Compreender a natureza do ego e seu modo de funcionamento é de uma importância vital se desejarmos nos libertar do sofrimento. A ideia de se desvencilhar da influência do ego pode nos deixar perplexos, sem dúvida, porque mexemos no que acreditamos ser nossa identidade fundamental.
Estamos conscientes do fato de que a cada instante, desde nosso nascimento, nosso corpo de transforma continuamente e a nossa mente é palco de inúmeras experiências novas. Mas instintivamente, imaginamos que em algum lugar, em nosso âmago, se localiza uma entidade duradoura que confere uma realidade sólida e uma permanência à nossa pessoa. Isso nos parece tão evidente que não achamos necessário examinar mais atentamente essa intuição. Há, então, um forte apego às noções de “eu” e de “meu” – meu corpo, meu nome, minha mente, minhas posses, meus amigos etc. – que traz ou um desejo de possessão, ou um sentimento de repulsa em relação ao outro. É assim que a dualidade irredutível entre mim e outrem se cristaliza nos pensamentos. Esse processo nos assimila a uma entidade imaginária. O ego é, também, o sentimento exacerbado da importância de si que decorrer dessa construção mental. Ele coloca sua identidade fictícia no centro de todas as nossas experiências.
Entretanto, como veremos a seguir, ao analisarmos seriamente a natureza do eu, percebemos que é impossível colocar o dedo sobre qualquer entidade distinta que lhe corresponda. Afinal de contas, vê-se que o ego não é senão um conceito que associamos ao continuum de experiências que é a nossa consciência.
Nossa identificação com o ego é fundamentalmente disfuncional, pois está em desacordo com a realidade. Atribuímos, com efeito, a esse ego qualidades de permanência, de singularidade e autonomia, enquanto a realidade é , ao contrário, variável, múltipla, interdependente. O ego fragmenta o mundo e cristaliza de uma vez por todas a divisão que estabelece entre “eu” e “outro”, “meu” e “não meu”. Fundamentado num engano, ele é constantemente ameaçado pela realidade, o que cria em nós um profundo sentimento de insegurança. Conscientes de sua vulnerabilidade, tentamos por todos os meios protegê-lo e reforçá-lo, sentimento aversão por tudo o que o ameaça e atração por tudo o que o sustenta. Dessas pulsões de atração e repulsa nasce uma multidão de emoções conflituosas.
Poderíamos pensar que, consagrando a maior parte de nosso tempo a satisfazer e reforçar esse ego, estaremos adotando a melhor estratégia possível para encontrar a felicidade. Mas é uma aposta perdida, pois é o contrário que acontece. Imaginando um ego autônomo, estamos em contradição com a natureza das coisas, o que se exprime por frustações e tormentos sem fim. Consagrar toda a nossa energia a essa entidade imaginária tem efeitos deletérios sobre a qualidade de nossa vida.
O ego só pode oferecer uma confiança em si factícia, fundada em atributos precários – o poder, o sucesso, a beleza e a força físicas, o brio intelectual e a opinião dos outros – e sobre tudo o que constitui nossa imagem. A verdadeira confiança em si é outra coisa. É, paradoxalmente, uma qualidade natural da ausência de ego. Dissipar a ilusão do ego combina com um sentimento de liberdade que não está mais submetido às contingências emocionais. A confiança em si é acompanhada de uma vulnerabilidade em face dos julgamentos de outrem e de uma aceitação interior das circunstâncias, quaisquer que sejam elas. Essa liberdade se manifesta por um sentimento de abertura a tudo que se apresenta. Não se trata da frieza distante, do desapego seco ou da indiferença que se imagina, por vezes, quando se representa o desapego budista, mas de uma disponibilidade benevolente e corajosa que se estende a todos os seres.
Quando o ego não se compraz com seus triunfos, ele se alimenta de seus fracassos colocando-se como vítima. Alimentado por suas constantes ruminações, seu sofrimento lhe confirma sua existência tanto quanto sua euforia. Que ele se sinta no auge, diminuído, ofendido ou ignorado, o ego se consolida dando atenção apenas a si mesmo. “O ego é o resultado de uma atividade mental que cria e ‘mantém em vida’ uma entidade imaginária em nossa mente” . É um impostor que se ilude com o próprio jogo. Uma das funções da visão penetrante, vipashyana, é desmascarar a impostura do ego.
Na verdade, nós não somos esse ego, não somos essa raiva, não somos esse desespero. Nosso nível de experiência mais fundamental é o da consciência pura, essa qualidade primeira da qual falamos anteriormente e que é o fundamento de toda experiência, toda emoção, todo raciocínio, todo conceito e toda construção mental, o ego inclusive. Mas, atenção, essa consciência pura, essa “presença desperta” não é uma nova entidade, mais sutil ainda do que o ego: ela é uma qualidade fundamental de nossa corrente mental.
O ego não é nada mais do que uma construção mental mais duradoura do que as outras porque é constantemente reforçada por nossas cadeias de pensamentos. Isso não impede esse conceito ilusório de ser desprovido de existência própria. Esse rótulo tenaz só se fixa sobre o fluxo de nossa consciência graças à cola mágica da confusão mental.
Para desmascarar a impostura do eu, é preciso levar a investigação até o fim.
Aquele que suspeita de um ladrão em sua casa deve inspecionar cada cômodo, cada canto, cada esconderijo possível até ter certeza de que não há ninguém. Só assim ele poderá ficar em paz.
MEDITAÇÃO
Examinemos o que se supõe ser a identidade do “eu”. Nosso corpo? Um conjunto de ossos e carne. Nossa consciência? Uma sucessão de pensamentos fugazes. Nossa história? A memória do que existe mais. Nosso nome? Ligamos a ele todo tipo de conceitos – o de nossa filiação, de nossa reputação e de nosso status social -, mas no fim das contas, não é mais que um conjunto de letras.
Se o ego fosse verdadeiramente nossa essência profunda, compreenderíamos nossa preocupação quanto à ideia de nos livrar dele. Se fosse somente uma ilusão, separarmo-nos dele não seria extirpar o coração de nosso ser, mas simplesmente dissipar um erro e abrir os olhos para a realidade. O erro não oferece nenhuma resistência ao conhecimento, assim como a escuridão não oferece resistência à luz. Milhões de anos de trevas podem desaparecer instantaneamente logo que uma lâmpada é acessa.
Quando o “eu” deixa de ser considerado o centro do mundo, interessamo-nos pelos outros. A contemplação egocêntrica de nossos próprios sofrimentos nos desencoraja, enquanto a preocupação altruísta com os sofrimentos dos outros só redobra nossa determinação de trabalhar para aliviá-los.
O sentimento profundo do “eu” que estaria no coração de nosso ser é que devemos, então, analisar honestamente.
Onde se encontra esse “eu”? Não pode estar somente em meu corpo, pois, quando digo “estou triste”, é minha consciência que sente uma impressão de tristeza, não o meu corpo. Encontra-se, então, unicamente em minha consciência? Não é evidente, longe disso. Quando digo “alguém me empurrou”, minha consciência é que foi empurrada? Certamente não. O “eu” não poderia estar fora do corpo e da consciência. A noção de “eu” está simplesmente associada ao conjunto do corpo e da consciência? Passamos agora a uma noção mais abstrata. A única saída para esse dilema é considerar o “eu” como uma designação mental ligada a um processo dinâmico, a um conjunto de relações mutáveis que integram nossas sensações, nossas imagens mentais, nossas emoções e conceitos. Enfim, o “eu” é somente um nome pelo qual se designa um continuum, da mesma forma que chamamos um rio de Ganges ou Amazonas. Cada rio tem uma história, corre numa paisagem única e sua água pode ter propriedades curativas ou ser poluída. Logo, é certo dar-lhe um nome e distingui-lo de outro rio. Contudo, não existe no rio uma entidade qualquer que seria o “coração” ou a essência do rio. Do mesmo modo, o “eu” existe de maneira convencional, mas não sob a forma de uma entidade que constituiria o coração de nosso ser.
O ego tem sempre algo a perder e algo a ganhar; a simplicidade natural da mente não tem nada a perder ou a ganhar, não é necessário lhe tirar ou acrescentar o que quer que seja. O ego se alimenta da ruminação do passado e da antecipação do futuro, mas não pode sobreviver na simplicidade do momento presente.
Permaneçamos nessa simplicidade, na plena consciência do agora, que é liberdade, apaziguamento de todo conflito de toda fabricação, tida projeção mental, distorção, identificação e divisão.
Vale, portanto, a pena consagrar um pouco de nosso tempo a deixar a mente repousar na calma interior, permitindo-lhe assim compreender melhor, pela análise e pela experiência direta, o lugar que o ego ocupa em nossa vida. Enquanto o sentimento da importância de si segurar as rédeas de nosso ser, não conheceremos jamais a paz duradoura. A verdadeira causa da dor continuará a repousar intacta no mais profundo de nós, privando-nos da mais essencial das liberdades.
Abandonar essa fixação no ego e não mais se identificar com ele significa ganhar uma imensa liberdade interior. Liberdade que permite abordar todos os seres que encontramos e toda situação com naturalidade, benevolência, coragem e serenidade. Não tendo nada a ganhar ou a perder, somos livres para doar e receber.
MEDITAÇÃO SOBRE A NATUREZA DA MENTE
Quando a mente examina a si mesma, o que pode ela descobrir sobre sua própria natureza? A primeira coisa que se observa são as inúmeras cadeias de pensamentos que atravessam nossa mente, independentemente de nossa vontade, e que alimentam nossas sensações, nossa imaginação, nossas lembranças e projeções para o futuro. Entretanto, não existe também uma qualidade “luminosa” da mente, para clarear nossa experiência, qualquer que seja seu conteúdo? Essa qualidade é a faculdade cognitiva fundamental que subjaz a todo pensamento. É aquilo que, na raiva, vê a raiva sem ser a raiva nem se deixar levar por ela. Essa simples presença desperta pode ser chamada de “consciência pura”, pois podemos apreendê-la mesmo na ausência de conceitos e de construções mentais.
A prática da meditação mostra que, se deixarmos nossos pensamentos se acalmarem, poderemos permanecer alguns momentos na experiência não conceitual dessa consciência pura. É esse aspecto fundamental da consciência, livre dos véus da confusão, que o budismo chama de “natureza da mente”.
Essa noção não é evidente. Sabemos que psicólogos, especialistas de neurociências e filósofos se interrogam sobre a natureza da consciência, mas em que sua compreensão pode afetar nossa experiência pessoal? É com nossa mente que lidamos da manhã à noite e é ela, afinal de contas, que determina a qualidade de cada instante de nossa existência. Se o fato de conhecer melhor sua verdadeira natureza e de compreender seus mecanismos influir, de maneira crucial, sobre essa qualidade, sentiremos mais a importância de interrogar sobre ela. Senão, por falta de compreender bem a nossa mente, acabaremos por não nos conhecer a nós mesmos.
Os pensamentos surgem da consciência pura e se dissolvem nela novamente, como ondas que se levantam do oceano. É essencial compreender isso se quisermos nos afastar dos automatismos habituais dos pensamentos que dão origem ao sofrimento. Identificar a natureza fundamental da consciência e saber repousar nela num estado não dual e não conceitual é uma das condições essenciais para atingir a paz interior e a libertação do sofrimento.
MEDITAÇÃO
Um pensamento surge, vindo de nenhum lugar, um pensamento agradável ou um outro que nos aflige. Permanece por alguns instantes e depois se apaga, para ser substituído por outros. Quando desaparece, como o som de um sino se esvai, para onde foi? Não saberíamos dizer. Certos pensamentos voltam incessantemente à nossa mente, onde criam estados que vão da alegria à tristeza, do desejo á indiferença, do ressentimento à simpatia. Os pensamentos detêm assim o imenso poder de condicionar nossa maneira de ser. Mas de onde tiram tal poder? Não possuem armas à sua disposição, não têm combustível para manter uma fornalha nem pedras para nos apedrejar. Sendo apenas construções da mente, deveriam ser incapazes de nos prejudicar.
Deixemos nossa mente observar-se a si mesma. Pensamentos surgem. A mente existe, de uma maneira ou de outra, já que a vivenciamos. Fora isso, o que podemos fizer? Examinaremos nossa mente e os pensamentos que nela se manifestam. Seria possível atribuir-lhes características concretas? Têm eles uma localização? Não. Uma cor? Um forma? Quanto mais se procura menos se encontra. Constatamos certamente que a mente possui uma faculdade de conhecer, mas nenhuma característica intrínseca e real. É nesse sentido que o budismo define a mente como uma continuidade de experiências: ela não é uma entidade distinta, é ”vazia de existência própria”. Não tendo encontrado nada que possa constituir uma substância, permaneçamos alguns instantes nesse “inencontrável”.
Quando um pensamento surge, deixemos que apareça e se desfaça por si mesmo, sem obstruí-lo nem prolongá-lo. Durante esse breve lapso de tempo em que nossa mente não está cheia de pensamentos discursivos, contemplemos a natureza. Nesse intervalo em que os pensamentos passados cessaram e os pensamentos futuros ainda não se manifestaram, não se percebe uma consciência pura e luminosa? Permaneçamos alguns instantes nesse estado de simplicidade natural, livre de conceitos.
À medida que nos familiarizamos com a natureza da mente e que aprendemos a deixar os pensamentos se desfazerem logo que surgem – como uma carta escrita com o dedo na superfície da água -, progredimos mais facilmente no caminho da liberdade interior. Os pensamentos automáticos não terão mais o poder de perpetuar nossa confusão e reforçar nossas tendências habituais. Deformaremos cada vez menos a realidade e os próximos mecanismos do sofrimento acabarão por desaparecer.
Dispomos dos recursos interiores que nos permitem criar emoções; nosso sentimento de insegurança dará lugar a liberdade e à confiança. Cessaremos de nos preocupar exclusivamente com nossas esperanças e temores, e estaremos disponíveis para todos que nos cercam, realizando assim o bem do outro ao mesmo tempo que o nosso.
FONTES DE INSPIRAÇÃO
“As lembranças do passado que surgem na mente cessaram definitivamente. Os pensamentos que dizem respeito ao futuro não têm ainda a menor realidade. A mente que permanece no presente é impossível de ser definida: é desprovida de forma, de cor; como o espaço, é insubstancial e irreal. É possível, portanto, compreender que a mente é desprovida de toda existência sólida”.
Atisha Dipamkara
“Quando um arco-íris aparece luminoso no céu, você pode contemplar suas belas cores, mas não pode pegá-lo e usá-lo como uma roupa. O arco-íris nasce de uma conjunção de diferentes fatores, mas nada nele pode ser apreendido. O mesmo se dá com os pensamentos. Manifestam-se na mente, mas são desprovidos de realidade tangível ou de solidez intrínseca. Nenhuma razão lógica justifica, então, que os pensamentos – que são insubstanciais – disponham de tanto poder sobre a pessoa, não há nenhuma razão para que você se torne seu escravo.
A infinita sucessão de pensamentos passados, presentes e futuros nos leva a acreditar que existe alguma coisa que estaria ali de forma inerente e permanente. Mas, na verdade, os pensamentos passados estão mortos quanto os cadáveres, e os pensamentos futuros ainda não surgiram. Então, como essas duas categorias de pensamentos que não existem poderiam constituir uma entidade que seja existente? E como o pensamento presente poderia se apoiar em duas coisas inexistentes?
Contudo, a vacuidade dos pensamentos não é simplesmente um vazio, como se pode dizer do espaço. Há ali presença, uma consciência espontânea, uma clareza comparável àquela do sol que clareia as paisagens e permite ver a montanhas, os caminhos, os precipícios.
Ainda que a mente seja dotada dessa consciência intrínseca, afirmar que há uma mente é colar o rótulo de realidade sobre algo que não o é, é anunciar a existência de uma coisa que é apenas um nome dado a uma sucessão de acontecimentos. Podemos chamar de ‘colar’ o objeto feito de pedras enfiadas num fio, mas esse ‘colar’ não é uma entidade dotada de existência intrínseca. Quando fio arrebenta, onde está o colar?”
Dilgo Khyentsé Rinpotche
“Pouco a pouco, eu começava a reconhecer a fragilidade e o caráter efêmero dos pensamentos e das emoções que me haviam perturbado durante anos, e compreendia como, fixando-me nos pequenos aborrecimentos, eu os havia transformado em enormes problemas. Pelo simples fato de ficar assentado observando a que velocidade e, sob muitos aspectos, com que ilogismo meus pensamentos e minhas emoções iam e vinham, comecei a ver diretamente que eles não eram tão sólidos e reais quanto pareciam. Depois, logo que comecei a abandonar minha crença na história que eles pareciam me contar, percebi, pouco a pouco, o ‘autor’ que se escondia por trás deles: a consciência infinitamente vasta, infinitamente aberta, que é a própria natureza da mente.
Toda tentativa de descrever com palavras a experiência direta da natureza da mente é destinada ao fracasso. Tudo o que se pode dizer e que se trata de uma experiência infinitamente pacífica e, uma vez estabilizada por uma prática constante, é quase inabalável. É uma experiência de bem-estar absoluto que impregna todos os estados físicos e mentais, até mesmo aqueles que são normalmente considerados desagradáveis. Esse sentimento de bem-estar, independe das flutuações das sensações vindas do interior ou do exterior, é uma das maneiras mais claras de compreender o que o budismo entende por ‘felicidade’ ”.
Yongey Mingyour Rinpotche
“A natureza da mente é comparável ao oceano, ao céu. O incessante movimento das ondas na superfície do oceano nos impede de ver as profundezas. Se mergulharmos, não há mais ondas, é a imensa serenidade do fundo… A natureza do oceano é imutável.
Olhemos o céu. Ele está, às vezes, claro e límpido. Outras vezes, nuvens se acumulam, modificando a percepção que temos dele. Entretanto, as nuvens não mudaram a natureza do céu. […] A mente não é nada, a não ser natureza totalmente livre… Permaneçamos na simplicidade natural da mente que transcende a todo conceito.”
Pema Wangyal Rinpotche
DEDICAR OS FRUTOS DE NOSSOS ESFORÇOS
No fim de uma sessão de meditação e antes de retomar o curso de nossas atividades, é importante fazer uma ponte entre nossa prática e a vida cotidiana para que os frutos dessa prática se perpetuem continuem a alimentar nossa transformação interior.
Se interrompermos bruscamente a meditação para retomar nossas atividades como se nada tivesse acontecido, a prática da meditação terá um efeito reduzido sobre nossa existência, e seus benefícios serão tão efêmeros quanto flocos de neve caindo numa pedra quente.
Uma maneira de assegurar a continuidade dos benefícios da meditação consiste em dedicá-los por meio de uma profunda aspiração, cuja energia positiva se perpetuará até que seu objetivo se realize, como um floco de neve que cai e se dissolve no oceano, e durará tanto quanto o próprio oceano.
Para tal, formulemos este desejo: “Que a energia positiva nascida não somente dessa meditação mas de todos os meus atos, palavras e bons pensamentos, passados, presentes e futuros, possa contribuir para aliviar os sofrimentos dos seres, a curto e a longo prazo”. Desejemos do fundo do coração que, pelo poder do que fizemos, as guerras, a fome, as injustiças e todos os sofrimentos causados pela pobreza e pelas doenças físicas ou mentais encontrem a paz.
Pensemos que essa dedicação dos benefícios de nossos atos não é como a divisão de um bolo entre mil pessoas das quais nenhuma recolheriam apenas migalhas, mas que cada um dos seres receberia o total.
Desejemos igualmente que todos os seres encontrem a felicidade, ao mesmo tempo temporária e derradeira. “Que a ignorância, o ódio, a avidez e outras perturbações possam ser erradicados de sua mente, e que possam atingir a plenitude das qualidades humanas, assim como o supremo Despertar”.
Que essa dedicação seja um selo indispensável a toda prática espiritual e permita que a energia construtiva proveniente de nossa meditação e de todos os nossos atos positivos se perpetue.
UNIR MEDITAÇÃO À VIDA COTIDIANA
A meditação é um processo de formação e de transformação. Para ter sentido, ela deve se refletir em cada aspecto de nossa maneira de ser, em cada uma de nossas ações e atitudes. Se assim não for, será perda de tempo. Devemos, então, perseverar com serenidade, vigilância e determinação, e verificar que, com o passar do tempo, mudanças reais acontecem em nós. Alguns afirmam que todas as atividades de sua vida são uma meditação. Se é inegável que o objetivo do treinamento da mente é nos tornar capazes de manter uma certa maneira de ser em todas as nossas atividades, declarar simplesmente que a vida é uma meditação parece ser um pouco prematuro. O turbilhão da vida cotidiana raramente nos dá a oportunidade de adquirir a força e a estabilidade necessárias à prática meditativa.
É por essa razão que é importante dedicar tempo à própria meditação, ainda que sejam trinta minutos por dia ou mais, se possível. Realizada pela manhã, quando se levanta, a meditação dará um outro “perfume” ao nosso dia. Seus efeitos impregnarão, de maneira discreta mas profunda, nossas atitudes e a maneira pela qual conduzimos nossas atividades e interagimos com aqueles que nos cercam. Durante o resto do dia, imbuídos da experiência adquirida, poderemos nos referir interiormente à meditação formal que estará ainda viva em nossa mente. Quando tivermos alguns momentos de descanso, será mais fácil mergulhar novamente numa qualidade de ser que se tornou familiar e manter a continuidade de seus efeitos benéficos. Essa prática é totalmente compatível com a vida ativa, profissional e familiar.
Esse efeitos nos permitirão situar as acontecimentos de nossa existência numa perspectiva mais ampla, e viver com mais serenidade sem, contudo, cair na indiferença, aceitar o que vier sem no entanto ser resignado e construir o futuro escorando-o numa motivação altruísta e confiante. É assim que, pouco a pouco, graças ao treinamento da mente, poderemos mudar nossa maneira de ser habitual. Teremos uma compreensão mais justa da realidade e, por isso, não ficaremos chocados quando mudanças brutais acontecerem em nossa existência, nem envaidecidos com nossos sucessos superficiais. Esses são os sinais de uma transformação pessoal autêntica que nos permitirá agir melhor no mundo em que vivemos e contribuir para a construção de uma sociedade mais sábia e altruísta.
”Trecho do Livro ”A arte de Meditar”’ de Matthieu Ricard.
Matthieu Ricard, cresceu no meio intelectual de Paris e doutorou-se em genética molecular. Aos 38 anos passou a viver nos Himalaias para tornar-se monge budista; é autor do livro “Felicidade – A prática do Bem Estar”, ‘A arte de meditar” e “A revolução do altruísmo” disponíveis em todas livrarias. Saiba mais sobre ele aqui.