Quem é esse que não consegue se calar?
Texto de Monge Gensho, publicado em http://opicodamontanha.blogspot.com.br/
Também aconteceu uma vez de um primo de Buda pensar que ele era melhor que Buda, mais certo que Buda. Como ele tinha uma opinião melhor, ele pensava que a Sangha não estava bem gerida, que os monges eram relaxados, queria regras mais duras para os monges, por exemplo, os monges comiam pela manhã e ao meio dia e ele dizia – Para quê? Basta comer uma vez só! – E este homem, chamado Devadhata, de tanto criticar, de tanto acusar Buda de excessivamente tolerante, criou um problema e seiscentos monges concordaram com ele, as regras deveriam sim, ser mais duras e que Devadhata deveria ser o líder. Então deixaram Buda e foram com Devadhata. Depois de algum tempo, após tudo dar errado, Devadhata ficou como símbolo do discípulo que pensa ser maior que o mestre e quer que a coisa seja feita de forma melhor, mais rígidamente. A lenda diz que a terra se abre e o engole. É muito provável que ele tenha sumido, desistido. E Shariputra, aquele personagem do Sutra do Coração, é que foi até o local onde estavam os monges e mostrou à eles que estavam errados.
O ensinamento de Buda é o “Caminho do Meio”, da moderação e não o caminho do radicalismo. Mas dentro disso, na essência, o que havia em Devadhata era a inveja. O que ele queria na realidade era derrubar o líder.
No caso dos evangelhos Cristãos, Judas queria que Cristo assumisse seu papel de líder de uma revolta contra os romanos. Que era o que as antigas profecias de Isaias, diziam: que chegaria um messias e que libertaria o povo do jugo dos estrangeiros. Era isso que eles imaginavam, que ele lideraria uma revolta e seria vitorioso. Outros líderes acabaram levando o povo judeu a uma revolta contra os romanos. Em 70 D.C. essa revolta se realizou e o imperador mandou suas tropas, que derrotaram os rebeldes judeus definitivamente. E já cansado de tantas revoltas dos judeus, ele decidiu que eles não ficariam mais juntos e ordenou que os judeus se espalhassem no império a isso chama-se diáspora, para enfraquecê-los, dividiu-os. Cada um num canto do império. Não podiam ficar mais juntos e nem ser uma nação. Situação que só mudou, quase mil e novecentos anos depois em 1948, quando novamente foi fundado um estado judeu, que não tem paz, pois foi fundado num lugar que já estava há quase 1900 anos sendo habitado também por outros povos, os palestinos. Então cada um defende seu direito histórico – Essa terra é minha! – são incapazes de se juntar e viver em paz e tolerar um ao outro, então criaram uma cultura de ódio.
No fim, nós podemos ver que isso tudo está baseado em egos, em “eus”, porque cada um assumiu uma identidade. Se eles perdessem a memória hoje e ninguém mais lembrasse quem é, olhassem uns para os outros e vissem seres humanos, que são da mesma raça, que são idênticos, todo conflito cessaria. Ninguém veria a necessidade de dar tiro no outro, nem de fronteiras nem nada assim, porque afinal de contas, seriam apenas seres humanos sem memórias. Então, isso ocorre porque foram condicionados a acreditar – eu sou diferente, eu, eu, eu – e, porque tem “eus” , tem conflito.
E essa é a grande lição de Buda quando diz – “Você não me enganará mais” – e ele então estende a mão, toca na terra e diz: “Tomo a terra como testemunha, você não me enganará mais”. Então o tema da palestra de hoje é: “Nós devemos olhar para dentro de nós mesmos” e a cada vez nos perguntarmos – Quem é esse que se irrita, quem é esse que perde a paciência, quem é esse que pensa que tem razão, quem é esse que tem opiniões, quem é esse que não consegue se calar? – Esse que vocês podem identificar, é nosso maior inimigo.
Então esse grande mal que está dentro de nós e que frequentemente derrota os homens, é ele mesmo, o “eu”, o ego, o amor a si mesmo. Por isso Dogen diz – “Estudar o zen é estudar a si mesmo, estudar a si mesmo é esquecer-se de si mesmo, esquecer de si mesmo é ser iluminado por todas as coisas”. Então, enquanto nós temos um “eu mesmo” dentro de nós, ele nos atrapalha demais, por que esse “eu”, esse ego, é ele quem se ofende com o que os outros fazem, é ele quem quer impor sua opinião, é ele quem pensa que sabe o que é o certo e que pensa que os outros estão errados.
Os que mais causam mal à humanidade são os que têm certeza que estão certos. Eles estão dispostos a qualquer coisa para provar isto. Kadafi (palestra ministrada antes de sua queda N.A.) está disposto a qualquer coisa para preservar seu poder, as suas idéias, os seus livros, a sua família, não importam as mortes, não importam os bombardeios, quantas pessoas irão morrer, quantos ficarão aleijados, não importa que o país inteiro seja destruído, desde que ele se conserve no poder. Porque ele está convicto de que tem razão e que é amado por seu povo.
Assad na Síria, ontem, fez suas tropas matarem cento e doze pessoas. Hoje foram os funerais. Suas tropas atiraram nas pessoas que estavam nos funerais. Mais cedo ou mais tarde, Kadafi e Assad vão sair do poder, serão depostos, talvez enforcados, talvez queimados vivos, quem sabe o vai acontecer com eles? Talvez fujam e sejam acolhidos em algum outro lugar para poder viver com seu dinheiro, mas atrás deles fica um grande rastro de destruição, por que eles têm grandes egos e têm certeza que estão certos.
Na realidade, falar sobre isso me entristece, mas eu vejo isso sempre se repetindo em todos os lugares. A convicção do “eu”, “meu eu”, “meu ego”. Meu ego se ofende se irrita quando não concordam com ele. Meu ego quer impor sua opinião, meu ego quer que os outros se dobrem ao que eu penso. E não há medida no esforço e na violência que as pessoas estão dispostas a empregar para isso. E essa é a história da nossa humanidade, história das ditaduras. Nós sabemos o que é o melhor, nós sabemos o que está certo. E não importa se são ditaduras de direita ou de esquerda. O mal, os horrores continuam, são os mesmos, porque tem certeza que tem razão. Então se têm razão, podem impor sua opinião, e todas as revoluções acabam dando no mesmo, donos de poder que não o largam.
Cada um de nós deve, quando pensa que tem razão, fazer um exame, olhar para dentro de si e perguntar – “Quem é esse que pensa que tem razão, quem é esse que está disposto a discutir, que é esse que se ofendeu, quem é esse que está irritado, quem é”? Daí vocês irão olhar dentro de si e verão Mara, vão ver a pior parte de si, cheia de vaidade, cheia de orgulho e disposto a destruir o mundo em prol de si mesmos.
A Sangha também tem todos esses males, afinal, é constituída de pessoas. E as pessoas às vezes se irritam, perdem a paciência, se encantam com qualquer título ou poder. Desde o tempo de Buda, aconteceram sérios problemas. Uma vez Buda estava com seus discípulos e eles se desentenderam tanto, brigaram tanto que Buda se levantou e disse – Eu vou embora! – Então se levantou e foi embora para outro lugar. Disse – Se vocês querem brigar, então fiquem aí – e foi embora. E seus discípulos perceberam que sem Buda eles ficavam sem liderança, estavam perdidos. Então foram atrás de Buda e pediram desculpas.
PERGUNTE AO MONGE
Porque temos que esquecer o nosso eu ou o nosso ego?
Não temos de esquecê-lo. Ele é necessário para transitar no mundo. Temos de perceber que ele é uma construção, nada permanente, mutável.
Mas por que, ao acabar essa luta contra o ego, o sofrimento acaba?
Não é por ter lutado com o ego que o sofrimento desaparece. É por ter ampliado seu ego a ponto de não haver mais separação entre ele e qualquer outro ser do universo. O universo é perfeito, sofrimento só existe onde há ego individual, o engano fundamental.
Olhe um carro: como ele anda, você poderia querer que ele tivesse uma alma própria, mas seu funcionamento depende apenas de que os agregados estejam adequadamente unidos e funcionando.
Você também é assim, mas a força que lhe dá essa identidade é muito forte. O Budismo entende que esse impulso se manifesta continuamente e origina novas manifestações, mas que a ”identidade” é tão ilusória quanto se dessemos um nome ao carro.
Para que serve o ‘eu’?
Precisamos desta roupa que é o ‘eu’, assim como precisamos de um veículo para nos deslocarmos. Essa roupa é feita de muitos pedaços, entre eles este cérebro que pensa. É preciso um nome para que possamos ser chamados e identificados. O problema é olhar para a roupa e pensar que nós somos a roupa. Não, não somos. O eu é apenas a roupa que vestimos para agir no mundo. Poderemos um dia tirar essa roupa e não deixar nossa natureza última.
Podemos dizer que sofremos porque temos apego. Somos apegados a amores, a roupas, a carros e quando não temos isso tudo, sofremos. Temos mil apegos. Diz-se que toda a riqueza do mundo é insuficiente para a ambição de um só homem. Por isso o homem pode procurar a felicidade em um apartamento de seis milhões de reais e fazer qualquer coisa para isso. O mundo ao seu lado pode desabar, mas ele pensa que a felicidade está ali e que qualquer manobra é legitima para acumular riqueza. Por isso se enreda em sofrimento.
O primeiro texto foi retirado do blog http://opicodamontanha.blogspot.com.br/
E as perguntas do site http://www.daissen.org.br/hp/index.php?id=&s=perguntas
Texto de Monge Gensho, monge zen budista brasileiro.
O NÃO-EU
O eu – o self , o si-mesmo – é extremamente enfatizado na vida moderna. O eu é muito importante, porque é uma unidade da nossa estrutura social e, portanto, a base de todas as coisas. Assim, falamos de auto-educação (self-education), autodesenvolvimento (self- development), self-service e outras expressões do gênero.
No entanto, quando paramos para pensar no que é o eu, temos uma imagem diferente dele. Não existe o eu, na verdade, sem o outro. O eu é uma coisa relativa, e o verdadeiro eu existe no estado de não-eu.
O que é o eu? O poeta Walt Whitman disse certa vez que o homem moderno pensa que o eu é alguma coisa que fica no espaço entre os sapatos e o chapéu. Esta idéia está longe da verdade. Buda Disse “A essência de todas as coisas á o não-eu”. Aquilo que comumente pensamos ser o eu é algo temporal e ilusório. A maioria das pessoas acha que “eu” é a coisa mais importante deste mundo: “Eu penso que…”, “Eu fiz isso…”, “Eu tenho o direito de…”, etc. Porém, o “eu” é o somatório de todas as outras pessoas e coisas.
Meu corpo foi-me dado por meus pais; todos os alimentos que como para manter meu crescimento e minha vida são produzidos e fornecidos pelos outros; todas as roupas que visto para proteger meu corpo são feitas por outras pessoas; meu teto e todos os meus outros pertences não foram feitos por mim. A língua que falo, eu aprendi. O modo como penso, eu aprendi. Meus pais, professores e todas as outras pessoas me ensinaram. Portanto, tudo o que sou é o somatório de outros. Não existe um “eu” separado dos outros.
Buda não considerava o “eu” como uma entidade eterna, independente e categórica – como é o caso do atman no hinduísmo e da alma no cristianismo. A vida é um contínuo vir-a-ser. Ela muda continuamente. O “eu” tem muitos estados, está sempre mudando. Eu sou pai por causa dos meus filhos; eu sou marido por causa da minha esposa; eu sou professor por causa dos meus alunos; eu sou velho porque sou comparado aos jovens. Tudo tem existência relativa.
A essência ou natureza da vida é o não-eu. Só quando a pessoa está no estado de não-eu é que existe verdadeira paz, beleza e felicidade. No estado de não-eu está o verdadeiro eu. Quando a mãe faz algo por seu filho, ela o faz sem reservas. Mesmo que sua própria vida esteja em perigo, ela faz tudo pelo filho. Diz-se que a mãe “se sacrifica” pelo filho, mas não se trata de sacrifício. Trata-se, isso sim, de uma realização da vida dela, porque a mãe e o filho são um. A mulher é frágil, mas a mãe é forte…porque uma mãe torna-se altruísta quando tem um filho.
Quando uma pessoa ama de verdade, ela dará sua vida pelo ser amado, porque o verdadeiro amante torna-se altruísta. A felicidade dele é a felicidade dela, o sofrimento dele é o sofrimento dela. Quando os que se amam formam uma só unidade, existe uma grande beleza, felicidade e paz. É uma grande alegria dar a própria vida por alguém que realmente se ama ou respeita. E isso só é possível porque o estado de não-eu tem esse poder. Os pais não deveriam subestimar o poder do amor; quando ama, sua filha frágil e meiga tem o poder de virar o mundo de cabeça para baixo.
O trabalho feito com amor é outra área em que podemos observar a verdade do estado de não-eu. A pessoa, trabalhando, esquece de si mesma no trabalho, esquece as horas, esquece de comer e tudo o mais. Ela e seu trabalho são uma só coisa. Ela põe toda sua vida nele. Trabalhar é uma alegria para ela. Todas as pessoas dedicadas são altruístas em seu trabalho. Um verdadeiro líder religioso dedica altruisticamente sua vida porque ele e seus seguidores são uma só coisa. O cientista dá sua vida à ciência porque ele e a ciência são uma só coisa. O estado de não-eu é tão belo, e tão forte!
Ao praticar tiro com arco ou jogar golfe, se a pessoa é egoísta ou consciente de si mesma nunca conseguirá dar o melhor de si. Mas se, depois de passar por uma boa disciplina ou treinamento no esporte, a pessoa for altruísta em seu propósito, seu esforço “sem esforço” poderá produzir resultados bem melhores do que o esforço consciente e a determinação objetiva.
As flores desabrocham sem pensar em si mesmas, o vento sopra sem pensar em si mesmo, as águas correm sem pensar em si mesmas e as crianças não pensam em si mesmas nas suas palavras e ações. Por isso são belos.
Buda ensinou o estado de não-eu como um de seus três ensinamentos básicos. É o nosso equivocado ego em estado egoísta que causa todos os problemas e sofrimentos humanos. Não percebemos que só podemos viver e desfrutar a vida por causa das outras pessoas e coisas. Quem compreender realmente essa verdade, não deixará de tornar-se humilde e apreciar os outros. O budismo é o caminho do estado de não-eu.
”Budismo Essencial – A arte de Viver o Dia a DIa”
Pergunta – Esse abandono do eu e do ego e a vontade da vida, isso fica um pouco confuso…
Monge Genshô – É porque pensamos que o eu é que vive. Mas não é o eu que vive a vida. A vida é que nos vive. Nós somos a própria vida. Não é um eu que esta vivendo a vida. Não é uma folha numa árvore lá fora que está vivendo a floresta, é a floresta que produz folhas. Nós somos a própria floresta, não somos folhas. As folhas nascem e morrem. Seria muito tolo que uma folha se sentisse muito infeliz porque amarelece e cai, nós diríamos que a folha é tola, pois torna-se húmus, nasce de novo, ela é a própria vida, não há nenhuma tristeza nas folhas que caem das árvores. Ninguém chora as folhas que caem no outono, pois nós sabemos que a vida produz primavera, mas quando olhamos para nós mesmos, confundimos o eu com a vida, nós pensamos que é o eu que vive a vida, e não é isso. A vida é que nos vive. Somos a própria vida. É por isso, porque a vida está sempre continuando, que nascimento e morte também são ilusões. Não há como você ir embora daqui, você é a vida. Então desse seu eu temporário é só um evento extemporâneo da vida como um todo. É como o quebrar das ondas do mar, como as folhas que caem e viram húmus, é como as nuvens que chovem. Se uma nuvem vira água e chove ninguém diz – Coitadinha da nuvem, virou chuva – nós sabemos que a chuva cai, que as plantas crescem por causa disso, que nós vivemos por causa disso, um dia ela evapora e volta a ser nuvem. Não damos nomes às nuvens e dizemos que elas tem identidades e não dizemos – Lá vai a nuvem Joana, coitada, vai morrer hoje pois esfriou e ela vai chover até se acabar – mas fazemos isso conosco e isso mostra nossa cegueira.
Pergunta – Por que?
Monge Gensho – Porque o eu é muito nítido, muito forte, você abre os olhos e vê os outros. Você tem ouvidos e ouve sons. E você pensa “Ah, isso sou eu!” Isso não é você, isso são sons, é a visão, são cheiros. Por que você pensa que é o que ouve, o que vê, o que cheira, o que prova? Nós pensamos que nossa mente somos nós mesmos, essa conformação mental é nossa consciência. Esse que pensa como Descartes “Penso, logo existo”. Eu penso, logo eu existo. Não é isso. Eu penso, por isso penso que existo. Esse pensar não fez um eu. Assim como a chuva que cai não faz nada, não faz um eu. Nós pensamos, só pensamos. Esse pensar nos atrapalha, cria a ilusão de um eu. Por isso sentamos e tentamos fazer com que nossa mente se acalme. Porque quanto mais ela cogita, mais ela se agarra à sua identidade e tem medo que sua identidade desapareça. Tem tanto medo que a identidade desapareça que cria fantasias religiosas. Eu vou continuar para sempre, eu tenho uma alma eterna. Quem morre não sou eu, é só o corpo, eu continuo depois. Vemos isso nos desenhos animados. Tom o gato morre e a alma dele vai saindo do corpo, e ele consegue agarrar pelo rabo e puxa de volta. Nós criamos essas fantasias, mas não existe uma alma eterna. Nós somos movimento da vida. Nós somos eternidade. Nós temos continuidade sim, há continuidade, não há com ir embora. A morte é que é uma ilusão.
http://opicodamontanha.blogspot.com.br/2013/10/a-vida-e-que-nos-vive.html
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