO: DESPERTANDO AO INVÉS DE VOLTAR A DORMIR. Pema Chodron

 ALIMENTANDO O LOBO CERTO

            Como seres humanos, temos o potencial de nos libertarmos de  antigos hábitos e também de amar e nos dedicarmos a outras    pessoas. Temos a capacidade de despertar e viver conscientemente,  mas, como devem ter percebido, também temos uma forte  tendência a permanecer adormecidos. È como se estivéssemos sempre em uma encruzilhada, escolhendo sem cessar o caminho a  seguir. A qualquer momento podemos escolher o caminho da  clareza e felicidade ou da confusão e dor.

            Nesse sentido, a fim de fazer uma escolha sábia, muitas pessoas voltam-se para práticas espirituais de diversos tipos, na expectativa de que a vida se ilumine e de que possa encontrar forças para enfrentar as dificuldades. No entanto, nessa busca é crucial ter em mente o contexto mais amplo no qual fazemos essas escolhas de vida: esse é o contexto de nossa amada terra e das circunstâncias difíceis que a envolvem.

            Para muitas pessoas, a prática espiritual representa uma maneira de relaxar e um acesso à paz espiritual. Queremos nos sentir mais calmos, mais concentrados; e com nossas vidas agitadas e estressantes quem poderia nos culpar? Entretanto, temos a responsabilidade de pensar com mais grandeza em nosso cotidiano. Se a prática espiritual é relaxante, se traz alguma paz espiritual, isso é maravilhoso, porém essa satisfação pessoal nos ajuda a interagir com os acontecimentos no mundo? A questão principal é se vivemos de um modo que exacerba a agressão e o egoísmo, ou estamos contribuindo para um equilíbrio mental essencial?

            Muitas pessoas sentem-se profundamente preocupadas com a situação do mundo. Sei que desejam com sinceridade que as circunstâncias mudem e que os seres humanos, no mundo inteiro, libertem-se do sofrimento. Mas pensando com honestidade, será que temos alguma ideia de como pôr em prática essa aspiração em nossas vidas? Percebemos se nossas palavras e ações causam sofrimento? E, mesmo quando reconhecemos que estamos cometendo erros, temos alguma intuição sobre como parar? Essas sempre foram questões importantes, mas agora se tornaram vitais. Esse é o momento em que se livrar de uma situação confusa é mais importante que a felicidade pessoal. Trabalhar nosso eu para termos mais consciência de nossas mentes e emoções talvez seja o único caminho para encontrar soluções que proporcionem o bem-estar de todos os seres e a sobrevivência da terra.

            Pouco depois dos ataques de 11 de setembro de 2001 circulou uma história que ilustra nossa dilema. Um índio norte-americano conversava com o neto sobre violência e a crueldade do mundo. Ele disse que o motivo era a luta de dois lobos em seu coração. Um dos lobos era vingativo e zangado, e o outro, compreensivo e gentil. O jovem perguntou ao avô qual lobo venceria a luta em seu coração. E o avô respondeu: “Aquele que vencer será o que escolhi alimentar.”

            Então, esse é o nosso desafio, o desafio da prática espiritual e o desafio do mundo. Como podemos começar agora, e não mais tarde, a alimentar o lobo certo? Como podemos recorrer à nossa inteligência inata para perceber o que ajuda e o que fere, o que aumenta a agressividade e o que revela nossa bondade e benevolência? Com a economia global caótica e o meio ambiente do planeta em risco, a guerra violenta e a crescente intensidade do sofrimento, chegou o momento em nossas vidas em que precisamos mudar nossa maneira de pensar e fazer tudo que for possível para reverter essa situação. Até mesmo um ligeiro gesto de alimentar o lobo certo ajudará. Agora, mais do que nunca, estamos todos envolvidos em um mesmo contexto.

            A mudança de pensamento e atitude implica um compromisso conosco e com a terra, um compromisso que nos libertará antigos rancores, de não mais evitarmos pessoas, situações e emoções que nos causam desconforto, de não nos apegarmos aos nossos medos, à nossa intolerância e visão restrita, à nossa insensibilidade e hesitação. É o momento de desenvolver confiança em nossa bondade básica e a de nossos irmãos e irmãs na terra; um momento para desenvolver confiança em nossa capacidade de livrar-nos de antigas formas de imobilismo e de escolher com sabedoria. É possível agir desse modo aqui e agora.

            Em nossos encontros cotidianos, podemos viver de uma maneira que ajude esse aprendizado. Quando falamos com alguém de quem não gostamos e não concordamos com sua opinião, seja um membro da família ou um colega de trabalho, temos a tendência de despender uma grande quantidade de energia ao sentir raiva. Porém, nossos ressentimentos e egoísmos, apesar de familiares, não constituem nossa natureza básica. Temos uma aptidão natural para eliminar antigos hábitos. Sabemos como é reconfortante ser gentil, como amar tem o poder de transformar, que alívio sentimos quando nos libertamos de antigos rancores. Com apenas uma pequena mudança de perspectiva, perceberemos que as pessoas agridem e falam coisas desagradáveis pelas mesmas razões que nós. Com senso de humor é possível ver que nossas irmãs e irmãos, nossos parceiros, filhos e colaboradores estão nos deixando loucos do mesmo modo como deixamos os outros loucos.

            O primeiro passo nesse processo de aprendizado é ser honesto com si mesmo. A maioria das pessoas tem sido muito bem-sucedida em aumentar a negatividade e a insistir em que o lobo zangado fique cada vez mais brilhante, enquanto o outro estende os olhos suplicantes. Mas não estamos presos a essa maneira de ser. Quando sentimos ressentimento ou uma emoção forte, reconhecemos que estamos nos exaltando e percebemos que é possível fazer uma escolha consciente entre ser agressivo ou se acalmar. Trata-se de escolher o lobo que queremos alimentar.

            É claro, se pretendemos testar essa abordagem, é preciso ter alguns indicadores. É necessário ter um método para seguir esse caminho da escolha sábia. Esse caminho leva à descoberta de três qualidades do ser humano, três qualidades básicas que sempre estiveram presentes em nós, porém foram enterradas e quase esquecidas. Essas qualidades são a inteligência natural, a cordialidade natural e a abertura natural. Quando digo que o potencial da bondade existe em todos os seres, isso significa que todas as pessoas, em todos os lugares, no mundo inteiro, possuem essas qualidades e podem usá-las para ajudar a si mesmas e aos outros.

            A inteligência natural está sempre acessível. Quando não estamos presos na armadilha da esperança e do medo, sabemos por instinto como agir corretamente. Se não estivermos obscurecendo nossa inteligência com a raiva, autocomiseração ou ansiedade, percebemos o que pode melhorar ou agravar a situação. A intransigência de nossas reações emocionais provoca um comportamento agressivo e palavras irracionais. Desejamos ser felizes e ficar em paz, mas quando nossas emoções vem à tona, de algum modo os métodos que usamos para alcançar essa felicidade só nos fazem mais infelizes. Nossos desejos e ações não estão , em geral, em sincronia. No entanto, temos acesso à inteligência fundamental que pode nos ajudar a solucionar nossos problemas e vez de piorá-los.

            A cordialidade natural é a nossa capacidade compartilhada de amar, de ter empatia e senso de humor. É também nossa capacidade de sentir gratidão, valorização e ternura. É o conjunto do que, com frequência, é chamado de qualidades do coração, inerentes aos seres humanos. A cordialidade natural tem o poder de curar todos os relacionamentos, a relação com nós mesmos, com as pessoas, animais e com tudo que nos deparamos no dia a dia de nossas vidas.

            A terceira qualidade da bondade básica é a abertura natural, a amplidão de nossas mentes. Nossas mentes expandem-se, são flexíveis e curiosas e, portanto, sujeitas a prejulgamentos. Esse é o estado mental antes que afundemos em uma visão baseada no medo, em que todos são inimigos, uma ameaça ou um aliado, alguém de quem gostamos ou não, ou a quem ignoramos. Mas, em sua essência, a mente que temos, que você e eu temos, é aberta e receptiva.

            Podemos nos conectar com essa abertura mental a qualquer momento. Por exemplo, neste momento, por três segundos, pare de ler e faça uma pausa. Se conseguir fazer essa breve pausa, talvez vivencie um instante de pensamento livre.

            Outra maneira de apreciar a abertura natural é pensar em momentos em que sentiu raiva, quando alguém disse ou fez alguma coisa que lhe desagradou, em que quis se vingar ou desabafar. Mas, e se nessas ocasiões tivesse conseguido interromper esse processo, respirar fundo e diminuir o ritmo da reação? Teria, assim, se conectado com a abertura natural. Você é capaz de parar, abrir espaço e fortalecer o lobo da paciência e da coragem, em vez do lobo da agressão e da violência. Quando fazemos uma pausa, nossa inteligência natural quase sempre surge para nos salvar. Temos tempo para refletir: por que queremos dar esse telefonema desagradável, falar algo maldoso, ou beber um drinque ou inalar uma substância nociva, ou qualquer outra coisa do gênero?

            É inegável que queremos agir desse modo porque nesse estado exaltado acreditamos que isso nos trará algum alívio. Que resultará em algum tipo de satisfação, resolução ou conforto: pensamos que nos sentiremos melhor no final. Porém, se pararmos para nos questionar: “Eu me sentirei melhor quando isso terminar?” Ao abrir esse espaço de reflexão, a inteligência natural terá a oportunidade de expressar o que já sabemos: que não nos sentiremos melhor no final. E por que sabemos isso? Por que, acredite ou não, essa não é a primeira vez que sentimos esse impulso, essa mesma estratégia de acionar o piloto automático. Se fizermos uma pesquisa de opinião, é provável que a maioria das pessoas diga que, em suas vidas pessoais, a agressão gera agressão. Ela aumenta aos poucos a raiva e a insatisfação em vez de trazer a paz.

            Se, neste momento, a nossa reação emocional ao nos depararmos com uma determinada pessoa ou ao ouvirmos certas notícias é a de enraivecer-nos, ou ficarmos desanimados, ou outra sensação igualmente extremada, é porque há muito tempo cultivamos esse hábito. No entanto, como meu professor Chögyam Trungpa Rimpoche costumava dizer, podemos abordar nossas vidas como um experimento. No próximo momento, na hora seguinte, somos capazes de escolher fazer uma pausa, diminuir o ritmo, ficar tranquilo por alguns segundos. É possível interromper a cadeia de reação usual, e não se descontrolar da maneira habitual. Não precisamos culpar ninguém, nem a nós mesmos. Quando estamos em uma situação difícil, podemos não estimular o hábito agressivo e observar o que acontece.

            A pausa é muito útil nesse processo. Ela cria um contraste momentâneo entre a total auto absorção e o fato de estar desperto e presente. Pare por alguns segundos, respire fundo e prossiga seu caminho. Isso não é um projeto. Chögyam Trungpa referia-se a essa pausa como um intervalo que interromperá qualquer coisa que esteja fazendo. O mestre budista vietnamita, Thich Nhat Hanh, ensina essa pausa como uma prática consciente. Em seu monastério e nos centros de retiro, em determinados intervalos alguém toca um sino, e, ao ouvir o som, todos param por um breve instante para respirar fundo e conscientemente. Em meio à vida comum, que, em geral, é uma experiência que nos aprisiona, caracterizada por muita discussão interna, faça uma pausa.

            Ao longo do dia, escolha o momento de fazê-la. Talvez seja difícil de se lembrar no início, mas assim que começar a praticá-la, a pausa o alimentará; será preferível a se sentir encurralado.

            As pessoas que acharam esse hábito útil criaram maneiras de inserir pausas em suas vidas ocupadas. Por exemplo, elas colocam uma palavra, um rosto, uma imagem, ou um símbolo no computador, qualquer coisa que funcione como um lembrete. Ou decidem: “Sempre que o telefone tocar, vou fazer uma pausa”. Ou: “Quando ligar meu computador, farei uma pausa”. Ou: “Ao abrir a geladeira, esperar na fila, ou escovar os dentes…”. Você pode usar como lembrete qualquer coisa que aconteça com frequência durante o dia. Não importa o que estiver fazendo, pare por alguns segundos e respire fundo três vezes.

            Algumas pessoas me disseram que acham enervante parar o que estão fazendo. Um homem falou que, quando interrompe uma atividade, tem a sensação de morte. Isso demonstra o poder do hábito. Associamos agir como de costume com segurança, estabilidade e conforto. Sentimos, assim, que temos algo a que nos apegar. Nosso hábito nos impele a mover-nos em alta velocidade, conversando com nós mesmos, e ocupando o espaço. Mas hábitos são como roupas. Podemos vesti-las e tirá-las. No entanto, como bem sabemos, quando nos apegamos às roupas, não queremos tirá-las. Temos a sensação de estarmos expostos demais, nus diante de todos; sentimo-nos perdidos, inseguros, sem saber o que está acontecendo.

            Pensamos que é natural, mesmo sensato, evitar esses sentimentos desagradáveis. Se você decidir, com grande entusiasmo, que todas as vezes que ligar o computador fará uma pausa, poderá objetar: “Bem, agora não posso parar porque estou com pressa e tenho quarenta mil coisas para fazer.” Achamos que essa incapacidade ou relutância em diminuir o ritmo está associada a circunstâncias externas, porque temos vidas muito ocupadas. Mas lhe direi que, nos meus três anos de retiro, descobri que não está associada à falta de tempo. Poderia estar sentada em minha saleta olhando o oceano, com o tempo todo do mundo à minha frente. Porém, ao meditar em silêncio, essa sensação desconfortável me envolvia; sentia que precisava apressar minha sessão para fazer algo mais importante. Quando vivenciei essa experiência, percebi que todos nós temos esse mecanismo de defesa muito arraigado. A sensação é, na verdade, a recusa de estar totalmente presente.

            Em situações extremamente tensas, ou a qualquer momento, podemos nos desvencilhar de nossos hábitos baseados no medo fazendo apenas uma pausa. Assim, abrimos espaço para contatar a abertura natural de nossa mente e deixamos nossa inteligência natural emergir. A inteligência natural sabe, por intuição, o que nos acalmará e o que nos agitará ainda mais; essa pode ser uma informação que nos salvará a vida.

            Quando fazemos uma pausa, também propiciamos a oportunidade de contatar nossa cordialidade natural. No momento em que as qualidades do coração despertam-se, elas interrompem nossa negatividade como nenhum outro recurso. Um soldado no Iraque contou a seguinte história: em um dia muito bonito, ele viu de novo seus colegas soldados, pessoas de quem gostava, explodirem no ar. E, mais uma vez, ele e todos os outros em sua divisão desejaram se vingar. Quando localizaram alguns iraquianos que, provavelmente, eram responsáveis pela morte de seus amigos, entraram na casa escura deles, e por causa da raiva e da situação claustrofóbica em que respiravam violência, os soldados expressavam sua frustação espancando os homens.

            Então, quando iluminaram os rostos dos prisioneiros com a lanterna, viram que um deles era um menino com síndrome de Down.

            Esse soldado americano tinha um filho com síndrome de Down. A visão do garoto partiu seu coração e, de repente, percebeu a situação de uma forma diferente. Sentiu o medo do menino e viu que os iraquianos eram seres humanos iguais a ele. Seu bom coração era forte o suficiente para interromper seu ódio contido, e parou de brutalizá-los. Em um momento de compaixão natural, sua perspectiva da guerra e do que estava fazendo mudou.

            Em geral, a maioria da população do mundo é incapaz de perceber quando está prestes a explodir, ou a pensar que é importante diminuir o ritmo da reação em cadeia. Em grande parte dos casos, a energia crescente traduz-se rapidamente em reações e discursos agressivos. No entanto, a inteligência, a cordialidade e a abertura estão sempre acessíveis. Se tivermos consciência das circunstâncias à nossa volta, podemos parar e revelar essas qualidades humanas básicas. O desejo de vingança, uma mente preconceituosa, tudo isso é temporário e passível de ser eliminado. Não é um estado permanente. Como Chögyam Trungpa dizia, “O equilíbrio mental é permanente, a neurose, temporária.”

            A fim de encarar com honestidade a dor em nossas vidas e os problemas do mundo, vamos começar a olhar com compaixão e sinceridade para nossas mentes. Podemos ficar íntimos com a mente do ódio, a mente que polariza, a mente que transforma alguém em “outro” moralmente condenável e com o comportamento incorreto. Descobrimos com grande ternura o lobo zangado, hostil, que não perdoa. Ao longo do tempo, essa parte de nosso ser torna-se familiar, porém não mais a alimentarmos. Em vez disso, somos capazes de escolher alimentar a receptividade, inteligência e cordialidade. Essa escolha, essas atitudes e ações subsequentes assemelham-se a um remédio que tem o potencial de curar qualquer sofrimento.

 O APRENDIZADO DA PERMANÊNCIA

 
O foco essencial desse caminho da escolha sábia, do treinamento para  diminuir o ritmo da agressão em contínuo crescimento, é aprender a estar  presente. Fazer pausas bem curtas durante o dia é uma maneira que  quase não requer esforço para atingir esse caminho. Por alguns  segundos, podemos estar presentes. A meditação é outro modo de  treinar o aprendizado da permanência, ou, como um aluno disse  com mais perspicácia, aprender a voltar ao momento presente. Na  realidade, qualquer pessoa que já tenha tentado meditar percebe  muito rápido que poucas vezes estamos totalmente presentes.   Lembro-me de quando recebi pela primeira vez uma orientação de como meditar.  Parecia tão simples: sente-se, coloque-se em uma posição confortável, e respire conscientemente. Quando a mente devanear, retorne com suavidade e concentre-se em sua respiração. Pensei, “Isso será fácil”. Então, alguém bateu em um gongo marcando o início da meditação. Só descobri que divagara sem me concentrar na respiração quando bateram o gongo de novo para encerrar a sessão. Passei o tempo inteiro com o pensamento perdido.

            Na ocasião, pensei que era alguma falha minha, e se persistisse na meditação logo a faria com perfeição, atenta a cada respiração. Talvez, às vezes, eu me distraísse com alguma coisa na maior parte do tempo queria estar presente. Passaram-se cerca de 30 anos desde então. Algumas vezes, minha mente está inquieta. Em outras, está tranquila. Às vezes, a energia agita-se. Algumas vezes, acalma-se. Tantas coisas acontecem quando meditamos, desde pensamentos, diminuição de respiração a imagens visuais, desconforto físico e angústia para atingir a máxima vivência. Tudo isso, acontece, e a atitude básica é: “Nada de especial”. O ponto decisivo é que, durante todo esse processo, exercitamo-nos a sermos abertos e receptivos a qualquer coisa que surgir.

            Observei o seguinte nas pessoas atentas: elas têm plena consciência do que acontece em torno. Suas mentes não devaneiam. Elas permanecem alertas no caos, no silêncio, em um parque de diversões, em um pronto-socorro, na encosta de uma montanha: são completamente receptivas e abertas ao que está acontecendo. Isso é, ao mesmo tempo, a coisa mais simples e mais profunda, assim como a pausa contínua.

            Mas, sem dúvida, precisamos de enorme estímulo e conselho prático para estar presente aqui e agora e nos abrirmos para a vida. Definitivamente, não é nossa reação habitual. Meus professores budistas Chögyam Trungpa e Dzigar Kongtrül Rinpoche usaram uma analogia útil para descrever o desafio da plena consciência do desconforto da vida. Eles dizem que nós, seres humanos, somos iguais a crianças pequenas com um caso grave de intoxicação pelo contato com uma hera venenosa. Como queremos aliviar o desconforto, começamos a nos coçar, o que nos parece uma reação totalmente razoável. Diante de qualquer coisa da qual não gostamos, tentamos por instinto esquivar-nos. Em outras palavras, o fato de se coçar é nossa maneira habitual de escaparmos, tentando livrar-nos do nosso desconforto básico, a ansiedade vital da inquietação e insegurança, ou de uma sensação muito desagradável: a sensação de que algo ruim está prestes a acontecer.

            Mas não sabemos que, ao nos coçarmos, o veneno da hera espalha-se. Logo estaremos coçando o corpo inteiro e, em vez de sentir alívio, aumentamos nosso desconforto.

            Nessa analogia, a criança é levada ao médico para ser medicada. Isso é equivalente a encontrar um guia espiritual, receber ensinamentos, e começar a prática da meditação. A meditação pode ser descrita como um aprendizado para suportar a irritação cutânea e a vontade intensa de nos coçar, sem reagirmos. Com a meditação exercitarmos nossa capacidade de acalmar nossas sensações, inclusive a vontade crescente de se coçar, a vontade acumulativa de evitar o desconforto a qualquer preço. Treinamos estar presentes, abertos e receptivos, não importa o que aconteça.

            No entanto, sozinhos com nossos recursos, sempre nos coçaremos, em busca do alívio que nunca acharemos. Porém o médico nos dá um conselho sábio: “Você está com um caso grave de intoxicação pelo contato com uma hera venenosa. É perfeitamente curável, mas tem de seguir algumas instruções precisas. Se continuar se coçando a erupção ficará muito pior. Pode ter certeza. Então, aplique este remédio que o ajudará a se curar. Assim, seu desconforto aos poucos diminuirá e, por fim cessará”. Se a criança amar a si mesma e quiser curar-se, essa criança que está sofrendo seguirá as prescrições do médico. Ele ou ela perceberá a lógica óbvia nas palavras do médico e suportará o desconforto de curto prazo de sentir coceira, sem se coçar. E, então, gradualmente, a criança colherá o benefício. Não é o médico ou ninguém mais que será recompensado: é você quando notar que a erupção começa a melhorar, e a vontade de se coçar aos poucos desaparece.

  Como muitos de nós sabemos, em especial aqueles que têm vícios  fortes, demoraremos muito tempo para aprender a conviver com a  coceira. Entretanto, esse é o único caminho. Se continuarmos a nos caçar, não só a  erupção cutânea piorará, mas também nos veremos imersos cada vez mais no  inferno. Nossas vidas ficarão mais e mais descontroladas e desconfortáveis. As três  maneiras clássicas de procurar alívio em lugares errados são a busca do prazer, o  entorpecimento dos sentidos e a agressão: ou as ignoramos ou nos apegamos a elas.  Ou talvez possamos desenvolver o hábito de remoer o que nos obceca, de enraivecer-  nos com as pessoas ou de entregar-nos ao ódio.

            Os ensinamentos budistas dizem que a raiz de nosso descontentamento é nossa personalidade autocentrada e o medo de concentrar nossa atenção no momento presente. Facilmente, podemos nos transformar de pessoas abertas e receptivas – um sentimento vivo e alerta – em pessoas introvertidas. Mais uma vez, sentimos desconforto e procuramos um alívio rápido, que nunca atinge a raiz do problema. Somos iguais a um avestruz enfiando a cabeça na areia com a esperança de encontrar conforto. Essa fuga de tudo que é desagradável, esse ciclo contínuo de evitar o presente é uma reação egoísta, um apego exagerado a si mesmo, ou ao ego.

            Uma das metáforas para se referir ao ego é um casulo. Ficamos dentro de nosso casulo porque temos medo, o medo de nossos sentimentos e das reações que a vida vai provocar. Tememos o que pode nos acontecer. Mas se essa estratégia de esquivar-se funcionasse, Buda não teria precisado ensinar nada, porque nossas tentativas de fugir da dor, as quais todos os seres humanos instintivamente recorrem, teriam resultado em segurança, felicidade e conforto, e não existiriam problemas. Porém, como Buda observou, a auto absorção, essa tentativa de encontrar zonas de segurança, gera um terrível sofrimento. Ela nos debilita, o mundo torna-se mais aterrador, e nossos pensamentos e emoções passam a ser cada vez mais ameaçadores.

            Existem muitas abordagens para discutir o ego, mas, na essência, é o que mencionamos. É a experiência de nunca estar presente. Existe uma tendência arraigada, quase uma compulsão, para desviar a atenção, mesmo quando não estamos conscientemente nos sentimos desconfortáveis. Todas as pessoas sentem-se um pouco ansiosas. Há um pano de fundo de nervosismo, tédio e inquietude. Como relatei, durante o período do meu retiro, quando não havia quase distrações, mesmo assim vivenciei esse profundo desconforto.

            Segundo a explicação budista, sentimos essa sensação desagradável, porque estamos sempre tentando ter uma estrutura firme e quase nunca conseguimos. Estamos sempre buscando um ponto de referência permanente que não existe. Tudo está sempre em mutação, fluindo, transitório e aberto. Nada se define com clareza como gostaríamos. Essas não são más  notícias, mas somos programados para negá-las. Não temos nenhuma tolerância em relação à incerteza.

            Aparentemente, essa insegurança é uma reação do ego à natureza da mudança da realidade. Temos tendência a achar que a instabilidade de nossa situação é extremamente desconfortável. Todos conhecem essa insegurança básica e, com frequência, a vivenciarmos como um fato horrível. Durante meu retiro de três anos, havia no local uma mulher de quem eu fora amiga íntima. No entanto, algo acontecera entre nós, e agora sentia que ela me odiava. Estávamos juntas em um prédio muito pequeno e tínhamos de nos cruzar nos corredores estreitos, e não havia uma maneira de nos esquivarmos. Estava muito zangada e não falava comigo, o que me causou sentimentos de profunda impotência. Minhas estratégias habituais não estavam funcionando. Continuava a sentir a dor de não ter um ponto de referência, nenhuma confirmação. As formas que sempre usara para me sentir segura e no controle das situações haviam desmoronado. Tentei todas as técnicas que havia aprendido durante anos, mas nada funcionou.

            Então, em uma noite, como não conseguia dormir, fui para a sala de meditação e sentei-me lá a noite inteira. Estava apenas sentada, sentindo uma dor crua e quase vazia de pensamentos. De repente, algo aconteceu: tive um insight de extrema clareza de que toda a minha personalidade, toda a minha estrutura ególatra, baseava-se em não querer ir para esse lugar instável. Tudo o que fiz, meu modo de sorrir, de falar com as pessoas, de tentar agradar a todos, foi uma estratégia para evitar esse sentimento. Percebi que a nossa fachada, nossa pequena canção e dança que todos fazemos, fundamenta-se na tentativa de evitar a instabilidade que permeia nossas vidas.

            Com o aprendizado da permanência, tornamo-nos muito familiarizados com esse lugar instável e, pouco a pouco, ele deixa de ser ameaçador. Em vez da ansiedade, permanecemos presentes. Não mais investimos em tentativas constantes de nos afastar da insegurança. Achamos que encarar nossos demônios trará à lembrança algum acontecimento traumático ou a descoberta de que não temos nenhum valor. Mas, ao contrário, é justamente enfrentando essa sensação desconfortável e inquietante de não ter um lugar para fugir que descobriremos – imagine o quê? – que sobrevivemos e não iremos desmoronar, sentimos um profundo alívio e uma sensação de liberdade.

            Uma maneira de praticar a permanência é fazer uma pausa, ficar alerta e respirar fundo três vezes. Outra maneira é sentar-se imóvel por algum tempo e escutar. Ouça os sons da sala. Por um minuto, escute os sons próximos a você. Por um instante, ouça os sons distantes. Só escute com atenção. O som não é bom nem ruim. É apenas um som.

            Talvez, durante essa experiência de escutar, você descubra que tem a capacidade de atenção, de estar presente e alerta. Por outro lado, sua mente pode ter divagado. Se isso acontecer, caso o objeto da meditação seja a respiração, um som, uma sensação ou um sentimento, quando notar que sua mente divagou, retorne ao estado anterior com suavidade. Você retorna porque o presente é muito precioso e efêmero, e, sem algum ponto de referência para recorrer, jamais perceberemos que devaneamos. E que, mais uma vez, procuramos uma alternativa para estar plenamente consciente do momento presente, de estar presente perante as circunstâncias como são de fato e não como preferíamos que fossem.

 

019insightPemaO HÁBITO DE FUGIR

            Todos nós temos tendência a evitar o momento presente. É como se esse hábito fizesse parte do nosso DNA. No nível mais básico, pensamos o tempo inteiro, e isso desvia nossa atenção. Em seus ensinamentos sobre a fantasia e realidade, Chögyam Trungpa dizia que estar totalmente presente, em contato com o imediatismo de nossa experiência, significa realidade. Ele descrevia a fantasia como estar perdido em pensamentos. A maioria das pessoas que dirige na autoestrada a 137 quilômetros por horas está distraída. Aparentemente, temos uma espécie de piloto automático que nos mantém na estrada, ou que nos permite fazer inúmeras tarefas ao mesmo tempo, ou nos alimentar, todas as coisas que fazemos sem pensar. Esse padrão de distração, de não estar presente em toda plenitude, de não contatar o imediatismo de nossa experiência é considerado normal. Desde criança, fortalecemos o hábito de fugir, escolhendo a fantasia em vez da realidade. Infelizmente, encontramos muito conforto em devanear, em nos voltarmos para nossos pensamentos, preocupações e planos. Isso nos dá uma sensação agradável de falsa segurança.

            Certa vez, ouvi um ensinamento muito útil de Dzigar Kungtrül, que aprofunda a discussão sobre esse padrão de fuga da realidade. É um ensinamento sobre shenpa. Em geral, a palavra tibetana shenpa traduz-se por “apego”, porém essa tradução sempre me pareceu muito abstrata, porque não revela a importância da I e seu efeito em nós.

            Uma tradução alternativa poderia ser “fisgado”, no sentido de ser fisgado, ou aprisionado. Todas as pessoas gostam de ouvir ensinamentos de como libertarem-se de situações desagradáveis, porque esse sentimento dirige-se a uma fonte comum de dor. Em termos de metáfora da hera venenosa – a coceira e a ânsia de se coçar – , a shenpa representa também nossa ansiedade e a vontade de se coçar. Ela nos impede a fumar um cigarro, a comer demais, a beber mais um drinque, a dizer alguma coisa maldosa ou a contar um mentira.

            É assim que a shenpa surge em nossas experiências cotidianas. Alguém diz uma palavra áspera, e você fica tenso: instantaneamente, somos fisgados. A tensão logo se manifesta em culpar a pessoa ou nos depreciar. A reação em cadeia de falar, agir ou nos tornarmos obsessivos acontece com rapidez. Talvez, se tiver vícios, você se voltará a ele para encobrir os sentimentos desconfortáveis. Isso é muito pessoal. O que é dito penetra em você e inicia um processo interno. Talvez não incomode outra pessoa, mas estamos falando do que toca sua ferida, o lugar ferido da shenpa.

            A shenpa, fundamental e básica, é o apego ao ego: apego à nossa identidade, à imagem que temos de nós. Ao vivenciarmos nossa identidade como seres ameaçados, nossa egolatria intensifica-se, e a shenpa. automaticamente aparece. Então, nos agarramos a esse apego às nossas posses, ou aos nossos pontos de vista e opiniões. Por exemplo, alguém critica você. Critica sua opinião política, sua aparência, seu melhor amigo. A shenpa está presente. Assim que as palavras forem registradas, ela se manifesta. A shenpa não exprime pensamentos ou emoções per se. Ela não se verbaliza, mas gera pensamentos e emoções rapidamente. Se ficar atento, perceberá o momento em que isso acontece.

            Se captá-la logo que aparece, quando ainda for uma pequena tensão, um ligeiro recuo, uma pressão sob o colarinho, ainda é uma reação perfeitamente viável de lidar. Assim, estimulamos nossa curiosidade em relação a esse ímpeto para fazer coisas habituais, de fortalecer um padrão repetitivo. Sentimos uma sensação física e, ainda mais interessante, jamais nova. Sempre tem um gosto familiar. E um cheiro familiar. Quando começamos a nos relacionar com a shenpa, sentimos que esse contato sempre existiu. Percebemos a insegurança subjacente, que é inerente a um mundo em mudança, instável, inconstante. A insegurança que todas as pessoas sentem enquanto persistem a lutar para ter uma estrutura sólida.

            Quando alguém diz algo que o irrita, não é preciso querer saber a razão. Isso não é uma autoanálise, uma exploração do trauma. Pode ser apenas “Uh-oh”, e você fica tenso. Em geral, não percebemos essa reação da primeira vez. É mais comum reagirmos ou nos reprimirmos ao notar que fomos fisgados.

            Dzigar Kungtrül diz que a shenpa é a carga atrás das emoções dos pensamentos e palavras. Por exemplo, quando as palavras estão impregnadas de shenpa, elas, com facilidade convertem-se em palavras de ódio. Qualquer palavra pode transformar-se em um insulto racial, em uma linguagem agressiva, quando tem a força e o impulso da shenpa por trás. Você fala a palavra shenpa, e ela provoca shenpa nos outros, que respondem defensivamente. Se não a controlar, a shenpa assemelha-se a uma doença extremamente contagiosa que se espalha com rapidez.

            Existe, hoje, uma palavra que se usa comumente para depreciar os povos do Oriente Médio. Soube que a ensinam aos soldados americanos antes de enviá-los para lá. A palavra é haji. Um soldado contou-me que é normal ouvir: “Tudo bem, eles não passam de hajis”, como uma justificativa para maltratar ou matar civis inocentes. O doloroso é que, na cultura islâmica, a palavra tem uma conotação muito positiva. É o termo honorífico para designar alguém que fez a peregrinação à cidade sagrada de Meca. Portanto, as palavras por si só não são neutras e modificam-se dependendo da carga que lhes impomos. Se houver a carga da shenpa, a palavra haji avilta as pessoas. Torna-se a linguagem do ódio e da violência. Sem essa carga, sem esse estímulo, a palavra causa reações completamente diferentes nos corações e nas mentes daqueles que a escutam.

            Todos nós usamos palavras shenpa. Podemos tentar não utilizar as que causam insultos raciais, mas temos outras maneiras de menosprezar os outros. Quando não gostamos de alguém, até mesmo seu nome pode se tornar uma palavra shenpa. Por exemplo, quando você fala de sua rival da vida inteira, Jane, ou de seu irmão, Bill, a quem detesta, o tom da voz com que diz o nome deles transmite desprezo e agressão.

            Você pode perceber a shenpa com muita facilidade nas pessoas. Por exemplo, está tendo uma conversa agradável com alguém, que o escuta. De repente, depois que fala algo, sente a tensão nele. De alguma forma, nota que tocou em uma área sensível. Você vê a shenpa dele, porém ele não tem consciência disso.

            Quando percebemos com clareza o que está acontecendo com outra pessoa, acessamos nossa inteligência natural. Sabemos instintivamente que a coisa importante que estamos tentando transmitir não será absorvida no momento. A pessoa retrai-se, ele ou ela fecha-se por causa da shenpa. Nossa sabedoria natural nos diz para calar-nos e não insistir em nosso ponto de vista; intuitivamente sentimos que ninguém vencerá a discussão se disseminarmos o vírus da shenpa.

            Sempre que houver desconforto, inquietação ou tédio – sempre que houver insegurança sob qualquer forma – a shenpa surge. Isso acontece com todos nós. Se nos familiarizarmos com essa sensação, sentiremos seu desconforto. Podemos vivenciar completamente a shenpa e aprender ao longo do tempo que o melhor é não a acionar.

            A falta de reação, ou o ato de frear o ímpeto de reagir, é uma atitude muito interessante. É também chamada de renúncia nos ensinamentos budistas. A palavra tibetana para renúncia é shenluk, o que significa virar a shenpa de cabeça para baixo, fazendo uma mudança drástica. Significa desvencilharmo-nos. A renúncia não significa abdicar de comida, sexo, ou do estilo de vida. Não estamos renunciando à vida em si. Queremos diminuir nosso apego, a shenpa que atribuímos aos fatos da vida.

            Em geral, o budismo estimula a não rejeitar o que é problemático e sim a nos familiarizarmos com os problemas. Por isso, precisamos conhecer nossa shenpa, observá-la com clareza, vivenciá-la plenamente, sem reagir ou nos reprimir.

            Se estivermos dispostos a conhecer nossa shenpa, deixando-a nos afetar, nossa inteligência natural começará a nos guiar. Passaremos a prever a cadeia inteira de reação e aonde ela nos levará. Teremos acesso a uma sabedoria baseada em compaixão por si mesmo e pelos outros independente dos temores do ego. É uma parte de nós que sabe que pode conectar e viver de nossa bondade essencial, de nossa inteligência básica, abertura e cordialidade. Ao longo do tempo, esse conhecimento se fortalece mais que a shenpa, e interrompemos com naturalidade a reação em cadeia antes que comece e, assim, evitamos o rompante da agressão.

            Em meu treinamento, sempre fui instruída a não cair no impasse de aceitar ou rejeitar, nem cair na armadilha de uma mente tendenciosa. Chögyam Trungpa era particularmente enfático a esse respeito. Certa vez, ele me fez a seguinte pergunta: isso significa que eu não deveria ter preferências como gostar mais de uma flor ou de uma comida do que de outra? Era problemático não gostar do gosto de cebola crua ou do cheiro do óleo de patchouli? Ou ter mais afinidade com o budismo do que com outra filosofia ou religião?

            Quando ouvi o ensinamento sobre shenpa, meu dilema solucionou-se. Não se trata de preferências, mas, sim, da shenpa por trás delas. Se sentir repugnância diante de cebolas cruas, se a visão delas provoca aversão, então o preconceito é profundo. Estou sem dúvida fisgada. Caso comece uma campanha contra cebola crua ou escreva um livro criticando o óleo de patchouli, ou ataque outra filosofia ou religião, a shenpa dominará. Minha mente e meu coração estarão fechados. Estou tão imbuída de minhas concepções e opiniões que os que pensam de forma diferente tornam-se meus adversários. Eu me converterei em uma fundamentalista: alguém que tem uma certeza tão profunda de sua visão que fecha a mente para aqueles que pensam de outra maneira. Por outro lado, Martin Luther King Jr. e Gandhi são exemplos de como podemos ter uma posição e expressá-la com firmeza sem a shenpa. Como eles demonstraram, o fato de não carregar a shenpa dentro de si não leva à complacência e sim a uma mente aberta e à compaixão.

            É claro, somos fisgados por experiências positivas, assim como por experiências negativas. Quando de fato queremos algo, em geral, a shenpa está presente. Isso é uma experiência muito comum na meditação. Ao meditar, você sente um equilíbrio, uma calma, uma sensação de bem-estar. Talvez os pensamentos oscilem, porém eles não o seduzem, e você é capaz de voltar ao momento presente. Não há um sentimento de luta. Então, ironicamente, você se apega ao sucesso. “Eu agi certo e recebi o merecido, é assim que sempre deve ser. Esse é o modelo.” No entanto, não existe “certo” ou “bom”, foi apenas um acontecimento. Por causa da shenpa, você foi fisgado pela experiência positiva.

            Assim, na próxima vez que meditar, você fica obcecado por alguém em casa, um projeto inacabado no trabalho, algo delicioso para comer. Você se preocupa e aflige-se, ou sente medo ou desejo, e quando tenta controlar sua mente que age como um cavalo selvagem ela se recusa a ser domada. No final, você sente que foi uma meditação horrível, e censura-se porque falhou. Porém, não foi “ruim”, foi só uma experiência. Devido à shenpa, você se apegou a uma autoimagem de fracasso. É nesse momento que você se imobiliza.

            O aspecto triste é que tentamos não sentir esse desconforto subjacente. Ainda mais triste é o fato de que continuamos a seguir esse caminho, e o desconforto aumenta. A mensagem aqui é que a única maneira de aliviar nossa dor é vivenciá-la totalmente. Aprender a não se esquivar. Aprender a conviver com o desconforto, aprender a viver com a tensão, aprender a coexistir com a sensação desagradável de ansiedade da shenpa, para que a cadeia de reação habitual não continue a governar nossas vidas, e os padrões que consideramos inúteis não se fortaleçam cada vez mais à medida que os dias e meses passem. Um dia, alguém me enviou um pingente em forma de um osso de cachorro que podia ser usado em um cordão em torno do pescoço. Em vez do nome de um cachorro, estava escrito “Sente-se. Permaneça. Cure”. Podemos nos curar e ao mundo com esse treinamento.

            Depois que reconhecemos como agimos, como somos fisgados e nos deixamos levar pelos acontecimentos, é difícil ser arrogante. Esse reconhecimento sincero o suaviza, o faz se sentir humilde no bom sentido. Também começa a lhe dar confiança em sua bondade essencial. Quando não estamos cegos pela intensidade de nossas emoções, quando abrimos um pouco de espaço, uma chance para um intervalo, ou fazemos uma pausa, naturalmente saberemos como agir. Começamos, em razão de nossa sabedoria, a seguir em direção ao relaxamento e à coragem. Devido à nossa sabedoria, aos poucos paramos de fortalecer hábitos que só causam mais dor ao mundo.

O MOVIMENTO NATURAL DA VIDA

            Somos uma mistura de agressão e de gentileza amorosa, um coração empedernido e uma receptividade suave, uma mente tacanha e uma mente aberta pronta a perdoar. Não temos uma identidade fixa, previsível que faça com que alguém diga “Você sempre foi assim. Você sempre foi igual.”  A energia da vida nunca é estática. É variável, fluida e mutável como o tempo. Algumas vezes gostamos de como estamos nos sentindo, outras não, e vice-versa. Existe uma contínua alternância de felicidade e tristeza, conforto e desconforto. Isso acontece com todas as pessoas. Mas por trás de nossas concepções e opiniões, nossas esperanças e temores em relação aos acontecimentos, a energia dinâmica da vida está sempre presente, imutável perante nossas reações de gostar e detestar.

            A maneira com a qual nos relacionamos com esse fluxo dinâmico de energia é um favor importante. Aprendemos a relaxar com ele, reconhecendo-o como nossa base essencial, como uma parte natural da vida; por outro lado, o sentimento de incerteza, de não ter nada em que se segurar, pode causar pânico e, instantaneamente, a reação em cadeia inicia-se. Entramos em pânico, somos fisgados e, então, nossos hábitos prevalecem e pensamos, falamos e agimos de uma maneira muito previsível.

            Nossa energia e a energia do universo estão sempre fluindo, mas temos pouca tolerância à imprevisibilidade, e  pouca capacidade para ver a nós mesmos e o mundo como algo estimulante e fluido que é sempre renovado. Em vez disso, nós nos apegamos a uma rotina, a rotina monótona de “eu quero” e “eu não quero”, a rotina da shenpa, a rotina que continuamente nos aprisiona em nossas preferências pessoais.

            A fonte de nosso desconforto é o desejo jamais saciado de certeza e segurança, de algo sólido em que se segurar. Inconscientemente, esperamos que se conseguíssemos o trabalho certo, o parceiro certo, qualquer coisa certa, nossas vidas fluiriam com mais suavidade. Quando alguma coisa inesperada ou que não gostamos acontece, pensamos que algo deu errado. Creio que essa não é uma maneira exagerada de exprimir como nos sentimos. Mesmo no nível mais mundano, reagimos aos fatos externos com muita felicidade – alguém passa à nossa frente, temos alergias de acordo com a época do ano, nosso restaurante favorito está fechado para jantar. Nunca somos estimulados a sentir o fluxo e o refluxo de nossos humores, de nossa saúde, do tempo ou dos acontecimentos externos, agradáveis e desagradáveis, em sua plenitude. EM vez disso, permanecemos prisioneiros do medo, de padrões mesquinhos para evitar a dor e procurarmos sem cessar o conforto. Isso é um dilema universal.

            Ao fazermos uma pausa, um intervalo, e respirarmos fundo, sentimos um  novo alento. De repente, nos acalmamos, observando o mundo. Pode ser a sensação de  estar por alguns instantes no centro de um furacão ou em uma roda imóvel. Nosso humor  pode ficar agitado ou alegre. O que vemos e ouvimos pode ser o caos ou o oceano, as  montanhas, ou pássaros voando no céu azul límpido. Quaisquer que sejam nossas sensações,  momentaneamente nossa mente imobiliza-se e não somos puxados nem empurrados pelo  que vivenciamos. Ou essa pausa pode ser inadequada, amedrontadora, impaciente, como  uma autoconsciência embaraçosa.

            A abordagem aqui é radical. Somo estimulados a nos sentir confortáveis, a começar a relaxar, a nos deixarmos levar pelas sensações, qualquer que seja a experiência. Somos encorajados a interromper a sucessão de acontecimentos e parar, observar e respirar. Ou seja, concentrar a atenção no momento presente por alguns segundos, alguns minutos, algumas horas, a vida inteira, com nossas energias mutáveis e a imprevisibilidade da vida à medida que ela se desdobra, compartilhando em toda sua plenitude todas as experiências como elas se apresentam.  Nessa jornada do despertar, essa jornada de aprender a estar presente, é muito útil reconhecer a shenpa quando ela provoca uma reação. Pode ser uma manifestação sutil, um recuo ligeiro, uma tensão involuntária, ou um choque total e extremamente carregado. Na verdade, não importa se a shenpa vier como brasa ou como um incêndio violento em uma floresta. Se der o primeiro passo e perceber que foi fisgado, já estará interrompendo uma antiga reação habitual. Que já interrompeu o movimento, mesmo que por pouco tempo, de acionar o piloto automático e fugir. Você está desperto, consciente de que foi fisgado e, neste momento, você tem uma escolha: pode fortalecer ou não a shenpa. É um momento de extrema tensão no qual você aumenta aos poucos a intensidade, ou escolhe se imobilizar e vivenciar a energia desconfortável sem lutar.

            Em vez de ver a shenpa como um obstáculo a ser transposto, é melhor considerá-la uma oportunidade de transformação, uma porta aberta para o despertar. Quando percebo que fui impelida a agir, penso que é um momento neutro, um momento no tempo, um momento de verdade que pode seguir qualquer rumo. É um momento precioso para começarmos a fazer escolhas que levarão à felicidade e à liberdade, e não a escolhas que acarretarão um sofrimento desnecessário e à imprecisão de nossa inteligência, cordialidade, e de nossa capacidade de continuarmos receptivos e presentes no movimento natural da vida.

            Ulisses, o herói da antiga mitologia grega, exemplifica a coragem ao escolher conscientemente ficar receptivo e presente quando a tentação de desistir é intensa. Na viagem marítima de volta à Grécia depois da guerra de Troia, Ulisses sabia que seu navio atravessaria uma área muito perigosa habitada por lindas donzelas conhecidas como sereias. Ele fora prevenido que o apelo dessas mulheres era irresistível e que os marinheiros não conseguiam evitar a tentação de se dirigirem a elas; assim, despedaçavam os barcos nas rochas e afogavam-se. Mas Ulisses queria ouvir o canto das sereias. Ele conhecia a profecia que, se alguém ouvisse suas vozes e resistisse a procura-las, as sereias perderiam o poder para sempre e definhariam até morrer. Esse desafio motivou-o.

            Assim que o navio aproximou-se da terra natal das sereias, Ulisses disse aos seus homens para colocarem cera em seus ouvidos e o amarrarem bem apertado no mastro, instruindo-os que por mais que lutasse e gesticulasse, não importa quanto mais colérico ficasse ordenando que cortassem as cordas, eles não o desamarrariam até que o navio chegasse a um ponto familiar da terra, bem distante do som do canto das sereias. Essa história, é claro, teve um final feliz. Os homens seguiram suas instruções, e Ulisses venceu o desafio. Em um grau maior ou menor, todos nós teremos de passar por um desconforto similar, para não seguir o apelo de nossas sereias pessoais e atravessar a porta aberta do despertar.

            Cada um de nós pode ser um participante ativo na criação de um futuro sem violência, apenas com a forma com que trabalhamos a shenpa no momento em que surge. Hoje, a maneira como reagimos ao sermos fisgados tem implicações globais. Nesse momento neutro, com frequência de extrema tensão, conscientemente escolhemos fortalecer nossos antigos medos baseados no hábito, ou vivenciamos em sua plenitude a energia agitada e inquieta, deixando-a se desdobrar e fluir com naturalidade. Não haverá falta de oportunidade ou material para trabalhar.

            Ao examinar com atenção esse processo de mudança, como faço há anos, é fácil notar que é preciso coragem para relaxar com nossa energia dinâmica tal como ela é, sem cisão ou uma tentativa de se esquivar. É preciso a coragem, determinação e curiosidade de um Ulisses para permanecermos abertos e receptivos à energia da shenpa, à irritação cutânea e à ansiedade da shenpa, e não reagirmos da forma habitual.

 

LIBERTANDO-SE DE ANTIGOS HÁBITOS

images (10)  Observei três características da shenpa. Primeiro, nossa história a estimula. EM segundo lugar,    ela surge sempre subjacente ao sentimento predominante. E terceiro, sempre tem consequências,  em geral, desagradáveis. Por exemplo, sentimo-nos solitários e, automaticamente, a shenpa   aparece, seu momento neutro entra em cena. Mas, em vez de percebermos o que está  acontecendo, de controlarmos a energia, mordemos o anzol e comemos demais, tomamos  uma bebedeira, ou agredimos os outros. Depois, acontece o efeito pós-shenpa. Sentimo-  nos  culpados e nos desprezamos por termos mais uma vez nos descontrolado. Esse fluxo cíclico  pode se prolongar por anos, com uma shenpa que provoca uma reação em cadeia que gera uma  shenpa posterior e assim por diante.

  Nesse processo de explorar a shenpa, compreenda que é essencial interromper a sucessão de  acontecimentos. Nossas conversas internas nesse momento neutro quando percebemos que fomos fisgados provocam uma leve sensação de desconforto, uma tensão vaga em nossa mandíbula ou estômago, palavras grosseiras, gestos de rejeição, ou até mesmo violência. Porém, se não a estimularmos, se não a congelarmos com nossas sensações, a energia diminuirá e, depois, fluirá com naturalidade.

Na meditação, somos treinados a perceber nossos pensamentos e, em seguida, deixá-los  ir e, vir até ficarem totalmente presentes, de volta ao que Chögyam Trungpa chamava de quadrado um. Você retorna ao quadrado um e, mesmo se ele estiver impaciente, inquieto e cheio de shenpa, assim mesmo você retorna. A shenpa em si não é o problema e sim a falta de percepção que fomos fisgados e que inconscientemente causa a reação. Para neutralizar esse problema, concentramos nossa atenção compassiva ao fato de termos sido fisgados e sua consequência, a familiar reação em cadeia. Somos treinados a interromper seu fluxo e, assim, o estímulo da shenpa desaparece.

Isso é uma prática difícil porque, sem dúvida, ficamos em uma posição muito delicada. Quando não agimos de modo habitual, sentimos dor. Eu chamo isso de período de desintoxicação. Há tanto tempo reagimos de uma maneira igual e previsível para nos libertarmos desse sentimento inquietante, desconfortável e vulnerável e, agora, deixamos de seguir esse padrão. Por isso, temos essa sensação desagradável. Isso requer o hábito e a aptidão para praticar a gentileza e paciência. Requer abertura e curiosidade para observar o que ocorre a seguir. O que acontece quando você não estimula o desconforto com suas sensações? O que acontece quando você aceita essa energia mutável, fluida e universal? O que acontece se fizer uma pausa e não resistir ao movimento natural da vida?

Nesse processo, aprendemos com muito rapidez a perceber o que acontece quando você não aceita a energia. Como mencionei, nossa história alimenta a shenpa, então, surge com suas consequências.

A reação pode ser muito forte. Como Dzigar Kungtrül diz, uma das qualidades da shenpa é sua persistência. A ânsia de se vingar, o poder do desejo, a força do hábito assemelha-se a uma força magnética que nos impele a uma direção familiar. Então, optamos cada vez mais por uma satisfação interior de curto prazo que no decorrer do tempo nos aprisiona no mesmo ciclo. Se tiver feito isso muitas vezes, ou, em especial, se seguiu o ciclo inconscientemente, sabe que as consequências são muito previsíveis.

Quando fazemos uma pausa, respiramos e aceitamos a energia, podemos prever com clareza para aonde o anzol nos levará. Aos poucos, essa compreensão, essa inteligência natural irá nos apoiar em nossa jornada para enfrentar a energia inquieta, nossa jornada para compartilhar em toda plenitude nossa experiência sem sermos seduzidos pela shenpa de “eu gosto disso” ou “não suporto esse sentimento”. Certa vez, Dzigar Kungtrül disse que podemos achar que um determinado sentimento é intolerável, mas, se não o enfrentarmos, ele se tornará cada vez mais intolerável. Shantideva, o mestre budista do século VIII, compara isso a submeter de boa vontade a um tratamento médico doloroso para curar uma longa doença.

Existe uma prática formal para aprender a suportar a energia de emoções desagradáveis, que transforma o veneno das emoções negativas em sabedoria. Assemelha-se à alquimia, a técnica medieval de converter metal em ouro. Não nos livramos do metal – ele não é jogado fora e é substituído pelo ouro. Em vez disso, o metal bruto é a fonte do outro precioso. Uma analogia usada habitualmente pelos tibetanos é o pavão que come veneno para que as penas de sua cauda fiquem cada vez mais brilhantes e reluzentes.

Essa prática de transformação requer, em particular, que você permaneça aberto e receptivo à sua energia quando for estimulado. Ela inclui três etapas.

Etapa Um. Perceber o momento em que foi fisgado.

Etapa Dois. Fazer uma pausa, respirar três vezes conscientemente, e deixar-se levar pela energia. Apoie-se nela. Aceite-a. Vivencie totalmente a energia. Prove seu gosto. Toque-a. Cheire-a. Fique curioso a seu respeito. Como ela se comporta em seu corpo? Que pensamentos provoca? Torne-se íntimo da ansiedade e da angústia da shenpa, e continue a respirar. Uma parte dessa etapa é aprender a não ser seduzido pela força da shenpa. Como Ulisses, é possível ouvir o apelo das sereias sem se seduzir. É preciso permanecer consciente e compassivo, interrompendo sua força e evitando que cause dano. Não fale, não aja, e sinta a energia. Una-se à sua energia, com o fluxo e refluxo da vida. Em vez de rejeitá-la, aceite-a. Essa entrega é muito aberta, curiosa e inteligente.

Etapa Três. Depois, relaxe e siga sua vida sem que a prática converta-se em algo complicado, um teste de tolerância, uma competição em que você vence ou perde.

O maior desafio dessa prática é aceitar a energia inquieta, e permanecer consciente em vez de se esquivar automaticamente. No início, só conseguimos suportar o desprazer e sair da espiral da angústia por alguns breves momentos, porém o hábito retorna.

Meu querido neto de sete anos, Pete, é um excelente exemplo dessa experiência. Com frequência, ele se desanima diante da injustiça da vida. Pete tem uma receptividade maravilhosa e um grande senso de humor, mas quando está imerso em um dos seus conflitos, perde por algum tempo todo seu brilho e deixa que a trama de sua história prevaleça, como, por exemplo: “Meu irmão mais novo tem tudo, e eu nada. O mundo é injusto, eu sou uma vítima.” Tentar raciocinar com ele nesse momento é inútil. Logo, desestrutura-se e fica tão abalado que treme de raiva.

Pete era obcecado pela série Star Wars nessa época, e em um desses dias conflituosos perguntei: “Pete, o que Obi-Wan Kenobi faria?”. A expressão de Pete ficou curiosa e receptiva. Notei que ele refletia sobre o que eu havia perguntado, e sentou-se empertigado e sorriu. De repente, revelou-se uma pessoa forte e confiante. Porém, não resistiu e recomeçou seu drama. Como sempre, o irmão tinha isso e aquilo, ele nunca ganhava nada, e desestruturou-se de novo. Em dado momento, falei mais uma vez em Obi-Wan Kenobi. E bem aos poucos ele se recuperou e retomou sus dignidade inata.

No início, todos nós sentimos algo semelhante. Podemos conectar nossa força interna, nossa abertura natural, por breves períodos antes que desapareçam. E isso é uma etapa excelente, heroica e importante no aprendizado de interromper e enfraquecer antigos hábitos. Se mantivermos o senso de humor durante a longa jornada, a capacidade de concentrar nossa atenção no momento presente evolui com naturalidade. Aos poucos, perdemos a vontade de fisgar o anzol e, gradualmente, eliminamos nossa agressividade.

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Se escolhermos trabalhar com esse tipo de prática, é prudente começar a pratica-la com pequenas manifestações da shenpa, as pequenas irritações que acontecem o tempo inteiro. Se conseguirmos captar nossas emoções, perceber que fomos fisgados, e refletir sobre essas situações comuns do dia a dia, então, quando grandes conflitos surgirem, a prática estará à nossa disposição automaticamente. No entanto, estaremos cometendo um erro se pensarmos que podemos esperar até surgir uma crise de grandes proporções para que a prática apareça espontaneamente.

O trânsito é um ótimo lugar para trabalhar a shenpa. Pense na quantidade irracional de tensão provocada pelos hábitos de dirigir das pessoas, ou quando alguém estaciona em um lugar que você achou que era seu. Em vez de só alimentar inconscientemente a irritação, pense que essa é uma oportunidade perfeita para realizar a prática da transformação.

Sinta que foi fisgado (com humor, se possível).

Pare, respire três vezes conscientemente, e se entregue à energia (com gentileza, se possível).

Relaxe e siga adiante.

A abordagem mais sensata é testar essa prática. Hoje, amanhã, agora, enquanto vivermos, praticaremos essa maneira de viver.

Algumas vezes, só aprendemos com as dificuldades. Sentimos que fomos fisgados, mas continuamos a agir como de hábito. Porém, é possível, perceber aonde essa experiência nos levará. Quando estamos conscientes, aprendemos com nossos erros.

Shantideva lembra-nos que ao “dispensar pequenos cuidados”, em aborrecimentos ligeiros, quando a shenpa não está muito carregada, “treinamos trabalhar diante de uma grande adversidade”. Ao realizar o aprendizado para manter nossa dignidade, não perder o controle, não rejeitar nossa energia quando o desafio é razoável, treinamos para enfrentar tempos difíceis. É assim que nos preparamos para lidar com situações extremamente tensas, que podem surgir em nosso caminho em um futuro próximo ou distante.

É claro, não podemos prever que adversidades irão ou não acontecer, tanto em nossa experiência pessoal quanto na coletiva. As circunstâncias da vida podem melhorar ou piorar. Podemos herdar uma fortuna, ou nós ou aqueles a quem amamos podem ter uma doença incurável. É possível mudar para a casa que sempre desejamos, ou a casa onde moramos pode se destruir com um incêndio. Apesar da saúde perfeita, de um dia para outro, podemos ficar inválidos. No nível global, a situação pode melhorar ou se deteriorar. A situação do meio ambiente e da economia podem se estabilizar, ou talvez ocorram desastres. Nunca temos certeza do caminho que as circunstâncias atuais irão trilhar ou o que acontecerá em seguida. No entanto, não é preciso ser um profeta da destruição nem viver em constante terror. Nossa situação é definitivamente viável. Quando aprendemos a não morder o anzol com os pequenos aborrecimentos do dia a dia, estamos aptos a lidar com qualquer acontecimento futuro com compaixão e sabedoria.

TEMOS O QUE PRECISAMOS

Nos ensinamentos budistas, somos encorajados a trabalhar com a turbulência de nossas mentes e emoções como a melhor maneira de dissipar a confusão e a dor. Em vez de ficar preso ao drama de quem fez algo a quem, devemos apenas reconhecer que estamos exaltados e parar de estimular nossas emoções com nossas histórias. Não é uma tarefa fácil, mas é a chave de nosso bem-estar. Na meditação, treinamos deixar nossos pensamentos fluírem, até chegar à raiz de nosso descontentamento. Abrimos espaço para examinar o motivo de nossa imobilidade.

Não importa o que aconteceu no passado, agora podemos lidar com compaixão com nossos hábitos, pensamentos e emoções. Podemos não dar destaque a quem nos magoou e, assim, nos libertarmos. Se alguém atirar uma flecha em meu peito, posso deixar a ferida supurar, enquanto grito com o assassino, ou retirar a flecha o mais rápido possível. Ao longo da vida, terei os meios de mudar o filme da minha vida, para que as mesmas coisas não aconteçam. A mesma coisa repete-se para provocar sentimentos iguais, até que façamos uma aliança com eles. Nossa atitude deverá ser positiva no sentido de pensar que teremos uma segunda chance, e não outra experiência ruim.

Por um instante ou dois, pare e pense no que está sentindo no momento. Seria ainda mais útil se antes lembrasse de algo que o está incomodando. Se puder pensar em sentimentos como preocupação, desesperança, impaciência, ressentimento, justa indignação, ou desejo, essa experiência está extremamente recompensadora.

Por alguns momentos, pense na qualidade, no estado de ânimo, na sensação física desvinculados de sua história pessoal. Essa experiência desagradável e a sensação familiar de ter um nó no estômago, que tencionam seu corpo e seu rosto, que podem doer fisicamente – essa experiência em si não é um problema. Se conseguirmos ter curiosidade em relação a essa reação emocional, relaxar e senti-la, vivenciá-la em toda sua plenitude, então, não haverá problemas. Você pode até mesmo senti-la como apenas uma energia congelada cuja verdadeira natureza é fluída, dinâmica e criativa, uma sensação inatingível livre de sua interpretação.

Nosso sofrimento repetitivo não se origina dessa sensação desagradável, e sim do que acontece em seguida, o que chamamos de seguir o impulso, de se descontrolar, ou de se desequilibrar emocionalmente. Origina-se da rejeição à nossa energia quando ela surge de uma forma que não gostamos e de fortalecer sem cessar os hábitos de posse, aversão e distanciamento. Em especial de nossas conversas internas, julgamento, fantasias e rótulos em relação ao que está acontecendo.

Mas, se escolher praticar com o conhecimento, com pausas, acolhendo a energia para, depois, agir, o poder dessa prática não só enfraquece antigos hábitos, como também elimina a propensão de adotá-los. O enfoque maravilhoso de viver desse modo é que abre um espaço amplo para uma experiência nova isenta de egoísmo. Aqui, exatamente onde estamos, é possível viver com uma perspectiva mais ampla, que aceite todas as experiências – prazer, dor e neutralidade. Somos livres para apreciar as possibilidades infinitas que estão sempre disponíveis, livres para reconhecer a abertura natural, a inteligência e a cordialidade da mente humana.

Se os ensinamentos da shenpa repercutirem em nós, e se começarmos a praticá-los na meditação e na nossa vida diária, é bem provável que passaremos a fazer perguntas de fato úteis. Em vez de perguntar “como me livrar de um colega de trabalho difícil?”, ou “como me vingar do meu pai grosseiro?”, podemos pensar na maneira de eliminar nosso sofrimento na raiz com perguntas como essas. Como aprender a reconhecer que fui fisgado? Como lidar com minhas atitudes sem me sentir desesperançado? Como posso ter algum senso de humor? Alguma gentileza? Alguma aptidão para não fazer um drama com meus problemas? O fato de permanecer consciente do momento presente me ajudará quando sentir medo?

Também podemos perguntar, devido à minha situação atual, por quanto tempo terei esses sentimentos desconfortáveis? Essa é uma boa pergunta, no entanto, não existe uma resposta precisa. Nós nos acostumamos a voltar para o momento presente tal como é por um segundo, um minuto, uma hora – qualquer que seja o tempo – sem que isso se converta em um teste de tolerância. Fazer uma pausa e respirar três vezes é uma maneira perfeita de estar presente. Esse é um bom proveito que podemos tirar de nossa vida. Na verdade, é uma postura excelente e alegre para nossa vida. Em vez de cada vez mais nos aperfeiçoarmos em evitar o momento atual, podemos aprender a aceitá-lo como se o houvéssemos procurado e trabalhar com ele e não contra ela, tornando-o nosso aliado em vez de inimigo.

Esse é um trabalho contínuo, um processo de revelar nossa abertura natural, de desvendar nossa inteligência natural e a cordialidade. Eu descobri, como meus professores haviam dito, que sempre temos o que precisamos. A sabedoria, a força, a confiança, o coração e a mente despertos estão sempre acessíveis, aqui, agora, sempre. Estamos revelando-os, redescobrindo-os. Não estamos inventando-os ou importando-os de algum lugar. Eles estão aqui. Por isso, quando nos sentimos presos na escuridão, de repente as nuvens desaparecem. Sem motivo aparente, nós nos alegramos, relaxamos ou sentimos a amplidão de nossas mentes. Ninguém lhe proporciona isso. As pessoas o apoiam e ajudam com seus ensinamentos e práticas, como me apoiaram e ajudaram com seus ensinamentos e práticas, como me apoiaram e ajudaram, mas você terá de vivenciar por si mesmo seu potencial ilimitado.

Em meu caso, fui treinada em uma tradição e linhagem em que a devoção a nossos professores é uma maneira importante de conectar nossa abertura e cordialidade. A presença deles dissipa nuvens. Sei que meus professores fariam qualquer coisa para me ajudar, assim como eu os ajudaria. No entanto, aprendemos a não depender do professor. O papel do professor é de nos tornar independentes, de não nos apoiarmos nele ou nela, de nos libertarmos de qualquer dependência e, por fim, de nos ajudar a crescer.

É uma questão de sabedoria refletindo sabedoria, de nossa sabedoria reproduzindo-se com a do professor. Se aplicarmos os ensinamentos deles em nossas vidas e praticarmos o que ensinam, perceberemos o que eles captaram. Nossa devoção a um professor não tem nada a ver com seu estilo de vida ou suas realizações mundanas. É seu estado mental, a qualidade de seu coração que repercutem em nós. No caso do meu professor Chögyam Trungpa, seu comportamento foi tão indigno que eu nunca o teria como modelo. Mas tentei seguir sua maneira de ser. Ele me mostrou com seu exemplo que podemos despertar sem medo de nos encorajar mutuamente a ter um equilíbrio psíquico.

Sem dúvida, não existe uma resposta fácil de como nos libertarmos do sofrimento, mas nossos professores fazem todo o possível para nos guiar dando-nos uma espécie de caixa de ferramentas espiritual. A caixa contém ensinamentos e práticas pertinentes e úteis, assim como uma introdução a uma visão absoluta da realidade: que os pensamentos, emoções ou shenpa não são tão sólidos como parecem. A ferramenta principal, que engloba o relativo e o absoluto, é a prática de meditar sentado, sobretudo, quando ensinada por Chögyam Trungpa. Ele descreveu a prática básica como estar totalmente presente. E enfatizou que abre espaço para que nossas neuroses aflorem. Não era, como disse, “umas férias da irritação”.

Ele ressaltou que essa prática básica, sintetizada pela instrução de voltar sempre ao imediatismo de nossa experiência, de respirar, sentir, ou outro objetivo da meditação, revela uma completa abertura em relação às coisas como elas são, sem um revestimento conceitual. Permite que iluminemos e apreciemos nosso mundo e a nós mesmos incondicionalmente. Seu conselho sobre a maneira de nos relacionarmos com o medo, a dor, ou a falta de uma estrutura sólida e de lhes dar boas-vindas, de ficarmos coesos em vez de nos fragmentarmos em dois, uma parte rejeitando ou julgando a outra. Sua instrução em relação à respiração era de senti-la de leve e deixá-la fluir. Seu ensinamento a respeito dos pensamentos era o mesmo: deixá-los livres para desaparecerem no espaço sem fazer da meditação um projeto de autoaperfeiçoamento.

A atitude em relação a essa meditação é de relaxar. Sem uma sensação de esforço para alcançar um estado superior, simplesmente sentamos sem uma meta, sem rentar ficar calmo ou se libertar de todos os pensamentos, e seguimos as instruções: sentar confortavelmente, com os olhos abertos, consciente do objeto da meditação sem sobrecarregá-lo (não é uma concentração intensa), e a mente devaneia, mas depois volta com suavidade. O que quer que aconteça, não nos desculpamos ou condenamos. A imagem usada com  frequência é de uma pessoa idosa sentada sob o sol, observando calmamente crianças brincando.

É claro, temos de ser pacientes com esse processo e nos permitir um tempo ilimitado. É como se girássemos uma roda a vida inteira. Ela roda rápido, mas, por fim, aprendemos a não girá-la. Sabemos que a roda continuará a girar por algum tempo. Ela não vai parar de repente. Essa é uma situação muito comum: paramos de girar a roda, nem sempre fortalecemos o hábito, mas estamos em um estado intermediário especial, entre não ser sempre fisgado e nem ser capaz de resistir a morder o anzol. Isso se chama “o caminho espiritual”. Na verdade, não existe mais nada além desse caminho. Não existe outro caminho além do modo com que nos relacionamos a cada momento com os acontecimentos. Desistimos da expectativa de qualquer realização e, nesse processo, continuamos a aprender o que significa o fato de estar aqui.

Há alguns anos, eu estava dominada por uma ansiedade profunda, uma ansiedade crucial e intensa sem um motivo aparente. Sentia-me muito vulnerável, com medo e angustiada. Apesar de sentar e respirar, relaxar e sentir a sensação, o terror não diminuía. Esse estado psicológico continuou por muitos dias, e eu não sabia o que fazer.

Procurei meu professor Dzigar Kungtrül, e ele disse: “Oh, eu conheço esse lugar”. Isso foi reconfortante. Contou-me que, em determinadas épocas de sua vida, ele teve a mesma sensação. Disse que foi uma parte importante de sua jornada, além de um grande aprendizado. Depois, fez algo que mudou minha maneira de praticar. Pediu para eu descrever o que sentia. Perguntou se feria fisicamente e se era quente ou frio. Pediu para descrever a característica da sensação da forma mais precisa possível. Esse exame detalhado continuou por algum tempo, e, então, ele se animou e falou: “Ani Pema, essa é a benção Dakini. É um nível superior de bênção espiritual”. Eu quase caí da cadeira. Pensei: “Uau, isso é maravilhoso!” Eu não podia esperar o momento de sentir essa sensação tão intensa de novo. E sabe o que aconteceu? Quando sentei ansiosa para praticar, é claro, desaparecera a resistência, assim como a ansiedade.

Agora sei que, em um nível não verbal, a aversão à minha experiência foi muito forte. Provoquei uma sensação desagradável. Basicamente, eu só queria que desaparecesse. Mas, quando meu professor disse “bênção Dakini”, mudou por completo o modo com o qual a via. Então, aprendi o seguinte: interesse-se por seu sofrimento e medo. Aproxime-se, entregue-se, fique curioso; mesmo que seja por um instante, vivencie os sentimentos além dos rótulos, além de serem bons ou ruins. Dê boas-vindas a eles. Estimule-os. Faça qualquer coisa para dissolver a resistência.

Assim, da próxima vez que perder a confiança e não suportar o que está sentindo, lembre-se dessa instrução: mude a maneira de encarar a experiência e aceite-a. Em termos básicos, essa foi a instrução que recebi de Dzigar Kungtrül. E agora a transmito a você. Em vez de atribuir seu desconforto a circunstâncias externas ou à sua fraqueza, escolha ficar presente e despertar sua experiência, sem rejeitá-la, sem agarrá-la, nem alimentar histórias que conta a si mesmo sem cessar. Esse é um bom conselho inestimável que se dirige à verdadeira causa do sofrimento, seu, meu e de todos os seres vivos.

 

ALEGRE-SE COM AS COISAS COMO ELAS SÃO

Quando começamos a ver com clareza o que fazemos, como somos fisgados e dominados pelos antigos hábitos, nossa tendência habitual é usar essa percepção como um motivo para nos desencorajar e subestimarmos nosso comportamento. Em vez disso, devemos pensar como pensar como é admirável e corajoso o fato de termos capacidade de nos vermos com honestidade. Significa ver nossas vidas como um professor e não um fardo. Isso envolve, em sua essência, aprender a estar presente, com senso de humor, om uma gentileza afetuosa em relação a nós mesmos e às circunstâncias externas, a nos alegrar com o ingrediente mágico da autorreflexão sincera. Chögyam Trungpa chamava isso de “tornando-nos amigos de nós mesmos”. Essa amizade baseia-se no conhecimento do nosso eu sem preconceito. Portanto, é uma amizade incondicional.

O aprendizado de concentrar a atenção no momento presente é a base para conectar nossa cordialidade natural; é a base para amar a si mesmo e também da compaixão. Quanto mais estiver presente com você mesmo, mais você perceberá contra o que todos nós lutamos. Assim como eu, outras pessoas sofrem e querem eliminar o sofrimento. E como eu, elas agem de um modo que só agrava a situação.

 Quando começarmos a ver a reação em cadeia da shenpa, não nos sentimos superiores. Ao contrário, esse insight tem o potencial de nos tornar humildes e faz com que sintamos mais simpatia pela perplexidade dos outros. Quando vemos alguém ser fisgado e se descontrolar, em vez de ficarmos automaticamente irritados, temos mais chance de reconhecer nossa semelhança. Estamos, sem dúvida, no mesmo barco, e o fato de sabermos isso nos predispõe mais a perdoar.

Nos ensinamentos budistas sobre compaixão existe uma prática chamada “alguém no início e alguém no final”. Quando acordo de manhã, faço essa prática. Eu penso em um desejo para esse dia que começa. Por exemplo, eu posso pensar: “Hoje, perceberei quando for fisgada”. Ou: “Não falarei nem agirei com raiva”. Tento não pensar em um desejo muito grandioso como: “Hoje, estarei livre de todas as neuroses”. Eu começo com uma intenção clara e a guardo na mente ao longo do dia.

À noite, revejo os acontecimentos. Essa é uma parte muito difícil para os ocidentais. Infelizmente, temos uma tendência a enfatizar nossos fracassos. Porém, no ensinamento de Dzigar Kungtrül, ele diz que para ele, quando sente que conectou com o seu desejo, mesmo que, por um breve instante durante o dia, ele tem uma sensação de alegria. Ele também diz que, quando reconhece que se perdeu de si mesmo, alegra-se por ter sido capaz de ter uma percepção. Essa maneira de nos vermos tem sido muito inspiradora pra mim.

Ele nos estimula a questionarmos sobre o que existe dentro de nós, que nos permite sentir que nos perdemos de nós mesmo. É a nossa sabedoria, insight ou inteligência natural? Então, podemos ter a aspiração de perceber com nossa sabedoria que reconhece quando ferimos os sentimentos de alguém, ou que fumamos em local proibido? É possível ter a aspiração de captar cada vez mais nossa aptidão de reconhecer o que estamos fazendo, em vez de sempre nos identificarmos com os nossos erros? Essa é a nossa capacidade inata de nos alegrar com o que vemos, sem nos desesperarmos. É o talento de deixar que a autorreflexão compassiva construa a confiança e não de se tornar a causa da depressão.

Ser capaz de conhecer a shenpa e de perceber que está sendo fisgado é o fundamento da liberdade. Ao sermos capazes de reconhecer o que está acontecendo sem a negação, essa aptidão nos alegrará. Assim, poderemos dar o próximo passo e evitar seguir a antiga estrada; algumas vezes, teremos sucesso, outras não, mas devemos nos alegrar por termos conseguido interromper o impulso e que “às vezes” já é um grande progresso.

Devemos nos alegrar por sermos capazes de perceber nosso comportamento e de nos refrearmos, e que haverá recaídas. Algumas vezes, é um passo à frente, outro atrás. Talvez um passo à frente, meio passo atrás. Quando as pessoas fazem o programa de emagrecimento. Vigilantes do Peso, lhes dizem que o peso terá altos e baixos, que nem sempre perdem esses quilos em excesso. Recomendam paciência com a perda de peso e que não será um problema se engordar em uma semana. Pedem que você encare sua perda de peso de uma perspectiva maior, de prestar atenção ao que acontece durante um mês ou muitos meses.

Essa perspectiva assemelha-se à maneira de trabalhar nossos hábitos firmemente arraigados. Nisso, incluímos a percepção compassiva de que as pessoas têm recaídas. Chögyam Trungpa deu uma aula sobre isso. Ele disse que se não tivermos dificuldades na vida, se nossos padrões habituais se dissiparem sem cessar, semana após semana sem problemas, não teremos empatia pelas pessoas que continuam a serem fisgadas e descontrolam-se.

Ele disse que a jornada espiritual ideal precisa equilibras a “glória” e a “infelicidade”. Se tudo for glorioso, um sucesso após outro, ficaremos extremamente arrogantes e alienados em relação ao sofrimento humano. Por sua vez, se tudo dor uma infelicidade e nunca tivermos insights nem sentirmos alegria ou inspiração, ficaremos tão desestimulados que desistiremos. Precisamos de equilíbrio, mas os seres humanos têm tendência a enfatizar em demasia a infelicidade.

Por exemplo, quando revemos os acontecimentos do dia, é comum achar que tudo foi desalentador, como se não houvéssemos feito nada certo. Mas, se tivermos alguém ao nosso lado, um sócio, por exemplo, ele ou ela poderia dizer: “Acho que estamos estressados; que tal sairmos para dar uma caminhada e, na volta, nos sentiremos melhor?” OU: “Eu vi você sorrir para aquele homem sentado no canto todo curvado e deprimido, e notei que ele se animou”. Algumas vezes, outras pessoas precisam dizer essas coisas para nós.

Em nossos dias mais banais, temos momentos de felicidade, de conforto e alegria, momentos em que vemos algo que nos agrada, ou que nos sensibiliza, momentos de contatar a ternura de nossos corações. Podemos usufruir desses momentos. Acho essencial observar, durante o dia, quando nos sentimos felizes ou quando algo positivo acontece, e começar a cultivar esses momentos como preciosos. Aos poucos, passamos a apreciar o valor de nossa vida, tal como ela é, com seus altos e baixos, seus fracassos e sucessos, sua aspereza e suavidade.

Até iniciar essa jornada de perceber quando estamos sendo fisgados, detalhes insignificantes inconscientemente nos desequilibram o tempo inteiro. A mais leve contrariedade ou aborrecimento poderá nos provocar e ficaremos cegos ao que acontece. A vida converte-se cada vez mais em uma luta sem sabermos o motivo.

Porém, assim que passarmos a notar o momento em que fomos fisgados, mesmo ainda sob estresse, perceberemos uma diferença importante: a magia do reconhecimento, o milagre do conhecimento compassivo. É o milagre da escolha e ser consciente. Quanto mais agirmos desse modo, mais aptos ficaremos para exercer esse conhecimento. Não é algo que tenhamos de forçar. Acontece com naturalidade quando há menos autoilusão e, então, temos uma capacidade maior de permanecermos conscientes perante as alegrias e tristezas do mundo.

Sentirmo-nos culpados pelo que somos não ajuda em nada. Quando conseguimos irradiar a luz da compaixão em nossas ações, uma mudança interessante pode acontecer – nosso desapontamento torna-se uma semente de compaixão para com todas as pessoas como nós aprisionadas em uma mente fixa, fechada, e um coração empedernido. Essa percepção nos conecta com outras pessoas. Ela será a semente da empatia e seguimos adiante, sem sermos engolidos pela culpa e vergonha do que fizemos.

No livro Art of Happiness, Howard Cutler perguntou ao Dalai Lama se havia feito alguma coisa na vida da qual se arrependia, ou lamentasse. Ele disse que sim, e contou a história de um monge idoso que o procurou um dia e lhe falou que gostaria de realizar uma prática de alto nível budista. O Dalai Lama, sem refletir, disse ao homem idoso que essa prática seria muito difícil de fazer e talvez fosse mais apropriada para alguém mais jovem, porque, tradicionalmente, era uma prática que deveria começar na adolescência. Depois, soube que o monge se suicidara para renascer em um corpo mais jovem, a fim de realizar melhor a prática.

Cutler ficou atônito. Ele perguntou ao Dalai Lama como havia conseguido lidar com esse arrependimento. Também perguntou como se libertara dele. O Dalai Lama fez uma longa pausa e refletiu profundamente. Depois disse: “Eu não me libertei desse sentimento. Ainda está presente”. E continuou: “Embora esse sentimento de arrependimento ainda esteja presente, não está associado a um sentimento de opressão ou um motivo para eu recuar”.

Fiquei muito comovida com essas palavras. Temos a ideia errônea de que ou nos arrependemos ou nos livramos da culpa. Trungpa Rinpoche disse que devíamos guardar a tristeza da vida em nosso coração, mas sem esquecer a beleza do mundo e a maravilha de estar vivo. Então, chegará um momento em que seremos capazes de sentir o coração dilacerado pelos nossos sofrimentos e os de outras pessoas, sem nos deprimirmos. O Dalai Lama disse ainda que a atitude de se deprimir ou de se retrair por causa de arrependimentos não beneficia ninguém e, por isso, aprendeu com seus erros e prosseguiu em seu caminho fazendo todo o possível para ajudar os outros. Creio que podemos dizer que ele é um grande professor porque enfrenta seus desafios. Ele não passa pela vida imune, sem tristeza ou remorso. Porém, ele não transforma esses sentimentos no que chamamos “culpa” ou a vergonha que nos deprime e nos faz sentir impotentes em relação a nós mesmos e aos outros.

Essa possibilidade não está só disponível para pessoas como o Dalai Lama. Está à espera de todos nós a cada instante do dia. Quando olhamos para nosso último momento, nossa última hora, nosso último dia, seria um motivo de alegria se pudéssemos dizer que havíamos percebido quando estávamos fisgados e interrompemos o impulso, mesmo que por um breve instante. E, se por acaso não notamos o que estava acontecendo e, mais uma vez, agimos da maneira habitual, podemos nos alegrar por ter a capacidade e a sabedoria de estarmos conscientes e cientes de nossa atitude, e talvez envelhecermos com mais sabedoria e tolerância pelos erros cometidos e eventuais recaídas.

 

REVELANDO A ABERTURA NATURAL

Nada é estático ou permanente. Nisso estamos incluídos. Sabemos que carros e tapetes, camisas novas e aparelhos de DVD são passageiros, porém estamos menos dispostos a pensar nessa impermanência quando se refere a nós ou a outras pessoas. Temos uma visão muito sólida de nós mesmos e visões fixas das outras pessoas. Mas, se olharmos com mais atenção, veremos que não somos nem um pouco estáticos. Na verdade, somos tão mutáveis como um rio. Por conveniência, chamamos o fluxo constante de água do rio Mississipi ou rio Nilo da mesma forma como nos chamamos Jack ou Helen. No entanto, esses rios não são iguais nem mesmo por uma mínima fração de segundo. As pessoas também seguem um fluxo, nossos pensamentos, emoções e moléculas estão sempre mudando.

Caso escolha sentir-se sempre consciente do momento presente diante de qualquer acontecimento, da energia da vida, de outras pessoas e desse mundo, depois de algum tempo perceberá que está receptivo e presente a algo mutável. Por exemplo, se estiver de fato aberto e receptivo a outra pessoa, é uma revelação perceber que na sexta-feira estávamos diferentes de como nos estamos na segunda-feira, que cada um de nós pode ser visto de um ângulo novo a qualquer dia da semana. Mas, se a pessoa for seu pai ou irmão, seu sócio ou chefe, em geral, nós bloqueamos e os vemos sempre da mesma forma. Temos tendência a rotular as pessoas como irritantes, tediosas, uma ameaça à nossa felicidade e segurança, inferiores ou superiores; e isso se estende além do nosso círculo fechado de conhecidos em casa ou no trabalho.

Esse hábito de rotular as pessoas pode ocasionar preconceito, crueldade e violência; e em qualquer momento ou lugar em que o preconceito, crueldade e violência se manifestarem, se estiverem direcionados de uma pessoa para outra ou entre grupos, ou de pessoas para grupos, existe um tema recorrente: “Essas pessoas têm uma identidade fixa e não são iguais a mim”. Podemos matar alguém ou ser indiferente às atrocidades cometidas contra ele porque “não passa de um haji”, ou “é apenas uma mulher”, ou “ele é homossexual”. Podemos preencher o espaço vazio com qualquer estigma racial, qualquer rótulo desumano a ser usado contra aqueles a quem consideramos diferentes.

Existe outra maneira de olhar os outros, em uma tentativa de nos libertarmos de nossas ideias rígidas e ter curiosidade em relação à hipótese que nada nem ninguém permanece igual. Esse processo começa, é claro, quando ficamos curiosos e eliminamos as histórias limitadas que criamos a respeito de nós mesmos. Depois, temos de estar presentes perante qualquer coisa que nos aconteça. Acho útil pensar que sentimentos como tristeza, raiva ou preocupação, prazer, alegria ou satisfação é a energia dinâmica e fluida da vida manifestando-se. Isso modifica a resistência à minha experiência. Em razão de praticar essa abordagem há muitos anos, passei a ter confiança no potencial da receptividade aberta, na consciência e percepção do mundo e na dignidade de todos os seres. E já constatei que o modo com o qual vemos e tratamos os outros revela essa nobreza.

No livro The Search for a Nonviolent Future, de Michael Nagler, há uma história que ilustra esse tema. Refere-se a um casal judeu, Michael e Julie Weisser, mas poderia ter sido qualquer vítima de preconceito e violência. Os Weisser morvam em Lincoln, Nebraska, onde Michael tinha um papel proeminente na sinagoga, e Julie era enfermeira. Em 1992, eles começaram a receber telefonemas ameaçadores e bilhetes da Ku Klux Klan. É claro que a Klan agia ilegalmente na época e não era tolerada na cidade, no entanto ela os estava ameaçando. A polícia lhes disse que provavelmente era o trabalho de Larry Trapp. Ele era o Grande Dragão, o chefe da Klan, na cidade. Michael e Julie Weisser conheciam a reputação de Trapp como a de um homem cheio de ódio. E sabiam que andava de cadeira de rodas por ter ficado inválido há alguns anos, em decorrência de um espancamento.

Todos os dias, a voz de Larry no telefone ameaçava matá-los, destruir a propriedade deles, e prejudicar a família e os amigos. Então, um dia, Michael decidiu, com o apoio de Julie, tomar uma providência. No telefonema seguinte, quando Larry Trapp os ameaçava, ele esperou uma oportunidade para falar. Ele sabia que Trapp andava com dificuldade pela cidade com a cadeira de rodas e quando conseguiu falar lhe ofereceu uma carona até a mercearia. Trapp não falou por alguns instantes e, depois, ao dizer que “Bem, posso me virar, mas obrigado por perguntar”, a raiva tinha desaparecido de sua voz.

Porém, os Weisser tinham em mente uma ideia mais ambiciosa do que apenas terminar essa tortura: eles queriam libertar Larry Trapp do tormento do seu preconceito e raiva. Começaram a ligar para ele, dizendo que se precisasse de ajuda eles estariam dispostos a auxiliá-lo. Logo depois, foram ao seu apartamento levando um jantar feito em casa, e os três passaram a se conhecer melhor. E ele começou a pedir ajuda. Um dia, quando chegaram para visitá-lo, Trapp tirou um anel do dedo e o deu a eles. Era um anel nazista. Com esse gesto, ele rompia sua associação com a Ku Klux Klan e disse aos Weisser: “Eu denuncio tudo que apoiam. Mas não odeio as pessoas das organizações… Se odiasse todos os Klasmen porque são Klasmen… continuaria a ser um racista”. Em vez de substituir um preconceito por outro, Larry Trapp escolheu eliminar sua mentalidade intolerante.

            Assim como Larry Trapp, todos nós temos preconceitos, e é muito comum justificá-los ao se manifestarem. Nossas ideias rígidas a respeito “deles” surgem com rapidez, e isso cada vez mais causa grande sofrimento. Esse é um hábito muito antigo, um hábito nocivo, uma reação universal ao sentimento de estar ameaçado. É possível olharmos para esse hábito com compaixão e receptividade, sem intensifica-lo e fortalece-lo. Podemos captar a energia poderosa de nosso medo, de nossa raiva – a energia de tudo que podemos sentir – como um movimento natural da vida e nos tornarmos íntimos dela, suportando-a sem reprimi-la, sem reagir, sem deixar que ela nos destrua ou a alguém mais. Nesse sentido, qualquer experiência converte-se na oportunidade perfeita para conectar nossa bondade natural, no apoio perfeito para permanecer aberto e receptivo à energia dinâmica da vida. Apesar de essa ideia ser radical, sei que podemos escolher não acionar a reação em cadeia da shenpa. Qualquer coisa que vivenciemos, não importa quão desafiadora possa ser, pode se tornar um caminho aberto para o nosso despertar.

            Algumas vezes, em uma situação de fato ameaçadora, não há muito o que possamos fazer ou dizer para ajudar alguém, mas sempre podemos tentar conscientizarmo-nos do momento presente e não morder o anzol. Há pouco tempo, recebi uma carta do meu amigo Jarvis Master, um prisioneiro condenado à morte, na qual me contou que há muitos momentos de tanta violência na prisão que tudo o que ele pode fazer é não prejudicar ninguém e não cair nas garras da força sedutora da agressão. As histórias nem sempre têm um final feliz.

            Se você exercer uma profissão em que interage com pessoas violentas, sabe que não é fácil evitar ser fisgado. Mas podemos perguntar: “Como posso lidar com pessoas de quem discordo com uma mente aberta?”; “Como posso ver e ouvir com mais profundidade, além das minhas ideias fixas?”; “Como posso tratar pessoas que estão em um ciclo de violência, que se magoam, como seres humanos como eu?” Sabemos que se abandonarmos alguém com as nossas ideias preconcebidas, com nossas mentes e corações fechados, nunca conseguiremos nos comunicar genuinamente, e podemos com facilidade exacerbar a situação e fomentar mais sofrimento.

            Subjacente ao ódio, subjacente a qualquer ato ou palavra cruel, ou ao desprezo por outro se humano, há sempre o medo, um medo totalmente infundado. Esse medo é maleável. Ele ainda não se congelou em uma posição rígida. Por mais que o detestemos, o medo não obrigatoriamente provoca agressão ou o desejo de ferir a nós mesmos e aos outros. Quando sentimos medo ou ansiedade, ou qualquer sentimento infundado, ou ao percebermos que o medo já está nos causando pensamentos como “tenho de me vingar” ou “preciso recorrer ao meu vício para escapar”, pense nesse momento como neutro, um momento que pode seguir em qualquer direção. Temos o tempo inteiro de escolha diante de nós. Voltamos aos antigos hábitos destrutivos ou encaramos nossas experiências como uma oportunidade e apoio para ter um novo relacionamento com a vida?

            A consciência e a percepção básicas e a abertura natural estão sempre disponíveis. Essa abertura não precisa ser fabricada. Ao fazermos uma pausa, quando sentimos a energia do momento, diminuímos o ritmo, propiciamos um intervalo, e atraímos a abertura autoexistente. Isso não requer um esforço especial. Está disponível a qualquer instante. Como Chögyam Trungpa observou, “A abertura assemelha-se ao vento. Se abrir suas portas e janelas, ele entrará”.

            A próxima vez que se irritar, experimente olhar para o céu. Vá até a janela em sua casa ou no escritório e olhe o céu. Uma vez, li uma entrevista de um homem que contou que, durante a Segunda Guerra Mundial, ele sobreviveu à prisão em um campo de concentração japonês olhando para o céu, as nuvens movendo-se e os pássaros voando. Isso lhe deu confiança na bondade da vida, apesar das atrocidades que testemunhava.

            Em geral, quando domos fisgados, estamos tão absorvidos por nossa história que perdemos a perspectiva. Quando nos defrontamos com a dificuldade da situação dolorosa em casa, no trabalho, na prisão, na guerra, onde quer que seja, nossa perspectiva com frequência fica muito reduzida, até mesmo microscópica. Temos o hábito automático da introversão. Ao reservar um instante para olhar o céu ou alguns segundos para sentir a energia fluida da vida, passamos a ter uma perspectiva maior – a de um universo casto, onde somos um ponto minúsculo no espaço, e que o espaço sem fim e sem início está sempre à nossa disposição. Assim, poderemos entender que nossa situação difícil é passageira e que temos a escolha de fortalecer nossa reações habituais ou nos libertarmos. A atitude de estar aberto e receptivo aos acontecimentos é sempre mais importante do que se exaltar e acrescentar mais agressão ao planeta e poluição à atmosfera.

            Qualquer coisa que aconteça é a oportunidade certa para mudar a tendência básica de ser fisgado, de ficarmos estressados, de fecharmos nossas mentes e corações. Sempre que se conscientizar, sentir ou pensar é o estímulo perfeito para fazer uma mudança fundamental em direção à abertura. A abertura natural tem o poder de dar sentido à vida e de nos inspirar. Com apenas um momento de percepção da presença da abertura natural, aos poucos notamos que a inteligência e a cordialidade naturais também são presentes. É o mesmo que abrir a porta para a  amplidão, o tempo infinito e a magia do lugar onde estamos.

            Ao acordar de manhã, mesmo antes de sair da cama, se estiver amedrontado ou talvez mortalmente entediado com a rotina de sua vida, abra os olhos e respire fundo três vezes. Fique onde está. Quando você está em fila de espera, faça um intervalo em sua mente discursiva. Você pode olhar suas mãos e respirar, olhar pela janela para a rua ou para o céu. Não importa o que olhar ou se vai prestar atenção a um detalhe. Você pode deixar que a experiência seja um contraste de ser aprisionado, deixe-a ser um pipocar em uma bolha, algo momentâneo.

            Quando meditamos, todas as vezes que percebemos que estamos pensando e que deixamos nossos pensamentos dispersarem-se, nesse instante a abertura está à nossa disposição. Chögyam Trungpa chamava isso de “libertar-se de uma mente fixa”. Sempre que a respiração dissipa-se no espaço, essa abertura está disponível. Em qualquer momento em que se concentrar no imediatismo de sua experiência, você pode olhar para o chão ou para o teto, ou apenas sentir suas nádegas sentadas na cadeira. Você entende o que e eu quero dizer? Você é capaz de estar presente. Em vez de alienar-se, ou de se aprisionar, absorto em seus pensamentos, planejamentos, preocupações, preso no casulo onde não tem acesso aos seus sentidos perceptivos, aos sons e às visões, ao poder e à mágica do momento, você pode escolher fazer uma pausa. Quando fizer um passeio no campo, na cidade, ou em qualquer lugar, pare de vez em quando. Paute sua vida por esses instantes.

            Na vida moderna é tão fácil ficarmos absorvidos, em especial por computadores, televisão e celulares. Eles são hipnotizadores. Enquanto estivermos no piloto automático, movidos por nossos pensamentos e emoções, nós nos sentiremos oprimidos. Não faz muita diferença se estarmos em um centro tranquilo de meditação ou no lugar mais agitado e envolvente. Em qualquer situação, é possível fazer uma pausa e atrair a abertura natural. Cada vez mais, seremos capazes de abrir espaço para conscientizarmos-nos de onde estamos, de perceber como nossa mente é ampla. Encontre uma maneira de acalmar-se. Encontre uma forma de relaxar sua mente e faça isso com frequência, com muita, muita frequência ao longo do dia, não só quando se sentir fisgado, mas o tempo inteiro.

            A questão decisiva é que nos relacionamos com a vida tal como ela se apresenta no momento e não mais tarde quando as circunstâncias melhoram. Podemos sempre nos conectar com a abertura de nossas mentes. Devemos usar nossos dias para despertar em vez de voltar a dormir. Tente fazer essa abordagem. Comprometa-se a fazer uma pausa durante o dia sempre que possível. Dê  um tempo para sua percepção mudar e para vivenciar a energia natural da vida como ela se manifesta no momento exato. Isso pode causar mudanças radicais em sua vida pessoal, e, se estiver preocupado com a situação do mundo, essa é uma maneira de usar todos os momentos para ajudar a modificar o clima agressivo em direção à paz.

Trecho retirado do livro ”O SALTO” de Pema Chödrön

Pema Chödrön é uma monja, que pratica na tradição do budismo tibetano. Foi uma discípula de Chögyam Trungpa Rinpoche, cujos ensinamentos ela continua a disseminar entre estudantes ocidentais do mundo inteiro. Nascida na cidade de Nova York, em 1936, Pema tem 2 filhos adultos e 2 netos. Formada pela Universidade da Califórnia, em Berkeley, foi professora primária por muitos anos, no Novo México e na Califórnia. Pema já havia passado dos 30 anos quando se ligou pela primeira vez aos ensinamentos budistas. Em 1971, ela viajou para os Alpes franceses, onde encontrou o Lama Chime Rinpoche, com quem estudou por muitos anos. Tornou-se uma noviça em 1974, enquanto estudava com Lama Chime, na Inglaterra.

O primeiro encontro de Pema com seu guru-raiz, Chögyam Trungpa Rinpoche, foi em fevereiro de 1972. Lama Chime encorajou-a a trabalhar com Trungpa Rinpoche e foi com ele que Pema, finalmente, se ligou mais profundamente. Pema estudou com Trungpa Rinpoche de 1974 até a morte de dele, em 1987, recebendo dele sua ordenação plena em 1981. Pema continuou a estudar com grandes mestres das linhagens Kagyü e Nyingma do budismo tibetano.

Atualmente, Pema é professora residente na abadia Gampo, um centro monástico situado em uma área de duzentos acres, à beira-mar, sobre as falésias do cabo Breton, na Nova Escócia, no Canadá. Pema é uma Acharya (professor senior) de Shambhala International e, quando não está em retiro fechado, na abadia Gampo, viaja pela Europa, Austrália e América do Norte, ensinando a grandes audiências.

Pema Chödrön é a autora de  “Comece onde você está“, Editora Sextante, “Os lugares que nos assustam” e “Quando tudo se desfaz”, Editora Gryphus.

Mais Pema Chödrön:

Comentarios:

comments

  • Marcos Pinheiro

    Interessante e elucidativo. Pena que não tenha nome do autor/autora.

  • Ronaldo M. B. Barcellos

    Simplesmente maravilhoso, inteligente, interessantíssimo, cativante, motivador, esclarecedor, objetivo e abrangente!

  • REALMENTE PRECISAMOS NOS DESLIGARMOS DOS PENSAMENTOS COLÉRICOS E APRENDERMOS A CULTIVAR PENSAMENTOS SAUDÁVEIS A NÃO PERMITIR QUE VENHAMOS A CONSTRUIR CARMAS NEGATIVOS.

    OBRIGADO PELO MARAVILHOSO TEXTO !

  • PAULO OLIVEIRA

    Que MARAVILHA!!! Que PRESENTÃO!!!
    GRATO, GRATO, GRATO…