A 1ª onda: a distorção dos filósofos. "As três grandes ondas de distorção do budismo no ocidente"

Por Padma Dorje. 

Com a exceção de alguns contatos da cultura grega antiga com o oriente, o budismo só é estudado pelos ocidentais há 300 anos. Ainda assim, apenas na década de 1990 pode-se dizer que o trabalho acadêmico sobre budismo, bem como parte da visão pública, começou a realmente se aproximar e tentar reconhecer o fenômeno cultural budista sem impor tantas projeções ou distorções modernas/ocidentais. Não obstante, o peso de 300 anos de interpretações parciais e traduções duvidosas mantém vivas várias visões peculiares sobre os ensinamentos. Neste texto publicado em três partes tratarei de três grandes ondas de distorção dos ensinamentos budistas no ocidente: 1) as vindas do iluminismo e do pensamento da elite europeia, particularmente da filosofia de Schopenhauer; 2) as conectadas com o romantismo e seus derivados, principalmente os aspectos de misticismo, irracionalismo e universalismo da Teosofia, C. G. Jung, W. Y. Evans-Wentz e D. T. Suzuki; 3) e as vinculadas com a contracultura (beats e hippies), bem como desafios da cultura de consumo e da era da informação. Todas essas distorções, é claro, também possuem seus méritos relativos.

 As três grandes ondas de distorção do budismo no ocidente – Introdução

  O uso da palavra “distorção” no título desse texto é cuidadoso. Mais do que simplesmente tentar retificar as tantas apreciações do budismo na cultura global, e assim reificar uma versão “pura” dos ensinamentos, este texto visa apontar algumas tendências ainda muito vivas na visão pública e mesmo na prática privada de interessados pelo budismo em meio ao presente estado de ultramodernidade. Essas tendências podem em alguns casos conter efetivos equívocos e corrupções do ensinamento do Buda, mas de modo geral trata-se apenas da ênfase demasiada de certas características de fato presentes nos ensinamentos, mas que de forma alguma teriam tanta relevância nos contextos tradicionais. Em outros casos, mais raros, há a efetiva corrupção dos ensinamentos.

  No cerne dessa discussão temos o papel do professor e da comunidade (a sangha) em “receitar” os textos e práticas que, segundo sua avaliação criteriosa, são melhores para um determinado praticante – uma vez que o darma é extremamente vasto e ninguém é capaz de dominá-lo completamente para só então começar a praticar. Há uma analogia presente nos ensinamentos que diz que isso seria o equivalente a estar com uma flecha fincada no olho e querer discutir, antes de qualquer procedimento para aliviar a dor, os detalhes da cirurgia com o médico.

  Nossa tendência, como seres imersos na modernidade (seja lá qual versão desta, mas desde o séc XIX, sem dúvida) é querer individual e pessoalmente “escolher” este ou aquele pedacinho dos ensinamentos que conseguimos entender, e que por acaso não ofenda nossos hábitos e preconceitos arraigados, para (só então talvez) praticar essa versão arbitrariamente customizada do darma e chamar a coisa toda de budismo. Essa tendência faz parte do contato do budismo por parte de “convertidos”, isto é, gente que não se criou dentro da tradição, e que sim opta por ela – mesmo que como mero “interessado” e não alguém que quer explicitamente, necessariamente, “virar budista”. Isto é, todos os leitores de um texto em português basicamente se enquadram, hoje, 2015, nessa categoria. Temos algumas poucas crianças que se criaram em centros de darma, mas mesmo estas tiveram sua educação e convívio em termos absolutamente seculares, e ainda que tenham maior contato com os ensinamentos, precisam, como todos nós, optar ou não pelo caminho budista. Isso, pela globalização, também é assim hoje para os países asiáticos, mas não foi o caso por centenas de anos em dezenas de culturas, onde a pessoa simplesmente nascia naquele contexto e seguia a educação formal e informal disponível, que era voltada para o darma. Os ensinamentos eram muitas vezes apresentados nesse contexto e com essas expectativas.

  Enquanto cultura, e de acordo com a época com que os textos budistas são traduzidos e comentados por ocidentais, encontramos os sabores particulares das visões temporais que se deparam com o darma. Esses sabores constituem particularidades que muitas vezes efetivamente se tornaram hábitos culturais comuns ao longo das décadas e séculos, ora porque impressos e vindos de certa elite intelectual ou outra, ora porque se encaixam novamente, vez que outra, com as expectativas de públicos de lugares e tempos específicos.

  Este texto tem três partes.

  Em primeiro lugar tratarei das primeiras tentativas ocidentais de produzir sentido do “orientalismo” particular que se referia à tradição budista. As primeiras traduções de textos budistas vem dessa época que vai do séc. XVII ao XIX – agrupadas aqui apesar do vasto período em questão por ocorrerem antes da primeira tentativa sistemática de traduzir os ensinamentos com algum grau de colaboração em algum modo de “igualdade” com a tradição estabelecida na Ásia, o que só veio a ocorrer, ainda que muito timidamente, no fim do séc. XIX. Nesta primeira grande distorção, temos a formação de uma idealização do budismo como algo bastante racionalista,  por projeção do pensamento iluminista, e que “cunhou”, por exemplo, a própria tradução de bodhi como iluminação – sendo que, de fato, muitas outras terminologias que usamos ainda hoje para traduzir o darma vem do jargão filosófico do início da modernidade (a apropriação da palavra fenômeno para traduzir darma, por exemplo). A culminância dessa distorção é representada pela obra de Arthur Schopenhauer, ainda hoje associada com o budismo por alguns setores sem qualquer exame quanto a alguma peculiaridade possível ter ocorrido nessa leitura primitiva. Apenas dentro da tradição budista estabelecida se vai encontrar gente dizendo que a visão do filósofo não é muito acurada: a academia, modo geral, e particularmente a academia dos rincões incultos, o toma como entendimento acurado do budismo. De fato, em alguns âmbitos acadêmicos, budismo é simplesmente o que Schopenhauer descreveu, o que revela um tanto sobre nosso etnocentrismo.

 Em segundo lugar, como uma reação a essa visão racionalista, o romantismo alemão começou a fazer sua própria interpretação do Buda e de sua relevância, e aspectos misteriosos ou irracionalistas começaram a ser valorizados. A partir do aspecto “misterioso” temos o fenômeno ocultista próprio do início do séc. XX, interpretando e propagando versões próprias de alguma mescla de hinduísmo com budismo, de onde, por exemplo, palavras hoje correntes como carma e maia, foram popularizadas (com sentidos bastante bastardos) – dentro da ideia de universalismo, isto é, que todas as religiões, no fundo, sejam a mesma coisa – o que, apesar de simpático a princípio, facilmente se torna um risco ao reduzir o budismo a essa coisa que se quer que todas as religiões sejam. E enfim as traduções de W. Y. Evans-Wentz, juntamente com as introduções de C. G. Jung ajudaram a compor uma visão do darma de sabor bastante particular, e que ainda estão bastante vivas em certos nichos. Já o aspecto “irracionalista” culmina com a interpretação do Zen por alguns autores, especialmente D. T. Suzuki.

 Em terceiro lugar, como desenvolvimento direto disso, temos o budismo “liberal” que surge da contracultura hippie e beatnik, e da derrota dessa contracultura, e que se depara com e precisa enfrentar elementos próprios da modernidade como valores globalizados tais como democracia, feminismo, universalismo, multiculturalidade, a espiritualidade como um produto de consumo, e assim por diante. É um problema que vai além da modernidade dos convertidos e atinge o budismo tradicional, uma vez que como os valores se tornam globalizados, a sobrevivência própria da tradição depende de adaptação.

  É certo que o budismo, e todos os seres que sofrem, se beneficiam da popularidade dos ensinamentos, ainda que ela se dê por caracterizações imperfeitas dos ensinamentos. Se o budismo pensasse em termos de relações públicas, talvez visões do budismo ligadas ao livre pensamento e ao poder progressista da razão, poderes misteriosos e universalismo religioso ou “paz e amor” descolados, fossem bem úteis dependendo do nicho particular do público visado. Porém, se por um lado o darma pode ser caracterizado dessas formas e isso não chegar a ofender (muito) a pureza dos ensinamentos, sem dúvida tratam-se de, no mínimo, visões limitadas – e já clichês esvaziados pela datação, até mesmo facilmente reconhecíveis como contraditórios uns com os outros. Ainda assim, nos meus poucos anos de praticante do darma, ainda estou para ver conversa com iniciante ou interessado que não recaia neles.

 

Primeira onda: a distorção dos filósofos

  Os primeiros autores que discutiram e trataram do budismo no ocidente foram condicionados por dois fatores que, como se vai ver, intensificavam um ao outro. Com os valores do humanismo secular em alta, pela primeira vez se faz um olhar crítico, explícito, sobre as “velhas visões”, isto é, a tradição judaico-cristã. Junto com isso, pela primeira vez se olha para outros povos com alguma simpatia humanista: eles, que não estão condicionados por nossos valores sem dúvida obsoletos e fracassados, por certo podem ter algo novo a nos dizer.

  Dessa forma o que se via de errado ou ruim com os próprios valores tradicionais, era projetado em inverso no “bom selvagem” oriental, que por não ser exatamente selvagem, era ainda mais fascinante.

  O budismo em particular, dentre todas as formas de pensamento oriental, desponta na mente dos estudiosos europeus como esclarecimento racional. Afinal, o Buda de fato disse, no Sutra dos Kalamas, que algo não deve ser aceito apenas porque é tradicional, ou porque alguém importante disse, mas só quando for verificado pessoal e empiricamente. Ou pelo menos a citação mais famosa do sutra nos leva a ver sobre essa ótica – talvez a leitura do texto inteiro tornasse mais flexível essa epistemologia de livre-pensador onipotente perante as investigações que faz e decisões que toma, mas isso raramente ocorre.

  Até hoje este aspecto dos ensinamentos é nosso mais forte contato com a modernidade. Autores chegam a chamar o budismo de uma forma de “ciência da mente”, e não mero blábláblá filosófico ou superstição religiosa. E a maioria das pessoas, inclusive o autor deste texto, evita caracterizar o budismo como a simples ideia de uma “religião asiática”, fundada por fulano, e com tais e tais dogmas.

  Entre vários outros aspectos, a distorção central que surge disso diz respeito principalmente às noções budistas sobre renascimento. Enquanto que a meditação e principalmente as considerações éticas do darma foram quase sempre bem aceitas pela comunidade pensante da Europa, as várias noções de renascimento comuns nas religiões asiáticas e em algumas visões antigas do ocidente, conflagradas na noção de “reencarnação”, não tiveram a mesma aceitação. (E quando a tiveram, foi pelos motivos errados, como apego por familiares, vidas passadas supostamente glamorosas, extensões da doutrina freudiana de trauma, ânsia por alguma forma de imortalidade, desejo de prolongamento de uma existência pessoal, e noções lineares e progressivas de retribuição cármica, isto é, evolução sem percalços graves – todas elas visões incompatíveis com o darma).

  Ainda assim a verdade é que o “budismo sem renascimento” tornou-se uma tradição no ocidente, com centenas de livros publicados, e até mesmo um centro reconhecível, que é a Universidade de Oxford. Hoje boa parte daqueles que praticam meditação no contexto budista no ocidente prefere uma interpretação não literal e bastante mítica dos discursos em que o Buda fala de vidas passadas. Essas pessoas facilmente encontram “professores”, ou pelo menos autores famosos, que corroboram seus vieses e hábitos mentais redutores.

  O budismo de fato geralmente se encontra numa sinuca de bico com relação a esse assunto: as pessoas no ocidente que aceitam a noção, a aceitam em parâmetros bastante incompatíveis com o darma budista – e a maioria simplesmente a considera uma noção embaraçosa, ou mesmo é hostil quanto a ela. Mas por que a noção de renascimento seria essencial para os ensinamentos budistas?

  O renascimento no budismo é um conceito mais difícil para a maioria das pessoas porque o budismo considera falsa qualquer noção de pessoalidade ou identidade, e algumas veem nisso uma contradição – ainda que respostas sobre isso sejam dadas e estejam registradas em textos sobreviventes de dois séculos depois de Cristo. O que renasceria então? As forças de hábito que levam ao engano quanto a uma identidade. Apenas seres extremamente corajosos (isto é, bodisatvas) deliberadamente renasceriam, por compaixão com os seres presos nessa ilusão. Os outros seres renascem como parte do seu processo de sofrimento e engano quanto à noção de uma identidade pessoal, e mais sofrimento. Normalmente, da mesma forma que durante nossa vida, não somos a “mesma pessoa” que éramos 20 anos atrás, mas continuamos sendo; na próxima vida o mesmo tipo de lógica dupla embasada no engano segue: somos a mesma pessoa, mas já somos outra.

  Portanto, o renascimento no budismo não é motivo de conforto. Renascer, modo geral, se dá de forma incerta, prolongando o sofrimento e muito provavelmente impedindo que se continue praticando o darma, uma vez que nenhuma das condições encontradas nessa vida estará necessariamente presente na próxima. O escopo do renascimento é vasto: não se fala muito em últimas 10 ou 20 vidas, mas em incontáveis existências, onde cada um dos seres (inclusive insetos) já foi nossa mãe bilhões de vezes (o que, se você conta para sua mãe, já acaba um pouco com a noção de identidade dela como sua mãe). Essa vastidão numérica no passado – e no futuro, caso não se interrompa esse ciclo através da prática do darma – implica em muita incerteza e caos com relação a condições futuras. Isto é, a determinação cármica, de que o sofrimento advém de nossas ações, não se dá tão linearmente a ponto de podermos saber quando uma ação negativa vai frutificar como sofrimento. Isso pode ocorrer quase imediatamente, ou, por uma miríade de condições, modo geral nada evidentes para o agente, daqui milhares de existências.

  Como a ética budista é embasada nessa noção de carma, se temos apenas essa vida, o mais lógico seria talvez efetivamente roubar mesmo um banco – já que raramente reconhecemos a retribuição cármica de um ato determinado, e a maioria de nossos sofrimentos efetivos não tem explicação nesta vida. Nessa visão, se prejudicamos outra pessoa, isso logo cessará com nossas respectivas mortes – não restará nem consciência pesada quanto a atos passados. Uma ruptura completa na questão da moralidade elimina boa parte dos racionais, estabelecidos pelo próprio Buda, para a ação virtuosa.

  Mesmo a noção de compaixão e de interconexão com todos os seres se torna limitada.

  Isto não quer dizer que uma pessoa para ser praticante budista precise aceitar necessariamente o renascimento: mas ela certamente não pode negá-lo. E de fato, não há bons motivos para negar o renascimento, pelo menos enquanto possibilidade, fora não ser algo que preenche as expectativas e o senso de moda da elite pensante atual. “Inexistência de evidência não é evidência de inexistência” é uma máxima muitas vezes repetida em círculos científicos, e ela se aplica perfeitamente nesse caso. Mesmo considerar o renascimento um mero “exercício de pensamento” gerará sem dúvida uma interdependência forte com os ensinamentos budistas, o que facilitará (ou possibilitará) sua compreensão. De outra forma, se está seguindo uma versão diluída da versão de algumas pessoas preconceituosas.

  Embora a pessoa não precise aceitar o renascimento como fato ou mesmo como crença obrigatória, ela deve no mínimo ser capaz de trabalhar com a ideia, caso contrário o budismo praticado será absolutamente débil, e sem dúvida descaracterizado.

  Mas outros elementos reconhecidos como “supersticiosos” se perdem na visão do budismo filtrada pelo iluminismo racionalista, que na sua versão atual está vinculado com o que consideramos ser “visão científica”. Dois outros elementos são bastante essenciais: devoção e o que chamamos de “rituais”, o que por si só em nossa cultura já tem uma noção pejorativa de repetição sem reflexão e teatralidade vazia.

  Embora absolutamente todas as versões de budismo existentes na Ásia trabalhem com essas noções, o budismo tibetano chegou a ser levado ao escanteio por “orientalistas” com a palavra pejorativa “lamaísmo”, devido à ênfase nesses dois elementos. O imperialismo etnocêntrico é tamanho que especialistas ocidentais se consideraram, desde muito cedo, capazes de determinar o que é ou não ensinamento budista – mais do que a própria tradição. E essa tendência segue até hoje, não sendo raro palestras acadêmicas onde o Cânone Páli é tido como o único registro autêntico de ensinamentos budistas, e as outras formas vistas como meras corruptelas – passando por cima da vida religiosa e da devoção pelo Buda de incontáveis grandes praticantes budistas ao longo da história.

  É fato que o Cânone Páli representa o que são provavelmente os ensinamentos mais antigos disponíveis (embora as fontes primárias de outras tradições sejam mais antigas). Mas o sectarismo acadêmico europeu simplesmente reifica, a princípio, e em centros particulares (por exemplo Oxford) parte do sectarismo que já existia na Ásia. As tradições do Cânone Páli são favorecidas porque, aparentemente, são mais acessíveis ao tipo de distorção proposto por Schopenhauer, e talvez pelo iluminismo antes dele (embora se tivesse ainda menos noção sobre as especificidades e diferenças da vastidão de tradições budistas existentes na Ásia).

  Embora o aspecto dos ensinamentos budistas que diz que tudo que o Buda pode fazer é ensinar o darma, e que a aplicação destes ensinamentos depende apenas de nós mesmos seja muito validado e verdadeiro, modo geral dependemos, enquanto praticantes, continuamente das Três Joias. O Buda nos fornece a inspiração, sendo o exemplo de alguém que completou o caminho. E o professor vivo que representa a linhagem do Buda representa a forma pura da comunidade, que também possui pessoas com dificuldades similares às nossas, e que fornece exemplos nesse sentido.

  E enfim os próprios ensinamentos não são óbvios e naturais, pelo menos para a maioria de nós que sustenta todo tipo de visão arbitrária: eles precisam ser estudados com esforço. Com esses três elementos: inspiração,  apoio direto e explicações contínuas e detalhadas, aí é possível colocar os ensinamentos em prática e fazer a verificação empírica tão prezada pela visão ocidental.

  Esses elementos todos podem até ser mais enfatizados por determinadas tradições budistas, mas são comuns a absolutamente todas.

 Quanto a recitações, oferendas, altar, cerimônias simples ou elaboradas, e toda uma riqueza de elementos que muitas vezes são simplesmente confundidos com armadilhas culturais, o fato é que o darma também confia em carma e renascimento em termos dessas experiências. Os sons, cores e o “algoritmo” de uma sadhana vajrayana, ou os detalhes tácitos de uma cerimônia de chá, servem não só para ocupar a mente durante uma meditação que não vai encontrar diferença entre a formalidade e a vida cotidiana (cheia de outros tantos rituais mundanos), e fazer obrigatoriamente ela reconhecer que não é o conteúdo da mente ou as ações externas que determinam se a meditação está presente ou não, mas também para criar um hábito forte, que supostamente ultrapassa uma só vida. Se hoje temos afinidade e facilidade com certas noções e práticas, é porque já temos os “receptores” mentais formados pela atividade contínua em meio a essas coisas vida após vida. E, mais do que isso, se vemos valor nos ensinamentos e reconhecemos a atemporalidade e a interconexão, percebemos que criar hábitos que nos vinculem e aproximem com o darma é crucial para que a prática prossiga. Essa confiança na interdependência com o darma que revela a natureza da realidade além de todas as ilusões é de fato parte essencial da prática.

   Cada elemento de qualquer atividade dármica, elaborada ou simples, nos conecta diretamente com ensinamentos e valores budistas através de símbolos e da formação do mero hábito mental de considerar essas coisas repetidas vezes. Em outras palavras, são uma forma escancarada de autolavagem-cerebral. Ao reconhecer que determinados hábitos mentais levam a uma vida melhor e possibilitam as práticas que revelam a sabedoria inata, nos engajamos em todo tipo de atividade que fortaleça essa conexão.

   Enfim, Arthur Schopenhauer vinculou sua filosofia ao budismo, e até hoje a visão prevalente em alguns círculos menos atualizados, do que seria o budismo, é que ele teria algo a ver com pessimismo.

  Para sermos exatos com relação a essa minha afirmação, e a permanência de visões desse tipo, basta ver o livro do Papa João Paulo Segundo em que ele fala sobre o budismo, que foi elaborada principalmente pelo então Cardeal Ratzinger. Ali não só é destilado todo tipo de ataque ao budismo, mas a caracterização do budismo utilizada como espantalho para ser surrado vem da filosofia de Schopenhauer. Isto é, o budismo seria algo triste, que não vê a alegria no mundo como criação de Deus, e assim por diante. (Thinley Norbu Rinpoche escreveu uma brilhante resposta a essa encíclica em “Flores de boas-vindas do limpo limiar da esperança”.)

  Schopenhauer, além de misturar suas visões próprias com o darma, e as interpretar de sua forma particular, o que pode acontecer em qualquer tempo, naquela época nem mesmo tinha como conhecer bem o budismo, uma vez que as primeiras traduções, para ser bem generoso, não produziam muita compreensão.

  É certo que a primeira nobre verdade diz respeito à insatisfatoriedade de todas as coisas compostas. Não é exatamente o sofrimento num sentido romântico alemão, mas o fato de que mesmo as melhores coisas deste mundo não são verdadeiramente suficientes. Disso Schopenhauer buscou interpretar como segunda nobre verdade uma “aniquilação da vontade”, uma aniquilação da pessoa, que até hoje é confundida com o budismo. Mesmo a tradução “o desejo é a causa do sofrimento” não é perfeita. O texto diz trishna, que é algo mais próximo a sede, ou sofreguidão, fissura, fixação. Na verdade, a expectativa de obter felicidade destas coisas é a causa da insatisfatoriedade, porque elas não podem prover felicidade.

   A “cessação” que é a tradução mais acurada para nirvana, diz respeito às três emoções aflitivas principais, ou “três venenos”: indiferença, apego e aversão. (“Ignorância, raiva e desejo” na tradução mais clássica usual. O principal sendo a ignorância, que é uma forma de torpor indiferente ou confusão em que uma visão automática e “normal” se instala, de forma que a realidade – que impede que depositemos expectativas equivocadas em fenômenos compostos que são necessariamente insatisfatórios – não é reconhecida.) São as três emoções aflitivas que cessam, não surgem mais na mente.

  Disso não se obtém nenhuma noção amargurada da realidade, mas realismo quanto às coisas do mundo, e mais do que isso, a alegria e deleite supremo em reconhecer que as coisas são assim, e em se estar num caminho estruturado (a quarta nobre verdade, que Schopenhauer simplesmente ignorou). Modo geral os budistas não são seres angustiados, sombrios, como um alemão irascível poderia conceber no início do séc. XIX. Uma das qualidades que efetivamente se pratica é o contentamento e a alegria. Um exemplo extremo do tipo de alegria, talvez excêntrica ou esquisita para nossos padrões, é Milarepa cantando de felicidade quando uma de suas únicas posses, uma tigela coberta de restos de urtiga (seu principal alimento), quebrou. Até mesmo algo que poderia ser considerado o cúmulo da infelicidade, levou Milarepa a gargalhar, como se ele por algum instante pensasse que aquela tigela fosse eterna. Milarepa riu como rimos após nos atrapalharmos, e reconhecemos que, no fundo, nada aconteceu: nada se quebrou que não pudesse se quebrar. Não há nada de triste em nada disso.

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  Da visão de Schopenhauer caímos em Nietzsche, que não discutiu as fontes do pessimista, mas criticou seus resultados sem nunca chegar a pensar em verificar se aquilo se aplicava mesmo aos budistas. Em 2012 um pesquisador (McDonald, Nietzsche’s Reception of Buddhist Psychology With Constant Reference to Christianity) listou todas as obras a que o filósofo teria tido acesso com relação ao assunto: 9 livros sobre religião oriental, todos em alemão, dois emprestados da biblioteca. Dois deles (!) eram sobre budismo, sendo que nenhum era tradução de qualquer fonte primária, mas elaborações de alemães, ainda mais descredenciadas que as dele. Que isso tenha ocorrido bem mais de um século atrás, não é surpreendente. Que até hoje pessoas sustentem a crítica de Nietzsche ao budismo como embasada num entendimento relativamente correto do darma, isso é ultrajante.

  Sem entrar em quanto Nietzsche podia estar errado por si só, sem sequer mencionar o budismo – e ele é idolatrado por gente que talvez nem seja capaz de inferir algumas de suas ironias, ou por gente que regozija na sua abjeta transformação da arrogância num dever ético – o fato é que a autoajuda teutônica de “afirmação da vida” através da “glória” do “grande sofrimento” de “grandes homens” é particularmente vil na visão budista.

  Ora, a alegria no budismo é um valor a ser cultivado, e se encontra principalmente em observar as qualidades dos outros – de forma equânime, uma vez que todos possuem qualidades. Essa é uma alegria sem limites a ser cultivada pelo praticante. Além disso, há a alegria em esforçar-se no darma, em entendê-lo e divulgá-lo – em se deparar com obstáculos no caminho como quem se depara com algo muito curioso, interessante.

  Não é possível alguém ser médico e ter nojo de infecções, fezes, ou do interior do corpo de um doente. Um bom médico desenvolve um gosto por resolver uma situação difícil, ele não vê a situação difícil do outro com aversão – mesmo os psiquiatras. Se encara com aversão, não vai tratar direito.

  Da mesma forma, os Budas salivam perante a ignorância do samsara, porque é uma oportunidade de expressar a atividade, ora, dos Budas, que é a compaixão e sabedoria. Não há nenhum tipo de amargor, ressentimento ou angústia. E tampouco uma inversão masoquista do ser pisoteado pela vida em “papo de filósofo” de que, no fundo, essa é uma grande e boa coisa.

  O experimento de pensamento do “eterno retorno” em Nietzsche pode até ter se inspirado na ideia de samsara, mas não é de forma alguma igual a este. No budismo não fazemos “as mesmas coisas” cada vez. Em certo sentido, dá para dizer que são coisas de um mesmo tipo – mas o experimento de pensamento de Nietzsche leva em conta que tudo acontece vez após vez, igual, daí o amor fati, etc.

  O ciclo de renascimentos é a experiência dos seres imersos em ignorância, não é algo que realmente existe ou realmente ocorre. É um sonho da ignorância. A experiência dos Budas não há retorno algum, e essa experiência é que é real. De toda forma, a experiência dos seres ignorantes também não é exatamente o que Nietzsche descreveu – o amor fati nietzschiano é o recalque transformado em troféu, a oportunidade perdida transformada em alguma fantasia de vitória por um truque filosófico. Não que os Budas, ao se iluminarem, não olhem para tudo que fizeram como se fosse iluminado desde o princípio: apenas que esse olhar equânime, aplicado a todos os seres, não redunda em nenhum tipo de glória. Os sugatas são aqueles “que foram para além dos extremos do samsara e do nirvana em êxtase”, em que nada está determinado nos quatro tempos, passado, presente, futuro ou atemporalidade: porque todas as experiências duais são feitas de tecido de sonho – é nessa liberdade que vivem os Budas. Eles não impedem que seu olhar pouse sobre qualquer coisa, numa equanimidade ainda maior do que a proposta por Nietzsche – mas não dizem “sim” para absolutamente tudo: essa é uma visão extrema. O êxtase dos Budas está além dos extremos de dizer sim, ou não: é um “mesmo sabor”, mas por compaixão e liberdade a discriminação da sabedoria segue operante. Não está na mera aceitação de uma sucessão de particulares, mas no reconhecimento da interconexão de tudo com tudo mais. É outro tipo de glória, e não fica só no papel.

  Por outro lado, na visão popular, o que realmente ficou do budismo (e é reforçado pela academia) é a visão anterior, a visão iluminista do budismo como religião racional, científica. Como o cientismo é a ideologia dominante de nossa era, isso ajuda muito o budismo em termos de Relações Públicas, mas, como se viu, não é nada livre de distorções – e essas distorções são as mais antigas.

  Logo em seguida e concomitantes com Schopenhauer, no entanto, vieram os românticos, que gostaram dessa “curtição de fossa” do budismo, e logo agruparam no seu peculiar estilo dramático e teatral noções místicas e irracionalistas ao entendimento ocidental do budismo, o que será o assunto da próxima parte.


eduardo-pinheiro-1Padma Dorje é praticante budista e é autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos.  Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org. A segunda parte do texto já esta disponível, acesse aqui.

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  • Rigdzin

    Um fantástica expressão do budismo no ocidente é sintetizada no livro de Claudio Naranjo:

    Budismo dionisiaco
    Autor: Claudio Naranjo

    Claudio Naranjo lleva décadas enseñando un budismo que podría definirse como dionisiaco, con meditaciones guiadas en un contexto terapéutico donde se transmite una implícita fe en la espontaneidad y el instinto. «Mi manera de presentar la meditación tiene muy presente la idea de una complementariedad entre el no hacer y el fluir, el controlar la mente y dejarla libre, así como entre dos formas del desapego: la renuncia (apolínea) a los impulsos y la no interferencia (dionisiaca) ante la corriente de la vida».

    En sus meditaciones guiadas, Claudio Naranjo no solo integra Occidente y Oriente, sino también las tradiciones budistas Theravada, Mahayana y Vajrayana. Los practicantes son invitados a una meditación devocional basada en la música clásica; a un encuentro interpersonal silencioso de profundas implicaciones; a atender al dolor con alegría; a contemplar el espacio, la nada, el universo, la propia muerte o el presente eterno que somos, en un manual de meditación concebido como una guía para aprendices y expertos.

    • Com tanta coisa autêntica disponível, para que seguir o que parece invencionismo? Não temos todo tempo da vida para experimentar tudo, melhor procurar as boas e bem fundadas credenciais das instituições budistas.