A ÉTICA COMO CIÊNCIA DA FELICIDADE
Não é possível viver feliz sem ter uma vida bela, justa e sábia, nem ter uma vida bela, justa e sábia sem ser feliz.
EPICURO
Os dicionários definem a ética como: “ciência da moral, arte de dirigir a conduta” (Petit Robert) ou como a “ciência que toma por objetos imediatos o julgamento de apreciação sobre os atos qualificados de bons ou maus” (Lalande). Toda a questão é essa. Que critério usar para qualificar um ato como bom ou mau? A ética budista não é somente um modo de agir, mas um modo de ser. O ser humano dotado de bondade amorosa, compaixão e sabedoria agirá eticamente de modo espontâneo porque é bom em seu coração. No budismo, um ato é antiético se o seu objetivo é causar sofrimento, e ético se visa trazer bem-estar genuíno para os outros. É a motivação, altruísta ou maligna, que qualifica a ação como “boa” ou “má”, da forma semelhante ao cristal que toma a cor do tecido sobre o qual repousa. A ética também afeta o nosso bem-estar: fazer alguém sofrer é provocar o nosso próprio sofrimento, seja de imediato ou a longo prazo, e fazer alguém feliz é, no final das contas, a melhor maneira de garantir a nossa felicidade.
Através da atuação das leis de causa e efeito, que o budismo chama de carma – as leis que governam as consequências das nossas ações -, a ética se encontra, portanto, intimamente ligada ao bem-estar. Como escrevem Luca e Francesco Cavalli-Sforza: “A ética nasceu como a ciência da felicidade. Para ser feliz, é melhor cuidar dos outros ou penar exclusivamente em si mesmo?” Os preceitos éticos budistas são pontos de referência para lembrar-nos de adotar uma atitude altruísta e construtiva com os outros e conosco mesmos. Os preceitos destacam as consequências da nossas ações e nos estimulam a evitar aquelas que provocam sofrimentos.
As religiões monoteístas se baseiam em mandamentos divinos e muitas filosofias guiam-se por conceitos que crêem ser absolutos e universais – o Bem, o Mal, a Responsabilidade, o Dever – ou um ponto de vista utilitarista, que pode ser resumido como “o bem maior para o maior número de pessoas”. No mundo contemporâneo, filósofos, cientistas, políticos e outros indivíduos que se encontram para discutir modos éticos de ação, como nos comitês de ética, tentam fazer o melhor uso possível do pensamento racional e das informações científicas disponíveis para resolver os dilemas levantados pelos recentes progressos nas pesquisas, tais como a manipulação do ambiente, a genética, as pesquisas com células-tronco e os sistemas de suporte artificial à vida.
Na ética budista, como explica Dalai Lama, “é difícil imaginar um sistema ético significativo separado da experiência individual do sofrimento e da felicidade”. O objetivo da ética budista é liberar todos os seres, nós mesmos inclusive, do sofrimento, tanto o momentâneo quanto o duradouro, bem como desenvolver a capacidade de ajudar os outros a obter essa liberação. Para atingir esse objetivo, devemos equilibrar equitativamente a nossa aspiração pelo bem-estar com a dos outros.
Vista sob essa perspectiva, uma ética desumanizada, fundada sobre conceitos abstratos, tem pouca utilidade. Para que a ética seja humana, ela deve refletir a aspiração mais profunda de todo ser vivo, homem ou animal, a saber: conhecer o bem-estar e evitar o sofrimento. Esse desejo não depende de nenhuma filosofia ou cultura, sendo o denominador comum de todos os seres sencientes. Como escreveu o neurocientista e filósofo Francisco Varela, “uma pessoa verdadeiramente virtuosa não age a partir da ética, mas incorpora-a como um especialista incorpora o seu saber. O homem sábio é ético, ou, mais explicitamente, as ações desse homem surgem de inclinações produzidas pela sua disposição em resposta a situações específicas” . Para isso e preciso ter presença mental, sabedoria e uma disposição altruísta básica bem plantada na mente, ainda que necessite ser cultivada por toda a vida. Não se trata de aplicar regras ou princípios, mas em manter a atenção plena e desenvolver uma natureza compassiva. Um aspecto da compaixão é a sua prontidão espontânea para agir em benefício dos outros. Os atos altruístas, então, derivam naturalmente dessa compaixão.
Não é mais uma questão de definir Deus ou o Mal de maneira absoluta, mas de permanecer atento à felicidade e ao sofrimento que engendramos através dos nossos atos, nossas palavras e nossos pensamentos.
Existem aqui dois fatores determinantes: a motivação e as consequências dos nossos atos. Mesmo que tentemos usar as nossas melhores capacidades para predizer os resultados das nossas ações, temos muito pouco controle sobre o desdobramento dos eventos exteriores. No entanto, sempre temos a escolha de adotar uma motivação altruísta e de nos empenharmos para ajudar a criar um resultado positivo. Dessa maneira, é preciso examinar incessantemente a nossa motivação, como diz o Dalai Lama: “Estamos agindo com a mente aberta ou com uma mente pequena? Levamos em consideração a situação geral ou estamos vendo somente algumas especificidades? Vemos as coisas a curto ou a longo prazo? […] A nossa motivação é genuinamente compassiva? […] A nossa compaixão está limitada apenas às nossas famílias, aos nossos amigos e àqueles com quem nos identificamos? […] Precisamos pensar, pensar, pensar.”
O núcleo essencial da ética é, portanto, o nosso estado mental e não a forma que tomam as nossas ações. Se confiássemos apenas na aparências dessas ações, seria impossível distinguir, por exemplo, uma mentira trivial, diplomática e inofensiva, dita apenas para não ferir alguém, de uma outra, mal-intencionada, dita para fazer mal. Se um assassino pergunta a você onde se escondeu a pessoa que ele está perseguindo, é obvio que esse não é o momento de dizer a verdade. O mesmo vale para uma ação violenta. Suponha que uma mãe dá um empurrão em seu filho, lançando-o do outro lado da rua, para evitar que ele seja atropelado. Esse ato é violento só na aparência, pois ela salvou a vida do filho. Já alguém que se aproxima de você com um largo sorriso e muitos cumprimentos com o único objetivo de roubá-lo está tendo uma conduta não-violenta apenas na aparência – as suas intenções, na verdade, são violentas.
A questão que se coloca é: sob critérios determinar o que é idade e o que é sofrimento para os outros? Daremos a um bêbado uma garrafa de bebida porque fará com que ele fique “feliz”, ou não a daremos, para evitar que ele acabe logo com a sua vida? É aqui hoje, juntamente com a motivação altruísta, entra em cena a noção de sabedoria. O ponto mais importante deste livro consiste em diferenciar o verdadeiro bem-estar do prazer e de outras formas falsificadas de plenitude ou felicidade. A sabedoria é o que nos permite distinguir os pensamentos e atos que contribuem para a felicidade autêntica dos que a destroem. A sabedoria se baseia na experiência direta, não no dogma. É ela que, unida à motivação altruísta, permite avaliar, caso a caso, se uma decisão é ou não oportuna.
De modo algum isso significa que não haja necessidade de leis e de regras de conduta. Essas regras e leis são expressões essenciais da sabedoria acumulada no passado. Elas são justificadas, pois certos atos – roubar, matar, mentir – são quase sempre nocivos. No entanto, permanecem apenas como diretrizes. Também é a sabedoria que nos permite reconhecer a exceção necessária. O roubo é geralmente repreensível, porque de costume é motivado pela ganância e priva injustamente alguém da sua propriedade, causando-lhe assim dor e sofrimento. Mas quando, durante um período de fome, a compaixão nos leva a roubar víveres de armazéns que estão quase estourando de tão cheios, e cujo dono é tão miserável que não dão um só bocado de comida aos famintos que estão à sua porta, esse roubo não é mais repreensível – é desejável. A lei continua válida na sua generalidade, mas a sabedoria compassiva sancionou a exceção, e esta, conforme diz o provérbio tão conhecido, confirma a regra, em vez de destruí-la. Como disse, em certa ocasião, Martin Luther King: “A desumanidade do homem não é perpetuada somente pelas ações corrosivas daqueles que são maus. Ela também acontece pela inação viciada daqueles que são bons.” Quando o sofrimento causado pela omissão é maior do que aquele causado pela ação, deve-se empreender alguma ação. Não agir seria esquecer a própria razão da existência da norma, que é proteger as pessoas do sofrimento.
O PONTO DE VISTA DO OUTRO
A ética da compaixão não pode se limitar a sentir empatia pelo sofrimento dos outros, ou mesmo à decisão de fazer algo em termos práticos quanto a esse sofrimento. Ela implica também transcender o egocentrismo e obter a compreensão de que a barreira que separa eu e outro é uma construção mental. Todos os fenômenos, bem como o eu e o outro, estão profundamente interconectados no nível da sua natureza mais fundamental e profunda. Portanto, devemos nos colocar no lugar do outro e tentar imaginar o que sente aquele sobre o qual recaem as consequências da nossa conduta.
MIL INOCENTES OU APENAS UM?
Um dilema clássico nos ajuda a compreender melhor a abordagem pragmática do budismo. Ele pode se resumir na seguinte questão, formulada por André Comte-Sponville: “Se, para salvar a humanidade, fosse necessário condenar um inocente (torturar uma criança, como coloca Dostoievski), você o faria?” Não, respondem os filósofos. Não vale a pena jogar esse jogo, ou melhor, mais que um jogo, trata-se de uma ignomínia. “Porque, assim, a justiça desapareceria”, escreve Kant, “e a existência humana na Terra não teria valor algum”. Comte-Sponville vai além:
Neste ponto o utilitarismo chega ao seu limite. Se a justiça fosse meramente um contrato utilitário, de conveniência […] uma maximização do bem-estar coletivo […] seria justo, para assegurar a felicidade de quase todos, sacrificar alguns, mesmo que esse sacrifício aconteça sem o seu consentimento, e ainda que eles sejam perfeitamente inocentes e indefesos. Isso, no entanto, é exatamente o que a justiça proíbe, ou deveria proibir. [John] Rawls, escrevendo sobre Kant, tem razão a esse respeito: a justiça vale mais do que o bem-estar ou a eficácia, e é melhor que ambos; ela não deve sacrificar-se por eles, ainda que seja pela felicidade da maioria.
Mas a justiça só seria, sacrificada se decretássemos que a escolha de sacrificar uma criança para salvar mil outras pessoas seria, em princípio, aceitável. Entretanto, a questão não é saber se essa escolha é aceitável ou não, mas sim evitar ao máximo possível, e concretamente, o sofrimento. Entre duas soluções, uma tão aceitável quanto a outra, não se trata de transformar a expressão “felicidade para a maioria” em dogma, nem de considerar a criança inocente como um simples meio para salvar a vida dos outros desprezando o seu próprio direito à vida. Mas diante de uma situação inevitável, a questão é escolher o menor dos dois males em termos de sofrimento. A escolha não rompe o tecido da justiça, e também é verdade dizer que escolher não agir seria condenar tacitamente os mil inocentes.
É fácil, aqui, deixar-se levar tanto pela abstração quanto pelo sentimentalismo. Caímos na abstração dogmática quando nos recusamos a raciocinar com base na experiência vivida. É sentimentalismo responder à morte de uma criança inocente só porque podemos imaginar vividamente essa cena e não conseguimos ver as centenas de habitantes da cidade senão como uma entidade abstrata. É preciso colocar a questão de outra forma: “É aceitável sacrificar mil inocentes para salvar um?”
Se muito poucas questões morais são expressas em termos tão dramáticos, a ética deve levar em conta, com visão interior e compaixão, todos os prós e contras de uma dada situação. Uma ética assim é um desafio contínuo, porque exige uma motivação imparcial e altruísta, bem como o persistente desejo de aliviar o sofrimento dos outros. É grande a dificuldade de pô-la em prática, porque ela transcende o recurso cego e automático ao texto da lei e aos códigos morais. Portanto, também é grande o risco que corre de ser distorcida ou manipulada. De fato, essa ética requer um tipo de flexibilidade que é, em si, uma fonte de perigo. Se for cooptada pelo egoísmo e pela parcialidade, pode ser explorada para fins negativos que vão contra os seus objetivos iniciais. Daí a necessidade, para todos e em especial para aqueles que exercem a justiça, de desenvolver a sabedoria e uma profunda preocupação com o bem-estar dos outros.
“Na vida real”, como assinala Varela, “nós sempre operamos em algum tipo de proximidade de uma situação dada. […] Nós temos uma prontidão-para-a-ação adequada de cada situação vivida específica”. O Dalai Lama observa: “Às vezes, temos que agir imediatamente. É por isso que o nosso desenvolvimento espiritual tem uma importância tão crucial para assegurar que as nossas ações sejam eticamente consistentes. Quanto mais espontâneas forem essas ações, mais probabilidade haverá de que reflitam a nossa disposição interior naquele momento”.
A IDEALIZAÇÃO DO BEM E DO MAL
Em matéria de ética – e de felicidade, como vimos – os filósofos e os humanistas sustentam opiniões muito divergentes. Há éticas do Bem em si, do bem-estar da maioria, do respeito absoluto ao indivíduo, da Razão, do Dever, do contrato social etc. Apesar da diversidade desses pontos de vista – diversidade que reflete a ausência de critérios fundamentais reconhecidos por todos – podemos identificar duas orientações principais em ética: a que repousa em princípios abstratos, e a pragmática, fundamentada, como no caso da ética budista, na experiência vivida.
Immanuel Kant, por exemplo, refere-se ao sentimento de dever que, de maneira última e absoluta, governa todas as questões morais. Ele rejeita a ideia de que se deve agir pelo bem dos outros, movido por um altruísmo alimentado pela empatia e compaixão. Para ele, tais sentimentos humanos não são confiáveis. Ele apela, em lugar disso, para uma adesão a princípios morais que sejam universais e imparciais. Preconiza a necessidade de uma intenção pura, cujo critério de verificação é a satisfação de trabalhar em conformidade com a lei moral mesmo quando esta obrigar o indivíduo a agir contra os seus interesses e inclinações pessoais. Ainda segundo ele, o bem é um dever que deve conduzir à felicidade da humanidade como um todo, sem que a felicidade seja um objetivo em si mesma: “Mas não se pode concluir que a distinção entre o princípio da felicidade e o da moralidade sejam opostos um ao outro. A pura razão prática não exige que renunciemos a toda pretensão à felicidade, mas somente que, no momento em que o dever está em questão, não levemos em conta a felicidade”
O dever é limitado pela necessidade de ser universal e, consequentemente, desconsidera os casos específicos. Isso ignora a própria natureza da experiência humana. Como explica Francisco Varela: “As unidades de conhecimento adequadas são em primeiro lugar, concretas, corporificadas, vividas; o conhecimento é uma questão de estar situado e em um contexto; o caráter único do conhecimento, sua historicidade e contexto, não são somente um ‘ruído’ que oculta uma configuração abstrata na sua verdadeira essência”.
Estas diversas noções de um Bem absoluto retornam geralmente à crença na existência de entidades transcendentes (Deus, as Ideias, o Bem em si) que existem por si mesmas, independentemente do mundo dos fenômenos transitórios. Como vimos, a visão do budismo é totalmente diferente. O mal não é um poder demoníaco exterior a nós mesmos, e o bem não é um princípio absoluto independente de nós. Tudo se passa em nossa mente. O amor e a compaixão são reflexos da natureza profunda de todos os seres vivos, daquilo que chamamos de “bondade original”, ou “natureza búdica”. O mal é um desvio dessa bondade original que pode ser remediado.
A ÉTICA UTILITARISTA
De acordo com Jeremy Bentham, um filósofo inglês do século XVIII e XIX e fundador do utilitarismo mora, “a felicidade maior para o maior número de pessoas é o fundamento da mora e das leis”. O budismo concorda com essa abordagem muito mais humana. No entanto, apesar de seus objetivos serem recomendáveis e altruístas, o utilitarismo baseia as suas análises em uma avaliação muito confusa da natureza da felicidade, unindo indiscriminadamente os prazeres superficiais e a felicidade profunda. O budismo faz uso da mudança pessoal – a transformação interior – para enriquecer a mente ética com a sabedoria, permitindo assim que ela seja capaz de adotar uma motivação mais altruísta e usar de uma lucidez maior, conseguindo uma afinação mais sutil do seu julgamento. De novo, o maior defeito do sistema utilitarista, a longo prazo, é o risco de confundir o prazer com a felicidade genuína, ou, mais precisamente, de reduzir a última ao primeiro.
CONDENAÇÃO, PUNIÇÃO E REABILITAÇÃO
Jeremy Bentham também propunha a substituição das formas tradicionais de sanção por uma legalidade fundada sobre a análise das consequências dos atos em termos de felicidade e de sofrimento. Essa abordagem tem certa semelhança com a do budismo, como atesta a discussão entre o Dalai Lama e alguns magistrados na América do Sul. O Dalai Lama havia proposto a eles o seguinte problema: “Dois homens cometeram o mesmo delito e são passíveis a uma pena de quinze anos de prisão. Um é sozinho na vida enquanto o outro tem quatro filhos para cuidar, pois a mãe se foi. Vocês levarão em conta o fato de que, em um dos casos, quatro crianças serão privadas do seu pai, por quinze anos?” Os juízes responderam que era impossível considerar esse tipo de diferença, porque os próprios fundamentos da justiça seriam desestabilizados. No entanto, esse exemplo mostra que, se levarmos em consideração a situação pessoal dos culpados, constataremos que a mesma condenação terá consequências muito diferentes no que tange aos sofrimentos que dela resultam. É certo que, se definirmos a justiça em termos de punição, é fundamentalmente injusto que os dois criminosos não recebam a mesma pena pelo mesmo delito. Mas como não enfrentar as repercussões específicas das decisões que tomamos?
Por outro lado, podemos igualmente considerar a ética como uma disciplina “médica”, em que um conjunto de sintomas e indicações nos permitem prever e prevenir os desconfortos causados pelas emoções negativas, bem como curar aqueles que são afetados por elas. Desse ponto de vista, o encarceramento de um criminoso pode ser considerado mais uma hospitalização do que uma condenação irrevogável. Ele dever ser preso para que possamos impedi-lo de fazer mal ou ferir alguém, e somente pelo tempo em que constituir perigo para a sociedade. Mas, em vez de pensar que um criminoso não pode mudar de modo verdadeiro e profundo, o budismo acredita que a bondade de uma pessoa permanece intacta, lá no fundo do seu ser, mesmo quando, na superfície, ela está horrivelmente pervertida. Não se trata de ignorar ingenuamente a extensão em que essa natureza de bondade possa estar sepultada pelo ódio, a ganância e a crueldade, mas sim de compreender que, por existir sempre, existe a possibilidade de a bondade reaparecer.
A punição também nunca deve ser uma forma de vingança, sendo que a forma mais extrema disso é a pena de morte. Vimos no capítulo referente ao ódio que a vingança é um desvio da justiça, já que o seu propósito principal não é proteger o inocente, mas ferir o culpado e “limpar” a sociedade do “inimigo” que agride ou ofende. Isso é justiça de caubóis, não vida iluminada. Nesses casos, qualquer ato que tem por motivação principal infligir sofrimento ou matar, como na pena de morte, não pode ser considerado ético.
OS LIMITES DO UTILITARISMO
O utilitarismo preconiza uma maximização da soma geral de prazeres disponíveis para uma dada comunidade. Entretanto, como não dispõe de critérios significativos para avaliar a felicidade, pode tornar-se arbitrário, absurdo até. Cegamente aplicado, esse princípio de maximização pode na verdade levar ao sacrifício de certos membros da sociedade. Aristóteles, por exemplo, era a favor da escravidão – se não houvesse escravos, todos os intelectuais teriam que trabalhar e deixar de dedicar-se às suas dignas e elevadas atividades! Esse foi um desvio utilitarista. Esse tipo de raciocínio enganador é inconcebível para o budismo, que pede continuamente para nos colocarmos no lugar da outra pessoa. Ao fazer isso, nenhuma pessoa sensível poderia julgar satisfatória a condição de um escravo.
Na Índia, nos séculos VI e V antes de Cristo, prevalecia também uma forma de escravidão prescrita e codificada pela casta. Os intocáveis e os aborígenes (adivasi) eram os servos da Índia antiga. Mas o Buda recusa essa hierarquização extrema, decretando que, no seio da comunidade budista, o intocável se torne igual ao brâmane. Logo, no sul da Ásia, o budismo desencadeou uma revolução social, abolindo as diferenças de status de maneira a permitir o acesso à liberdade e à felicidade para todos os indivíduos.
Mas voltemos ao utilitarismo do século XIX. Uma das críticas mais importantes dirigidas ao utilitarismo foi formulada pelo filósofo contemporâneo americano John Rawls. Ele rejeitou a doutrina da felicidade coletiva como justificativa última para os nossos atos, e propôs, em seu lugar, o respeito à inviolabilidade dos direitos individuais, junto com o princípio da igual liberdade e da cooperação equitativa.
De acordo com Rawls, uma ação não pode ser boa se não for, em primeiro lugar, justa. Do ponto de vista do budismo, estas duas noções estão intrinsecamente ligadas. Uma ação considerada justa sob uma ética dogmática pode ser má na realidade. Esse é o caso quando Kant pateticamente se recusa a aceitar uma mentira que poderia salvar uma vida humana. Segundo ele, qualquer mentira, por qualquer razão, é uma injustiça para com toda a humanidade, porque, nos autorizando a mentir, destruiríamos a credibilidade de toda a fala em geral. Seria difícil estarmos mais longe da justiça…
Ao afirmar a primazia da justiça sobre o bem, Rawls idealiza o justo e deprecia o bem, pressupondo que o homem é fundamentalmente egoísta e incapaz de agir sem estar calculando o que lhe seria mais favorável:
Como cada um deseja proteger seus próprios interesses, sua concepção que tem do bem, pessoa alguma tem motivo para consentir em uma perda duradoura da sua própria satisfação com o objetivo de produzir um aumento na soma [do bem-estar] total. Na ausência de instintos altruístas sólidos e duradouros, um ser racional não aceitaria uma estrutura de base meramente porque ela maximiza a soma algébrica das vantagens, sem ter em conta os efeitos permanentes que ela possa ter sobre os seus próprios direitos e interesses de base.
Talvez tenhamos que aceitar o fato de que o individualismo exacerbado, nascido de uma poderosa atração pelo eu, é onipresente nas sociedades modernas. Mas é essa a fonte mais inspiradora para derivarmos os princípios éticos que regularão o nosso comportamento? O filósofo Charles Taylor sabiamente observou: “Grande parte da filosofia moral contemporânea […] concentrou-se no que é certo fazer em vez de concentrar-se no que é certo ser; em definir o conteúdo das obrigações em vez de definir o que é a natureza da vida boa; e deixou pouco ou nenhum espaço conceitual para a noção do bem como o objeto do nosso amor e lealdade, ou como o foco privilegiado da nossa atenção e vontade”
Como comenta Varela:
Nas comunidades tradicionais, há modelos de competência ética – por exemplo, o modelo do “sábio” – que são ainda mais especializados do que os do senso comum. Em nossa sociedade moderna, entretanto, tais modelos de competência ética (diferentemente, por exemplo, dos modelos de competência esportiva) são mais difíceis de identificar. Esta é uma das razões importantes que contribui para que o pensamento ético moderno tenha um sabor tão niilista.
É possível ser um grande pianista, matemático, jardineiro ou cientista e, ao mesmo tempo, ter um caráter irritadiço e ciumento, Mas, no Ocidente, é possível ser considerado um grande moralista e, no entanto, não viver pelos princípios morais que se defende. Devemos lembrar aqui a exigência budista de que a pessoa e os seus ensinamentos sejam coerentes. A ética não é como qualquer outra ciência comum. Ela deve surgir da mais profunda compreensão das qualidades humanas, e essa compreensão só sobrevém quando empreendemos pessoalmente essa jornada de descobertas. Uma ética que é construída exclusivamente de ideias intelectuais e que não se apóia a todo momento na virtude, na sabedoria genuína e na compaixão, não tem fundamento sólido.
A ÉTICA E A NEUROCIÊNCIA
Quando enfrentamos um dilema ético, uma abordagem utilitarista compassiva requer uma análise lúcida da situação e uma motivação genuinamente altruísta. Para isso, temos que superar os poderosos conflitos emocionais que surgem quando a decisão envolve um sacrifício doloroso ou uma perda pessoal. Pesquisas recentes no campo da neurociência indicam que as regiões cerebrais ligadas ao raciocínio e ao controle cognitivo estão envolvidas na resolução de dilemas morais em que os valores utilitaristas requerem decisões emocionais difíceis, como o que vimos no sacrifício da criança inocente.
As pesquisas feitas pelo filósofo e neurocientista Joshua Greene revelaram que a consideração de tais questões desencadeia uma atividade maior nas regiões do cérebro associadas ao controle cognitivo. Essas áreas competem com áreas do cérebro associadas às respostas emocionais. Ele teorizou que as respostas sociais e emocionais que herdamos dos nossos ancestrais primatas subjazem às proibições absolutas que estão no centro das visões dogmáticas como a de Immanuel Kant, segundo a qual certas linhas morais não devem ser atravessadas independentemente de um bem maior que poderia, de outro modo, se atingido. Em sentido contrário, a avaliação imparcial que caracteriza o utilitarismo altruísta torna-se possível devido a estruturas nos lobos frontais do cérebro, que evoluíram mais recentemente e dão base ao controle cognitivo de alto nível.
Como ressalta Greene: “se está explicação dor correta, ela terá a irônica implicação de que, psicologicamente falando, a abordagem ‘racionalista’ kantiana da filosofia moral está baseada não em princípios de pura razão prática, mas em um conjunto de respostas emocionais que foram subsequentemente racionalizadas”. Isso viria a confirmar que uma escolha ética altruísta, que considera em profundidade a melhor maneira de minimizar o sofrimento dos outros, não deve ser obscurecida pelo sofrimento emocional ou pelos vieses pessoais. Tal escolha utilitária não resulta de um raciocínio frio, mas de uma compaixão genuína, reforçada pela sabedoria.
A ÉTICA EM CRISE?
A história mostrou que os ideais utópicos e os dogmas que reivindicam saber a diferença entre o Bem e o Mal nos conduziram a séculos de intolerância, perseguições religiosas e regimes totalitaristas. Aqueles que propõem tais ideais ecoaram a sua fórmula cansada em muitas variações sobre o tema: “Em nome do Bem Absoluto, faremos de você uma pessoa feliz. No entanto, se você se opuser, teremos, cheios de pesar, que eliminá-lo.”
Incapaz de aderir às leis absolutas, alienado dos mandamentos divinos, desencorajado pelo pensamento de que a humanidade é fundamentalmente má e confinado a uma ética flutuante que se baseia nas teorias antagônicas de uma miríade de filósofos e moralistas, o homem moderno sente-se desamparado. Escreve Han de Wit: “Este fiasco fez nascer um derrotismo moral no coração da cultura ocidental moderna.”
De sua parte, a ética do altruísmo genuíno, denunciada pelas descobertas da neurociência, prefere navegar na corrente incessante dos fenômenos que se desdobram em mil folhas, conduzidos pelo vento da bondade. Somente através do cultivo constante da sabedoria e da compaixão poderemos realmente nos tornar os guardiães e herdeiros da felicidade.
Trecho retirado do livro ”Felicidade, A Pratica do Bem Estar” de Matthieu Ricard.
Matthieu Ricard, cresceu no meio intelectual de Paris e doutorou-se em genética molecular. Aos 38 anos passou a viver nos Himalaias para tornar-se monge budista; é autor do livro “Felicidade – A prática do Bem Estar”, ‘A arte de meditar” e “A revolução do altruísmo” disponíveis em todas livrarias. Saiba mais sobre ele aqui.