O APEGO E A RAIVA são dois lados da mesma moeda. Por causa da ignorância e da divisão da mente na dualidade sujeito-objeto, nos agarramos a coisas que percebemos como externas a nós, ou então tentamos nos afastar delas. Quando encontramos algo que desejamos e que não podemos conseguir; ou quando alguém nos impede de alcançar aquilo que dissemos a nós mesmos que precisávamos ter; ou quando acontece algo que não se ajusta à maneira como gostaríamos que as coisas fossem, sentimos raiva, aversão ou ódio. Essas respostas, porém, não trazem benefício algum; elas apenas prejudicam. Com a raiva, e também com o apego e a ignorância – os três venenos da mente – geramos sofrimento sem fim.
Diz-se que não há mal que se compare à raiva: por sua própria natureza, a raiva é destrutiva, um inimigo. Dado que nem uma gota de felicidade jamais nasce dela, a raiva é uma das potentes forças negativas.
A raiva e a aversão podem levar à agressão. Quando prejudicadas, muitas pessoas sentem que devem retaliar, cobrando olho por olho. É uma resposta natural. “Se alguém me xinga, dou o troco e xingo também. Se alguém me dá um soco, leva outro de volta. É o que a pessoa merece”. Ou, ainda pior: “Esse indivíduo é meu inimigo. Se eu o matar, vou ficar feliz!”
Não damos conta que, se temos tendência à aversão e à agressão, os inimigos começam a aparecer por todos os lados. Encontramos cada vez menos coisas para gostar nos outros e cada vez mais coisas para odiar. As pessoas começam a nos evitar e ficamos mais isolados e solitários. Às vezes, enfurecidos, cuspimos palavras ásperas e ofensivas. Os tibetanos têm um ditado: “As palavras podem não carregar armas, mas ferem o coração”. Nossas palavras pode ser extremamente danosas, tanto pelo mal que causam aos outros quanto pela raiva que despertam. Com freqüência, estabelece-se um ciclo: uma pessoa sente aversão por outra e diz alguma coisa que a fere; a outra pessoa reage, dizendo algo fora do esquadro. As duas começam a pôr lenha na fogueira uma da outra, até que estejam travando uma batalha de palavras iradas. Sem dúvida, isso pode ser transposto para o nível nacional e internacional, onde grupos de pessoas se envolvem em agressão contra outros grupos e nações são jogadas contra nações.
Quando você deixa a aversão e a raiva tomarem conta de você, é como se, tendo decidido matar uma pessoa jogando-a em um rio, você se agarrasse ao pescoço dela, pulasse na água e os dois morressem afogados. Ao destruir seu inimigo, você também se destrói.
É muito melhor dissipar a raiva antes que ela possa conduzir a um conflito maior, respondendo a ela com a paciência. Compreender a responsabilidade que temos por aquilo que nos acontece ajuda a fazer isso. Tratamos nossa ligação com alguém que percebemos como um inimigo como se saída do nada. Mas, em alguma existência passada, talvez tenhamos usado palavras duras com aquela pessoa, maltratando-a fisicamente ou abrigando pensamentos raivosos em relação a ela. Em vez de procurarmos os defeitos dos outros, dirigindo nossa raiva e aversão contra situações que pensamos estar no ameaçando, deveríamos lidar com o verdadeiro inimigo. Esse inimigo, que destrói nossa felicidade a curto prazo e nos impede, em uma perspectiva mais longa, de alcançar a iluminação é a nossa própria raiva e aversão. Se a vencermos, não haverá mais brigas, pois deixaremos de perceber como inimigos os nossos oponentes – um grande retorno por pouco esforço. Tanto nós quanto eles teremos cada vez menos probabilidades de reincidir em situações que possam levar a um conflito. Todos saem ganhando.
Nossa tendência habitual é fazer contemplação, mas de maneira contraproducente. Se alguém nos insulta, geralmente ficamos remoendo o assunto, perguntamo-nos, “Por que ele me disse isso?”, vez após vez. É como se tivesse atirado uma flecha contra nós, mas o tiro saísse curto. Concentramo-nos no problema é como apanharmos a flecha e cravá-la em nosso peito repetidas vezes dizendo, “Ele me magoou tanto. Não consigo acreditar que fez isso”.
Um outra opção é usar o método da contemplação para refletir sobre as coisas de modo diferente, para modificar nosso hábito de reagir com raiva.
De início, como é difícil pensar com clareza em meio a uma discussão, começamos a praticar em casa, sozinhos, imaginando confrontos e novas formas de responder a eles. Imagine, por exemplo, que uma pessoa o insulte. Ela está enojada de você, dá-lhe um tapa ou ofende você de algum modo. Você pensa, “O que devo fazer? Vou me defender – vou retaliar. Vou expulsar essa pessoa da minha casa”. Agora, experimente outra atitude. Diga a si mesmo, “Essa pessoa me deixa com raiva. Mas o que é raiva? É um dos venenos da mente que gera sofrimento intenso. Contrapor raiva à raiva é como ir atrás de um louco que pula de um precipício. Será que tenho que fazer o mesmo? Se é insano da parte dele agir como age, é ainda mais insano da minha parte agir do mesmo modo”.
Lembre-se de que aquelas pessoas que agem de forma agressiva com relação a você estão apenas comprando o próprio sofrimento, criando, por ignorância, condições mais difíceis para si mesmas. Pensam estar fazendo o que é melhor para si, estar corrigindo algo errado ou impedindo que o pior aconteça. Mas a verdade é que esse comportamento não traz benefício algum. Em muitos aspectos, é como alguém que está com dor de cabeça e bate na própria cabeça com um martelo para tentar parar a dor. Em sua infelicidade, põe a culpa nos outros, os quais, por sua vez, ficam com raiva e brigam, apenas piorando a situação. Quando consideramos a condição difícil em que se encontram, damo-nos conta de que essas pessoas deveriam ser objeto de nossa compaixão, e não de raiva ou crítica. Então aspiramos fazer tudo o que está ao nosso alcance para protegê-las de mais sofrimento, como faríamos com uma criança que sempre se mete em travessuras, fugindo o tempo todo para a rua e que nos bate e arranha quando tentamos trazê-la de volta. Em vez de desistirmos daqueles que agem mal, precisamos compreender que estão procurando a felicidade, mas não sabem como encontrá-la. O papel de inimigo não é permanente. A pessoa que o fere hoje pode se ternar seu melhor amigo amanhã. O seu inimigo de hoje pode mesmo ter sido, em uma vida passada, a pessoa que lhe deu à luz, a mãe que alimentou e cuidou de você. Ao contemplarmos esses aspectos desse modo e repetidamente, aprendemos a reagir à agressão com compaixão e a responder à raiva com bondade.
Um outro método que podemos empregar é ganhar consciência da qualidade ilusória da nossa raiva e do objeto da nossa raiva. Se, por exemplo, alguém lhe diz, “Você é um indivíduo mau”, pergunte-se, “Será que isso me faz ser mau? Se eu fosse um indivíduo mau e alguém dissesse que eu era bom, isso faria de mim um indivíduo bom?” Se alguém diz que carvão é ouro, ele passa a ser ouro? As coisas não se transformam apenas porque alguém diz isto ou aquilo. Por que levar essas palavras tão a sério?
Sente-se em frente de um espelho, olhe para sua imagem e insulte-a: “Você é feio. Você é mau.” Em seguida, elogie-a: “Você é bonito.Você é bom.” Independentemente do que você diga, a imagem permanece simplesmente o que ela é. Elogios e críticas não detém poder algum de nos ajudar ou prejudicar.
À medida que praticamos desse modo, começamos a compreender que as coisas são desprovidas de solidez, como um sonho ou uma ilusão. Criamos um estado mental mais espaçoso – um estado que não é tão reativo. Então, quando a raiva aparece, em vez de responde imediatamente, podemos olha para ela e perguntar: “O que é isso?O que está me fazendo ficar vermelho e tremer? Onde está?” O que descobrimos é que a raiva não tem substância, que não é uma coisa que possa ser encontrada.
Assim que nos damos conta de que não conseguimos encontrar a raiva, podemos deixar a mente em repouso. Não reprimimos a raiva. Apenas deixamos a mente repousar em meio a ela. Podemos ficar com a própria energia – simples e naturalmente, permanecendo cientes dela, sem apego e aversão. Então constatamos que a raiva, assim como o desejo, na realidade não é o que pensávamos ser. Começamos a ver sua natureza e a compreender a sua essência, que é a sabedoria semelhante ao espelho.
Fazer isso pode soar fácil, mas não é. A raiva nos estimula e nós voamos – de um jeito ou de outro. Voamos em nossa mente, voamos para um julgamento, voamos para uma reação, voamos para isto ou aquilo, nos envolvendo com o que nos contrariou. Nosso hábito de revidar dessa forma vem sendo reforçado vez após vez, vida após vida. Se nossa compreensão da essência da raiva for apenas superficial, vamos verificar que não seremos capazes de aplicá-la a situações da vida real.
Há um famoso conto folclórico tibetano sobre um homem que estava meditando em retiro. Alguém veio vê-lo e perguntou, “Em que você está meditando?”
“Na paciência”, disse ele.
“Você é um idiota!”
Isso deixou o meditador furioso e ele imediatamente começou uma discussão – o que mostrou exatamente quanta paciência ele tinha.
Somente pela aplicação sistemática e contínua desses métodos, dia após dia, mês após mês, ano após ano, é que conseguiremos dissolver nossos hábitos arraigados. O processo pode levar algum tempo, mas nós, sem dúvida, iremos mudar. Veja com que rapidez mudamos em termos negativos. Estamos felizes e, então, alguém diz ou faz algo, e logo ficamos irritados. Mudar de modo positivo requer disciplina, esforço e paciência. A palavra “meditação” em tibetano (gom), vem da mesma raiz do verbo “familiarizar-se” ou “aclimatar-se”. Utilizando vários métodos, nós nos familiarizamos com outros modos de ser.
Há uma expressão: “Até um elefante pode ser domado de diferentes maneiras.” Quando ferrões e ganchos são empregados com habilidade, esse animal enorme e potente pode ser conduzido com bastante delicadeza. Diz-se que quando os elefantes são enfeitados para ocasiões festivas, tornam-se dóceis, caminhando como se pisassem sobre ovos. Ou, se estão no meio de um multidão, os elefantes deixam-se facilmente controlar. Portanto, uma coisa que é grande e pesada pode, com os meios adequados, vir a ser manipulada satisfatoriamente. Do mesmo modo, a mente, muitas vezes insubmissa e tempestuosa, pode ser pacificada com meios hábeis.
A diferença entre como uma pessoa mundana encara a vida e como um praticante espiritual o faz, está em que aquela sempre olha para os fenômenos como se olhasse através de uma janela, julgando a experiência externa; ao passo que este usa a experiência como um espelho para, repetidamente, examinar sua própria mente em minucioso detalhe – para determinar onde se encontram os pontos fortes e os fracos, como cultivar os primeiros e eliminar o últimos.
Não precisamos de uma vidente para nos dizer qual vai ser a nossa experiência no futuro – precisamos apenas olhar para a nossa própria mente. Se temos um bom coração e a intenção de ajudar os outros, estaremos encontrando felicidade continuamente. Se, ao contrário, a mente estiver preenchida por pensamentos autocentrados e mundanos, ou com raiva e intenções maldosas em relação aos outros, estaremos encontrando apenas experiências difíceis.
Se examinarmos a nossa mente, vez após vez, continuamente aplicando antídotos para os venenos que surgem, iremos lentamente ver mudanças. Apenas nós mesmos podemos realmente saber o que está acontecendo em nossa mente. É fácil mentir para os outros. Podemos fingir que um saco de couro grosso está cheio, mas assim que alguém se sente sobre ele saberá se está cheio de fato.
De igual modo, podemos nos sentar por horas na postura de meditação, mas, se pensamentos vindos dos venenos circulam pela mente o tempo todo, estaremos apenas fingindo fazer prática espiritual. Em lugar disso, podemos ser honestos conosco mesmos, assumindo a responsabilidade pelo que vemos em nossa mente, em vez de julgar os outros, e aplicando o corretivo apropriado para mudar.
Capítulo 3 do livro Portões da Pratica Budista
A IGNORÂNCIA DA RAIVA
Imagine-se andando com os braços carregados de compras do supermercado. Então, alguém grosseiramente colide, fazendo você e as compras caírem no chão. Assim que você se levanta da poça de ovos quebrados e massa de tomate, está pronto para gritar: “Imbecil! O que há de errado com você? Está cego?”.
Mas antes mesmo que possa tomar fôlego para falar, você vê que a pessoa realmente é cega. Ele, também, está esparramado na poça. Sua raiva some em um instante, para ser substituída por preocupação bondosa: “Você está machucado? Deixe eu te ajudar”.
Nossa situação é como essa. Quando claramente compreendemos que a fonte da desarmonia e dor no mundo é a ignorância, podemos abrir a porta da sabedoria e compaixão. Então, ficamos em uma posição adequada para curar a si mesmo e aos outros.
B. Alan Wallace, em “Tibetan Buddhism from the Ground Up”
Tricycle’s Daily Dharma, 30 de março de 2007.
Quando você a manifesta a raiva cresce
Pergunta – Quando surge um sentimento de raiva, o que é o melhor a fazer? Essa é uma grande dificuldade, controlar a raiva.
Monge Genshô – Você não deve tentar vencer pelo controle, isso é uma má técnica, pois o controle sempre falha. Você tem que investigar de onde vem a raiva e descobrindo a raiz poderá matar essa planta. É muito bom não manifestar a raiva, mas você deve ser capaz de perceber quando ela surge e detectar sua origem. Geralmente vem do orgulho, ou seja, essa pessoa está incomodando meu orgulho, então a raiva não nasce da pessoa que me ofende e sim de dentro de mim. Sou eu quem faço o sentimento existir. Tenho que descobrir dentro de mim a raiz que sustenta o sentimento que estou projetando sobre outra pessoa. Não são os outros que nos perturbam e sim nós que nos perturbamos com os outros.
Pergunta – Sim, entendo, só que parece que se eu não explodir a situação fica pior, pois vou continuar sentindo. Mesmo sabendo que é um sentimento inútil, ele continua presente.
Monge Genshô – Essa é outra ilusão. Se você o manifesta ele não irá diminuir, mas sim aumentar. A coisa funciona mais ou menos assim: você me diz algo que me causa raiva e eu respondo levantando minha voz. Você então retruca levantando ainda mais a voz. A cada resposta sua minha raiva se alimenta. A cada resposta e contra resposta o sentimento dos dois aumenta podendo chegar até mesmo à agressão física, ou seja, o que era ruim só piorou e as consequências cármicas são ainda maiores. Do ponto de vista Budista você não deve manifestar. Existem alguns momentos que merecem indignação e reação, mas você pode fazer isso sem raiva, sem perder a lucidez e sem levantar a voz. Tendo compaixão pela pessoa que faz algo errado. O que precisa é treinar como fazer.
Pergunta – Sim, eu tenho a compreensão, mas minha questão é como chegar na raiz e não deixar que ela obscureça.
Monge Genshô – Se você souber de onde vem é um grande começo. De onde vem? Por exemplo, se alguém me ofende, quem se ofende? Quem é esse que se ofende? O “eu”. E quem é o “eu”? Uma construção. Se o “eu” não está presente, quem pode ser ofendido? Algo que ajuda muito é pensar que tudo será esquecido e que tanto você quanto quem o ofende irá morrer. Não importa. Você pode olhar para a pessoa que o ofende e pensar: “quanta besteira ela irá morrer e eu também”.
http://opicodamontanha.blogspot.com.br/2013/11/quando-voce-manifesta-raiva-cresce.html
O ÓDIO
O ódio é o inverno do coração.
VICTOR HUGO
De todos os venenos mentais, o ódio é o mais nefasto. Ele é uma das principais causas da infelicidade e também a força que motiva toda violência, todo genocídio, todos os atentados à dignidade humana. Sem ódio não haveria assassinatos, guerras, não haveria esses milênios de sofrimento que são a nossa história. Quando alguém nos atinge, o instinto nos impele a golpear de volta, e assim as sociedades humanas dão aos seus membros o direito de retaliar, em vários graus de justiça, dependendo do seu nível de civilidade.
Em geral, não damos muita importância à benevolência, ao perdão e à compreensão das razões do agressor. Raramente somos capazes de considerar o criminoso como vítima do seu próprio ódio. É ainda mais difícil compreender que o desejo de vingança provém basicamente da mesma emoção que levou o agressor a nos atacar. Enquanto o ódio de uma pessoa gerar o de outras, o ciclo de ressentimento, retaliações e sofrimento não terá fim. “Se o ódio responde ao ódio, o ódio nunca cessará”, ensinou o Buda Shakyamuni. Eliminar o ódio do nosso fluxo mental é, portanto, um passo crucial em nossa jornada para a felicidade.
A MEDONHA FACE DO ÓDIO
A raiva negativa, que precede o ódio, obedece ao impulso de afastar violentamente quem quer que se coloque como obstáculo para as exigências do eu, sem qualquer consideração pelo bem-estar alheio. Ela aparece também na hostilidade que sentimos quando o eu é ameaçado e no ressentimento que se instaura quando ele é ferido, desprezado ou ignorado.
A maldade é menos violenta que o ódio, mas é mais insidiosa e igualmente perniciosa. Ela se inflama no ódio, que é tanto o desejo de fazer mal a alguém quanto o ato em si. O ato de prejudicar alguém direta ou indiretamente, acaba destruindo as possibilidades de felicidade da pessoa.
O ódio amplifica os defeitos daqueles que são seu objeto e ignora suas qualidades. Como observa Aaron Beck: “Percepções e pensamentos distorcidos se estabelecem na mente, em resposta a uma ameaça, seja ela real ou imaginária. Esse enquadramento rígido, a prisão da mente, é responsável por grande parte do ódio e da violência que nos assola”.
A mente, obcecada pela animosidade e pelo ressentimento, fecha-se na ilusão e persuade-se de que a fonte da sua insatisfação reside fora dela. Ao pensarmos que estamos sendo tratados com injustiça ou ameaçados, concentramo-nos apenas nos aspectos negativos de uma pessoa ou de um grupo. Não conseguimos ver as pessoas e os eventos no contexto de uma rede muito mais ampla de causas e efeitos inter-relacionados. Ao formarmos a imagem do “inimigo” como alguém vil ou desprezível, generalizamos até incluir a pessoa ou o grupo inteiro. Solidificamos os atributos “maus” ou “repugnantes” que enxergamos naquele momento como sendo traços permanentes e intrínsecos da pessoa e nos afastamos da possibilidade de reavaliar a situação. Temos, assim, justificativa para expressar a nossa animosidade e nos vemos no direito de retaliar.
A hipocrisia também pode fazer com que sintamos a necessidade de “limpar” nosso entorno, a nossa sociedade, ou o mundo em geral, desse “mal”. Daí vem a discriminação, a perseguição, o genocídio, a retaliação cega e também a pena de morte – a suprema retaliação legal. Chegando a esse ponto, obscureceu-se a benevolência básica que faz com que apreciemos a aspiração, comum a todos, de evitar o sofrimento e obter a felicidade.
Meu mestre Dilgo Khyentse Rimpoche explica:
O ódio ou a raiva que podemos sentir por uma pessoa não são inerentes a ela, existem apenas na nossa mente. Assim que vemos alguém que consideramos como inimigo, todos os nossos pensamentos se fixam sobre a lembrança do mal que ela nos fez, sobre os seus ataques no presente e aqueles que poderia vir a ter no futuro. A irritação, e depois a exasperação, nos dominam, a ponto de não podermos mais suportar ouvir seu nome. Quanto mais permitimos que esses pensamentos sigam livremente o seu curso, mais nos invade a fúria e, com ela, a gana irresistível de pegar uma pedra ou um pedaço de pau. É assim que uma lufada de raiva pode conduzir ao paroxismo do ódio.
O ódio não se expressa unicamente pela raiva, mas esta explode assim que as circunstâncias permitam. Ela está ligada a outras emoções e atitudes negativas: agressividade, ressentimento, amargura, intolerância, calúnia, rancor, fanatismo e, acima de tudo, ignorância. A raiva pode também derivar do medo, quando sentimentos que algo nos ameaça ou ameaça aqueles que amamos.
É preciso igualmente aprender a diferenciar o ódio “de todo dia” daquele que está ligado aos que estão perto de nós. O que fazer quando odiamos o nosso irmão, o nosso sócio ou o nosso ex-marido? Eles se tornam uma obsessão para nós. Ficamos ruminando o rosto deles, seus hábitos, seus gestos, até ficarmos doentes. A nossa obsessão converte incansavelmente a aversão em perseguição. Conheci um homem que ficava vermelho de raiva à menor menção da esposa, que o deixara havia vinte anos.
Os efeitos nefastos e indesejáveis do ódio são óbvios. Basta olhar um instante para dentro de si para percebê-los. Sob a sua influência, a nossa mente vê as coisas de maneira nada realista, o que dá origem a uma frustação incessante. O Dalai Lama nos dá uma resposta:
Quando cedemos à raiva, não estamos necessariamente fazendo mal ao nosso inimigo, mas com certeza o fazemos a nós mesmos. Perdemos a nossa paz interior, não fazemos mais nada direito, a nossa digestão fica ruim, não podemos mais dormir, expulsamos aqueles que vêm nos visitar, lançamentos olhares furiosos àquele que ousar estar no nosso caminho. Se temos um animal de estimação, esquecemos de lhe dar comida. Tornamos a vida impossível para aqueles que moram conosco e mantemos a distância até os amigos mais queridos. E como um número cada vez menor e pessoas simpatizam conosco, sentimo-nos mais e mais solitários. […] Para que tudo isso? Mesmo se permitimos que a nossa fúria se manifeste totalmente, nunca eliminaremos nossos inimigos. Você conhece alguém que tenha conseguido alguma vez fazer isso? Enquanto abrigarmos dentro de nós esse inimigo interno que é a raiva ou o ódio, por mais bem-sucedidos que sejamos hoje na destruição dos nossos inimigos externos, amanhã surgirão outros.
O ódio é claramente corrosivo, quaisquer que sejam a intensidade e as circunstâncias que estejam por trás dele. Uma vez dominados pelo ódio, não somos mais donos de nós mesmos e ficamos incapazes de pensar em termos de amor e compaixão. Seguimos cegamente as nossas tendências destrutivas. E, no entanto, o ódio começa sempre com um simples pensamento. Este é o momento preciso em que é necessário intervir e lançar mão de um dos métodos de dissolução das emoções negativas que descrevemos no post ”Emoções Perturbadoras, os Remédios”.
O DESEJO DE VINGANÇA, SÓSIA DO ÓDIO
É importante sublinhar que é possível colocar-se em profunda oposição à injusta, à crueldade, à opressão e ao fanatismo, e fazer tudo o que está em nosso poder para combatê-los, sem que com isso venhamos a sucumbir ao ódio.
Quando examinamos um indivíduo que caiu nas garras do ódio, da raiva e da agressividade, e está à mercê da violência e crueza desses excessos, devemos vê-lo mais como um doente do que como um inimigo. Alguém que deve ser curado e não punido. Se um paciente ensandecido ataca seu médico, este deve controla-lo e dar tudo de si para curá-lo, sem se deixar levar pelo sentimento de ódio recíproco. Não esperamos que um médico comece a bater em seus pacientes.
Podemos sentir uma repulsa sem limites pelas iniquidades de um indivíduo ou grupo de indivíduos, como também uma profunda tristeza pelo sofrimento que causaram, sem ceder ao desejo de vingança. A tristeza e a repulsa devem ser associadas a uma profunda compaixão, de mente aberta, pela condição miserável a que o criminoso sucumbiu. Convém distinguir o paciente da sua doença. Não se trata de ter um sentimento barato de pena pelo assassino, mas uma vasta compaixão por todos os seres sencientes, quem quer que sejam, e o desejo de que se tornem livres do ódio e da ignorância. Em resumo, a contemplação do horror dos crimes das outras pessoas deve fazer crescer, na nossa mente, um amor ilimitado e a compaixão por todos, em vez do ódio por alguns.
É importante, assim, não confundir a repulsa e o desgosto diante de um ato abominável com a condenação irrevogável e perpétua de uma pessoa. É claro que o ato se realiza sozinho, mas apesar de essa pessoa agora estar pensando e se comportando de uma maneira extremamente nociva, mesmo o mais cruel dos torturadores não nasceu cruel, e quem sabe o que ele pode se tornar daqui a vinte anos? Quem pode afirmar com certeza que ele não mudará? Um amigo falou-me sobre um presidiário que estava detido em uma prisão americana para criminosos reincidentes. Era um daqueles que matam os próprios colegas dentro da cela. Esse detento certo dia decidiu participar de algumas sessões de meditação oferecidas no presídio, para passar ao tempo. Eis o seu testemunho: “Um dia, senti como se um muro desabasse dentro de mim. Eu me dei conta de que até aquele momento nunca tinha pensado ou me comportado de outro modo senão recorrendo à violência, como se estivesse louco. Bruscamente compreendi a desumanidade das minhas ações e comecei a olhar para o mundo e para as outras pessoas sob uma luz totalmente diferente”.
Durante um ano, ele lutou para agir em um plano mais altruísta e encorajou seus pares a renunciar à violência. Depois o assassinaram, com um caco de vidro, em um banheiro da prisão. Vingança por um crime passado. Transformações como essa só são raras porque em geral não oferecemos aos presidiários as condições que as tornariam possíveis. Mas, quando elas se produzem, por que continuar a punir aquele que fez mal no passado? Como diz o Dalai Lama: “Pode ser necessário neutralizar um cão malvado que sempre morde todo mundo, mas por que prendê-lo ou acorrentá-lo quando ele se tornou um cão velho e desdentado, que mal fica em pé sobre as suas patas?”4 Aquele que perdeu toda intenção e todo o poder de fazer mal pode ser considerado uma outra pessoa.
Assim como um indivíduo pode tornar-se vítima do ódio, uma sociedade inteira também pode. No entanto, é possível remover o ódio da mente das pessoas. Podemos poluir um riacho, mas também podemos purificá-lo, tornando sua água novamente potável. Sem a possibilidade de transformação interior, seríamos pegos por um desespero autodefensivo, privados de qualquer esperança. Segundo um ditado budista: “A única coisa boa do mal é que ele pode ser purificado.” Os seres humanos podem mudar e, se alguém mudou realmente, o perdão não é uma indulgência para com os seus atos passados, mas o reconhecimento daquilo em que ele se transformou. O perdão está intimamente ligado à possibilidade de transformação humana.
Há uma crença amplamente difundida de que responder ao mal com violência é uma reação “humana” ditada pelo sofrimento e pela necessidade de “justiça”. Mas a humanidade genuína não deveria evitar reagir com ódio? Após o ataque a bomba que fez centenas de vítimas em Oklahoma City, em 1995, perguntaram ao pai de uma garotinha de três anos que morreu no atentado se ele gostaria que o principal autor do ataque, Timothy McVeigh, fosse executado. Ele respondeu com simplicidade: “Outra morte não vai cessar a minha dor.” Uma atitude assim não tem nada a ver com fraqueza, com covardia ou com qualquer tipo de transigência. É possível ter uma sensibilidade aguda ao caráter intolerável de uma situação e à necessidade de repará-la, sem no entanto ser movido pelo ódio. Podemos neutralizar uma pessoa ruim e perigosa por todos os meios necessários (incluindo aqui a violência se nenhum outro meio é possível), sem perder a vista que ela não é mais do que uma vítima dos seus próprios impulsos. O que nós próprios seremos se não conseguirmos evitar o ódio?
Certo dia o Dalai Lama recebeu uma visita de um monge que havia chegado do Tibete após passar vinte e cinco anos nos campos chineses de trabalhos forçados. Ele havia sido levado à beira da morte, pelos seus torturadores, diversas vezes. O Dalai Lama falou com o monge por bastante tempo, profundamente tocado por vê-lo sereno após tanto sofrimento. Perguntou-lhe se tinha tido medo. O monge respondeu: “Muitas vezes tive medo de sentir ódio dos meus torturadores, porque assim eu me destruiria.” Poucos meses antes de morrer em Auschwitz, Etty Hillesum escreveu: “Não vejo outra maneira: cada um de nós deve olhar dentro de si e extirpar e aniquilar tudo aquilo que acredita ser necessário extirpar e aniquilar nos outros. E tenhamos a certeza de que o mais ínfimo átomo de ódio que acrescentarmos a este mundo vai deixá-lo ainda mais inóspito do que já era”.
Seria possível uma atitude como essa se um criminoso entrasse na sua casa, estuprasse a sua esposa, matasse o seu filhinho, e fugisse sequestrando a sua filha de dezesseis anos? Por mais trágica, intolerável e odiosa que seja uma situação, a questão que surge inevitavelmente é está: o que fazer depois disso? A vingança não é, de modo algum, a solução mais apropriada. Por que não?, perguntarão aqueles que sentem uma propensão irresistível para exigir reparação pela violência. Porque a longo prazo ela não pode nos trazer bem-estar e paz duradouros. Em nada ela nos consola e alimenta ainda mais a violência. Não faz muito tempo, na Albânia, a tradição da vendeta exigia que um assassinato fosse vingado com a morte de todos os membros homens da família inimiga, mesmo se isso demorasse anos, e com a proibição extensiva a todas as mulheres desse clã de se casarem, com o objetivo único de erradicar a linhagem inimiga.
Como disse Gandhi: “Se praticarmos o olho por olho, dente por dente, logo o mundo inteiro estará cego e desdentado”. Em vez de aplicar a lei da retaliação, não seria melhor aliviar a sua mente do ressentimento que a corrói? Mesmo sendo raras essas mudanças radicais de rumo – só um dos indicados em Nüremberg, Albert Speer, arrependeu-se das suas ações – não há razão para não termos esperança de que aconteçam. Conheci, na Índia, na província de Bihar, um homem que cometeu um assassinato sórdido na sua juventude e que, liberado da prisão depois de dez anos, se consagrou inteiramente a cuidar de leprosos.
Reagir espontaneamente com raiva e violência quando algum mal foi perpetrado ou algum dano infligido é, às vezes, considerado heroísmo, mas na verdade aqueles que se mantêm livres do ódio manifestam coragem muito maior. Um casal de americanos, ambos advogados, foram para a África do Sul, em 1998, para comparecerem ao julgamento de cinco adolescentes que, de maneira selvagem e gratuita, tinham matado a filha deles em plena rua. Eles olharam nos olhos dos assassinos e disseram: “Não queremos fazer com vocês o que fizeram com a nossa filha”. Não eram pais insensíveis, mas perceberam a inutilidade de perpetuar o ódio. Nesse sentido, o perdão não é desculpar o erro que foi cometido, mas desistir da ideia de vingar-se.
Miguel Benasayag, escritor, matemático e psiquiatra, passou sete anos nas prisões dos generais argentinos, inclusive longos meses na solitária. Foi torturado muitas vezes, a ponto de ser totalmente tomado pela dor. “O que eles estavam tentando”, disse-me, “era fazer com que nos esquecêssemos da própria noção de dignidade humana”. Sua esposa e seu irmão foram jogados de um avião no oceano. Seu enteado foi dado a um oficial de alta patente, uma prática comum naquela época, com as crianças daqueles que se opunham ao regime. Vinte anos mais tarde, quando Miguel encontrou o general que havia adotado seu enteado, viu-se incapaz de odiá-lo. Ele percebeu que, naquelas circunstâncias, o ódio não fazia nenhum sentido e não remediaria nada, nem contribuiria para coisa alguma.
Em geral a nossa compaixão e o nosso amor dependem da atitude benevolente ou agressiva que os outros tenham para conosco e aqueles a quem amamos. Por esse motivo é tão difícil sentirmos compaixão por aqueles que nos fazem mal. A compaixão budista, no entanto, se baseia no desejo sincero de que todos os seres, sem exceção, sejam liberados do sofrimento e de suas causas, particularmente do ódio. Podemos ir ainda mais longe, movidos pela aspiração altruísta de que todos os seres, inclusive os criminosos, possam encontrar a felicidade.
Estudos sobre o perdão mostraram que nutrir um sentimento perene de ressentimento para com um malfeitor sem nunca perdoar, assim como vingar-se daquela pessoa, não restauram a paz de espírito nem nas vítimas, nem em seus parentes. Ao contrário, mostrou-se que o perdão, no sentido da renúncia ao ódio pelo criminoso, tem de longe o melhor efeito no que tange à restauração de alguma forma de paz interior.
Quanto à pena de morte, sabemos que ela não é sequer um recurso inibidor eficaz. Depois que foi eliminada na Europa não houve qualquer aumento nas taxas de criminalidade, assim como seu rest
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