O Propósito da Educação no Budismo, por Lama Padma Samten
Como os ensinamentos budistas proporcionam um aprendizado contínuo desde a experiência cotidiana da vida? Qual a utilidade deste aprendizado?
A noção budista de educação como liberação
Usualmente a palavra aprendizado diz respeito a cognição, existe nela uma questão de acerto e erro. Ainda que no budismo tenhamos uma abordagem geral a respeito disso, que é quando o Buda diz : “Testem o que eu digo”, ele não está se referindo apenas às coisas práticas, sejam elas racionais ou emocionais; refere-se à fé também. A fé diz respeito à vida como um todo, não pode ser facilmente testada. Ainda assim podemos considerar que exista o critério de acerto e erro, mas muito além do sentido ordinário que se dá para isso. Usualmente a questão da aprendizagem nas diferentes tradições, inclusive no budismo, se coloca num sentido muito amplo, de transformação interior.
Como usualmente a educação se limita a uma perspectiva cognitiva, é muito raro chegarmos a um nível emocional; acaba tratando-se apenas de uma questão de mudança de opinião. Muito mais raro ainda seria ir além dos padrões habituais da percepção sensorial em si, chegando ao nível cármico e sua transcendência.
A abordagem cognitiva não toca sequer nesse segundo nível, o emocional. Pensemos nos argentinos, que recentemente perderam um jogo de futebol para os brasileiros. Ainda que encontrem justificativas discursivas, o sentimento de dor segue. Outro exemplo: para uma pessoa que é demitida do trabalho, eventuais justificativas não consolam seu lado emocional. Ou ainda podemos ter uma namorada e perdê-la, e em nosso sofrimento não somos capazes de ver toda uma diversidade de outros seres maravilhosos ao nosso redor. Por outro lado, podemos saber que estamos com a mulher da nossa vida, mas, curiosamente, outros seres seguem tocando o nosso coração. No nível emocional a pessoa sabe que deve pedir um aumento a seu chefe. Os amigos dizem: “Sim, vá lá e peça o aumento.” Mas quando chega o momento, ela não consegue bater na porta ou perde a voz, ou age de maneira brusca e irrita o chefe.
Além deste aspecto emocional invasivo que limita nossa vida e determina nossa experiência e forma de viver, existe um aspecto mais sutil, os carmas que nem percebemos que estão presentes, como os que definem nossa experiência sensorial — nossa visão, por exemplo. Uma pessoa pode operar com seus sentidos completamente atrelados a uma percepção cármica. O exemplo clássico: ver uma cobra onde há uma corda enrolada.
A operação mental legitima aquilo que cognitiva, emocional ou carmicamente percebemos. Estamos presos a este automatismo, e, através disto, os sentidos físicos nos introduzem em realidades virtuais. Se não fosse assim, os filmes no cinema não funcionariam, acontece que a emoção passa através dos sentidos físicos e viajamos mentalmente devido aos automatismos cármicos de resposta. Cada vez que vemos o filme, secretamente desejamos que o Titanic não afunde e conduzimos nossas emoções de acordo com os eventos na tela, mesmo que já saibamos o final do filme.
Toda a educação no budismo está baseada em recuperar a liberdade. O objetivo da educação budista não é adaptar o ser à experiência convencional de um mundo circundante, pré-existente e independente. Nossa experiência convencional é de que, se desaparecemos, o mundo continua. Convencionalmente vemos um mundo que nos acolhe, mas que é separado de nós. Esta é a experiência de samsara. No sentido budista, quando olhamos esta situação, não seguimos esta perspectiva. Os Budas olham esta situação de outra maneira, eles foram além dos diversos processos ilusórios da mente.
Quando superamos estes três automatismos — o cognitivo, o emocional e o cármico (sutil) —, o mundo se transforma completamente. A forma de reconhecer nossa situação se transforma completamente. Uma vez que isto se altera, surge o ideal de liberação daquilo que nos produz uma experiência limitada. Assim, ao invés de tentar nos adaptar a este mundo, tentamos nos liberar dos automatismos que produzem as experiências limitadas. Esta é a perspectiva mais profunda de educação no budismo. De fato, este é também o sentido de liberação.
Isto não pode ser percebido pela maioria das pessoas; portanto, existem ensinamentos extensos, nos quais focamos os elementos de condicionamento etapa por etapa e utilizamos as ferramentas para liberá-los.
Ouvindo ensinamentos
Num sistema de educação budista é muito difícil acreditar que alguém possa avançar sem um guia. Não é má-vontade, é que as ilusões são muito profundas, e além do mais temos intranqüilidades próprias, internas. Ainda que estejamos escutando instruções, nossa mente divaga. Outras vezes começamos a refletir sobre o que ouvimos e perdemos o ensinamento seguinte.
Por isto no ensinamento budista começamos ouvindo sobre como ouvir. Começamos tentando desenraizar os obstáculos mais evidentes. O ouvir tem obstáculos imediatos. Precisamos desenraizar o que chamamos de três defeitos do pote. É fácil ver que diferentes seres têm diferentes tendências, e que é muito raro o pote ser realmente perfeito, ou seja, receptivo.
O primeiro defeito é o pote emborcado, no qual não se pode depositar nada. A pessoa chega para ouvir, mas não apreende nada. Há ensinamentos sobre como um pote fica emborcado.
O segundo obstáculo é o do pote rachado virado para cima. O ensinamento entra no pote, mas não se mantém lá. O progresso é muito lento. A pessoa acredita que aprendeu, mas logo em seguida tudo se foi, e ela não sabe o que aconteceu.
Há o pote envenenado, que é o caso mais grave. Nem sempre os ensinamentos podem ser dados, pois o pote pode estar contaminado, corrompendo tudo o que nele é depositado.
É importante que os ouvintes sejam bons potes. Pode acontecer de ouvirem e gerarem amargor, oposição ou misturarem os ensinamentos com suas próprias teorias, continuando a operar dentro de seus contextos limitados. Isto significa utilizar os ensinamentos para gerar habilidades capazes de produzir vitórias transitórias, ou seja, vitórias com todos os obstáculos inerentes à roda da vida.
A motivação delimita os resultados
A primeira coisa de que precisamos é sabedoria do ouvir. Então surge a segunda parte dos ensinamentos: motivação e resultado. Este ensinamento é muito importante para organizações não-religiosas, pois a maioria de seus objetivos são impermanentes. Vivemos num tempo em que os objetivos estáveis são praticamente desconhecidos.
Se tivéssemos a lâmpada de Aladim e fizéssemos os três pedidos, pediríamos comida, uma esposa e um palácio. Isto pode não ser uma boa forma de utilizar o poder extraordinário da lâmpada. E se o gênio dissesse: “Vou lhes dar uma quarta coisa, uma coisa que a impermanência não destrua”, então talvez disséssemos: “Quero uma riqueza ilimitada.” Mas mesmo as coisas muito grandes dentro da visão separativa são limitadas, entre elas a riqueza, seja do tamanho que for. Para nós é muito difícil avaliar uma coisa que não esteja nesta categoria de impermanência.
Então existe esta classe de ensinamentos sobre que é permanente e o que é impermanente. Não importa o que obtenhamos no mundo da existência cíclica. Neste mundo vamos estar sempre operando como equilibristas, às voltas com urgências, prioridades e ansiedades. Todos os seres ali dentro estão presos a uma atitude contínua e urgente. Assim, nesta primeira categoria de ensinamentos, somos levados a gerar uma motivação para ir além da impermanência, somos levados a desenvolver uma motivação para o que está além do espaço e do tempo, além do que chamamos de roda da vida.
Uma ação positiva
Logo em seguida recebemos os ensinamentos que explicitam a amplidão da nossa natureza e o aspecto de inseparatividade. Não se trata de fugir da roda da vida, o que buscamos de fato é um interesse muito maior pelos seres. Esta experiência é completamente diferente da experiência-raiz da roda da vida. A experiência da roda da vida está ligada a prazer e dor, desejo e aversão. Esta segunda experiência está baseada na capacidade de compreender e atuar de forma muito mais ampla que a própria identidade. A comprovação desta amplidão é a capacidade de se alegrar com experiências cada vez mais altruístas.
A primeira visão de transcendência é quando percebemos que nossa experiência de ser transcende nossa identidade. Ou seja, do ponto de vista de nossa experiência, nos alegramos de fazer certas ações em detrimento daquilo que consideramos lucros individuais. Este fato é muito importante.
Quando os Budas, os grandes seres, observam esta natureza, a percepção que têm é de algo ilimitado. O aspecto ilimitado da natureza é o que de fato chamamos Buda, que significa liberto das limitações. Todo processo de treinamento ou educação segundo os valores budistas está centrado no treinamento dessa natureza, de modo que, em vez de focarmos nossa identidade estreita, reconhecemos nosso ser dentro dessa experiência de amplidão.
Educação como remoção de obstáculos
Os grandes mestres que ensinam sobre isto dizem que nossa natureza parece estreita devido a uma construção e chamam o processo de aprendizagem, a desconstrução, de remoção de obstáculos. Esta é uma abordagem geral. No treinamento budista, quando este aspecto é compreendido, quando é vivenciado, mesmo que parcialmente, há uma decorrência, um resultado. Este resultado é confiança, não propriamente cognitiva. Uma confiança nessa natureza que então se percebe está além de todas as histórias particulares que podem surgir para a identidade estreita construída. Mas isto não é teoria, é um aspecto vivenciado sensorial, cognitiva e emocionalmente.
Como este tipo de perspectiva pode manifestar-se na prática? Essencialmente, se isso tem valor, algum resultado prático deve ocorrer. Qual o resultado prático desta abordagem?
Podemos dizer que há uma vastidão de resultados práticos e precisaríamos de tempo para analisar todos. Especificamente em relação às comunidades humanas e ao benefício que os seres podem receber individualmente a partir disso, surgem a liberdade e a amplidão de visão que caracteriza esta liberdade. A liberdade manifesta-se através da amplitude de visão — coisas que os seres em geral vêem como obstáculos são vistas pelos grandes seres como situações com grande potencial de benefício.
É uma visão múltipla, é como se houvesse mais dimensões. Dito assim parece esotérico, místico. Estes aspectos podem estar incluídos, mas não necessariamente. Se nos defrontamos diretamente com um adversário ou inimigo no local de trabalho, as alternativas não são boas para nenhum dos dois. De acordo com estes ensinamentos, tudo que surge externamente é inseparável do que parece ser o mundo interno. Se percebemos apenas o exterior, estamos presos dentro de paredes concretas e constantes. Por outro lado, se percebemos a conexão entre os dois níveis, ganhamos liberdades inesperadas pelas mudanças externas ou internas. Podemos transformar os inimigos unilateralmente.
Existe uma classe de ensinamento que explica como transformar obstáculos em vantagens. Não se trata de usar uma visão idealista, mas de termos o poder de transformar unilateralmente as coisas que são obstáculos para nós e para os outros seres. Existe uma vastidão de conseqüências relacionadas com essa percepção da inseparatividade de um mundo externo e um interno. Perdemos muito quando congelamos um mundo externo em relação ao qual podemos apenas manobrar.
Todas as situações cármicas são impermanentes. Um exemplo disto é a diferença entre o reino dos deuses e o reino dos infernos. Vejamos uma situação em que os seres dos infernos estejam em uma mesa cheia de comida, mas seus braços sejam grandes demais e não possam ser dobrados. A mesma situação se repete no reino dos deuses, mas eles têm o discernimento de se alimentarem uns aos outros. Eis um exemplo típico de mudança de perspectiva. No inferno a comida está ali, a mesa está ali, a fome está ali, e o braço realmente não alcança a boca. Se aqueles seres pudessem apenas ampliar suas percepções e pensar nos outros e usufruir de sua liberdade, estariam saciados. É assim mesmo: quando usufruímos dessa liberdade, aparecem seres por todos os lados querendo ajudar. O deus se vangloria: “Que lugar maravilhoso, estou oferecendo comida a um, e 99 me oferecem comida!” No inferno o ser também está objetivamente certo: “Somos cem seres miseráveis.”
Todos os problemas estão nesta categoria. Ou seja, temos graus de liberdade adicionais, mas será necessário nos transferirmos para outras paisagens mentais, ampliar nossas perspectivas, antes de que possamos usufruir de nossas liberdades.
A educação no budismo está voltada a oferecer liberdades que não percebemos usualmente. Liberdades em relação àquilo que chamamos de roda da vida. Estas liberdades só podem ser acessadas removendo-se os obstáculos construídos.
O papel do professor
O professor representa o ensinamento do Buda. Curiosamente, os ensinamentos do Buda não são budistas, apenas proporcionam a liberação dos já mencionados condicionamentos automáticos. Estes ensinamentos são importantes para todos os seres, independentemente de sua confissão de fé. No sistema budista não há qualquer ênfase em converter as pessoas, o que importa é ajudá-las a perceber mais profundamente as realidades e liberdades em cada situação que vivam e em cada papel com que se identifiquem. O ensinamento busca produzir a experiência de transcendência, ou seja, a liberdade de criar e estabelecer universos mentais, e também liberdade frente ao criado.
Para ser professor, o indivíduo deve ter ouvido os ensinamentos correspondentes e desenvolvido uma certa clareza vivencial sobre os temas. Sem isto, não pode ensinar. Por outro lado, quando a experiência estiver clara, e ele puder falar sobre a liberdade e visão de que já usufrui, reconhecerá que não é uma sabedoria pessoal sua, mas uma característica do próprio Buda. Neste sentido, a pessoa sente-se agora completamente inseparável do próprio Buda. Surge-lhe a compreensão profunda de que a mente do Buda é igual à mente de todos os seres, e há seres que usufruem disto de forma consciente e outros não.
Assim, surge uma imagem cósmica do Buda como um impulso universal em direção à liberdade e felicidade, e todos que usufruem disso e dedicam-se a facilitar o acesso dos outros a esta liberdade e felicidade são completamente inseparáveis do próprio Buda. Não é uma característica ou posse pessoal, mas uma condição de liberdade e felicidade. Desta experiência surge a noção de bodisatva — sua visão é ampla, e ele utiliza suas características pessoais particulares como meio de espelhar a natureza de liberdade que é inerente a todos. É como um lago que, justamente por ser um lago particular no espaço e tempo, reflete a natureza ilimitada da lua em sua superfície.