“Tradição” do livro “Magic Dance: The Display of the Self-Nature of the Five Wisdom Dakinis” de Thinley Norbu. Traduzido por Padma Dorje.
Na verdade relativa não há comunicação sem que se compreenda todos os sistemas e ideias; tendo isso em vista, possa eu me adaptar ao sistema de cada um, desejando o benefício de todos.
Não há liberação na verdade absoluta sem o desprendimento perante todos os sistemas e ideias; tendo isso em vista, possa eu não me adaptar ao sistema de ninguém, e ir além do desejo pelo benefício.
NO UNIVERSO INTEIRO não há acordo com relação a uma só tradição, mas todos os seres, dos pequenos insetos aos praticantes sublimes, dependem de alguma delas para atingir seus objetivos. Sem uma diversidade de tradições a se escolher, não haveria base para a compreensão ou associação entre os seres; haveria apenas obstáculos, caos e miséria. Ainda que grupos diferentes sigam tradições diferentes, todas as tradições dependem da energia dos cinco elementos e surgem pelas combinações diversas dos elementos grosseiros e sutis. Mesmo assim, uma vez que cada tradição tem uma energia individual, que corresponde às faculdades individuais dos seres, lhes é difícil cruzar de uma tradição para outra.
Por exemplo, as aranhas tem uma tradição independente, e assim vivem solitárias. Com base em seus elementos desenvolveram uma energia e tradição particular que as protege, ao mesmo tempo em que provê alimentação. A aranha não tem uma tradição de serviçais, ela se sustenta por si mesma com a energia de seus meios hábeis, prendendo insetos de outra tradição que caem em sua teia. Caso a aranha mantenha sua tradição, mesmo quando muda de localização, ela se mantém confortável; ainda que o local seja diferente, a teia é a mesma. Mas se ela tenta mudar de tradição e viver num formigueiro, isso não vai funcionar, uma vez que as formigas são detentoras de uma tradição diferente, de grupo, que é daninha para as aranhas.
Como as formigas têm uma tradição de grupo, elas vivem em colônias. Elas possuem uma energia complementar que advém de sua interconexão cármica, de forma que, com a cooperação do grupo, elas podem até mesmo carregar alimentos maiores que seu próprio corpo. Ao manterem a tradição, isso traz conforto para suas vidas, mas caso a abandonem e sigam a tradição de algum outro ser, isso se torna prejudicial para suas vidas. Mesmo que cem colônias de formigas sigam na direção de uma aranha, todas ficarão presas na teia. Estamos é claro falando sobre a tradição geral das formigas, não das formigas gigantes africanas.
Mesmo ao falarmos das tradições mundanas, não há acordo com relação a um mesmo tema. É bom comer em silêncio, numa mesa redonda com garfos e facas, ao modo da tradição ocidental polida de alguns países, e também é bom comer fazendo sons de deleite, sentado numa almofada com hashis, ao modo da tradição polida oriental de alguns países. Mas se nos apegamos à tradição, quando trocamos os garfos pelos hashis, se torna desconfortável segurá-los e difícil fazer sons de deleite com a boca; e quando trocamos os hashis pelos garfos, é difícil segurá-los e ficar em silêncio.
A tradição positiva de um país é a tradição negativa de outro. Por exemplo, nas tradições de alguns países, se você arrota quando come, isso significa satisfação, e seu anfitrião exclama “que maravilha!” Em outros países, se você arrota durante uma refeição, seu anfitrião se sente insultado, e você exclama, “me desculpe!” Então há duas expressões diferentes correspondentes ao hábito tradicional de arrotar.
De acordo com os costumes sociais de alguns países em que as pessoas desde criança são guiadas pela livre expressão, as pessoas são consideradas misteriosas se não falam de forma direta. De acordo com os costumes sociais de outros países, as pessoas são consideradas presunçosas caso falem diretamente. Assim há dois juízos diferentes de acordo com o hábito tradicional para o jeito de falar.
Caso apreciemos a tradição, o único método é arrotar diante daqueles que gostam de arrotar, e não arrotar na frente daqueles que não gostam disso; apenas arrotar de forma temporária até ficar satisfeito, e não aceitar ou rejeitar qualquer hábito de arrotar, uma vez que não há benefício último em arrotar ou não arrotar durante uma refeição. O mesmo é verdade com relação a falar. O único método é falar diretamente quando na presença daqueles que apreciam isso, e ficar quieto diante daqueles que não apreciam, sem aceitar ou rejeitar o hábito de falar ou não falar.
O mesmo com relação ao darma. Até que o dualismo da energia do elemento grosseiro e sutil se resolve numa essência secreta única, povos diferentes seguem tradições diversas. Por exemplo, é tradição para os taoístas chineses praticantes do T’ai Chi Ch’uan manter o ânus relaxado de forma a aumentar o fluxo natural de sua energia pura. E é tradição dos praticantes da Ioga Tântrica Interior manter seu ânus fechado para manter o ar do vaso internamente, e assim aumentar a energia pura.
Na tradição Hinayana, dizem que aqueles que são apegados às mulheres nunca atingirão a liberação. De acordo com o caminho Hinayana, considera-se que as mulheres sejam a fonte das paixões e obstáculos para o caminho da moralidade. Por essa razão muitos praticantes do Hinayana se tornam monges e evitam as mulheres. Na tradição Tântrica Interior é dito que aqueles que não recorrem a mulheres nunca atingirão a liberação. De acordo com o caminho tântrico, as mulheres são a fonte do fenômeno de sabedoria, e o suporte do êxtase sem desejo que surge através do desejo, e assim muitos santos revelaram que devem ser buscados como consortes.
As diferentes tradições são adequadas para faculdades diferentes, e assim o único método é aceitar o que desejamos, de acordo com nossas faculdades, seja a tradição Hinayana ou a tradição Tântrica, ou as duas. Caso tenhamos medo de mulheres, podemos aceitar a disciplina do Hinayana; se as amamos, então podemos aceitar o complemento externo da consorte de sabedoria interior da tradição Tântrica; ou podemos aceitar ambas as tradições, se conseguimos transmutar os diferentes aspectos em uma essência única.
Num sentido último, para a finalidade da iluminação, precisamos reconhecer o espaço desobstruído da sabedoria sem tradição, que é a fonte de todas as tradições. Mas num sentido temporário, enquanto nossas faculdades estão obscurecidas, não podemos rejeitar a tradição. É tradição no Darma dizer que, para levarem à iluminação, os ensinamentos do Buda se adaptam aos costumes mundanos. Faculdades elementares puras e aguçadas sempre refletem o Darma puro, mas aqueles com faculdades elementares impuras e obstruídas não conseguem se adaptar ao Darma puro, e assim precisam confiar nas tradições da fé até que desenvolvam faculdades aguçadas.
Há três tipos de fé: fé fanática, fé desimpedida e fé razoável. Caso tenhamos fé fanática, quando vemos uma pedra na estrada e alguém nos diz que se trata de uma deidade, rezamos para a pedra. Essa fé fanática pode funcionar porque nosso fenômeno de pedra se transforma em fenômeno de deidade. Caso tenhamos fé desimpedida, então vamos a um templo com uma mente refrescada e inocente, aceitamos os belos afrescos ou o que quer que vejamos como fenômenos positivos. Essa fé desimpedida funciona porque cria uma mente desimpedida. Caso tenhamos fé razoável, entenderemos as coisas através da lógica e poderemos ver qualidades invisíveis nas qualidades visíveis. Por exemplo, se estamos no meio do oceano e vemos um pato voando acima de nós, temos fé de que há terra por perto; ou se vemos fumaça nas montanhas, temos fé de que há fogo por lá.
Fé significa desejar. Caso não tenhamos fé nas qualidades da comida em nos nutrir, por que a desejaríamos comer? Caso não tenhamos fé nas qualidades da roupa em proteger nossos corpos, por que a desejaríamos vestir? Caso não tenhamos fé, como faríamos contato com nossos amantes, com nossa família, nossos amigos, nossos professores mundanos ou do Darma, ou os costumes de nosso país? Se não temos fé, somos piores do que animais. Até mesmo as vacas tem fé na grama.
Ao perguntarmos às pessoas religiosas se elas têm fé em seu deus, elas dizem que sim. Caso perguntemos se tem fé em seu amigo, elas dizem que não. Mas a essência da fé é o amor, então caso realmente amemos nosso deus e realmente amemos nosso amigo, então automaticamente teremos fé em ambos. Estaremos apenas usando a fé de um jeito diferente de acordo com as diferentes tradições. Caso pensemos que é bobagem ter fé em um deus porque ele é invisível, não compreendemos a essência da fé, que é amor, e é sempre a mesma. Quando amamos, pensamos que amamos um objeto, mas o amor está inerente no sujeito e apenas reflete no objeto. Então quando o amor está presente, a fé também sempre está ali. O objeto da fé muda de um deus para um país, ou amigo, ou amante, de acordo com a tradição que seguimos, enquanto que o beneficio temporário e último da fé segue dependente de nossa intenção com relação ao objeto.
Sem depender da tradição, não conseguimos fazer nada. Dessa forma, até que nos iluminemos, não podemos rejeitar a fé, que depende da tradição. De forma a haver comunicação, é sempre necessário lidar com a tradição da sociedade. Mas se confiamos nisso com apego rígido, então pela nossa fixação, ficaremos presos à tradição.
A tradição do dirigir na rua dentro da cidade não é adequada se estamos dirigindo numa autoestrada; impõe limites desnecessários à liberdade. Ainda assim alguns cidadãos rígidos da Sanga podem pensar que seu hábito de dirigir na cidade é sempre adequado para qualquer lugar, e querem usá-lo para limitar a liberdade das pessoas que preferem dirigir nas autoestradas desimpedidas de suas Mentes de Sabedoria.
Podemos dizer que a finalidade da tradição é inventar novas formas e novas qualidades mais visivelmente refinadas, de forma a revelar a essência de pura luz dos elementos. Mas devido a nossos hábitos, gostamos de nos ater a apenas uma tradição determinada. Como detentores da tradição, tememos perder nosso poder mundano, não gostamos de mudar na direção de novas qualidades. Da mesma forma que com a maioria dos governantes que dizem que querem fazer mudanças em seus governos para benefício do público, nunca as faremos se isso implicar a perda de nosso próprio poder. Ao mudarmos, nosso fenômeno muda, e se o fenômeno muda, haverá sempre uma alteração no equilíbrio do poder.
O ponto de vista do Darma é tentar destruir a tradição do samsara pelas expressões de sabedoria de meios hábeis tais como escrever, pintar, falar ou ensinar de forma a atingir a iluminação, que está além da tradição. Mesmo assim, muitas gerações de artistas, filósofos e professores expressaram a si próprios sempre no mesmo estilo tradicional. Ao escrever ou pintar ou dizer algo que não está suficientemente próximo da tradição, alguns budistas rígidos imaginam que não se trata do ponto de vista budista. Eles não compreendem que a tradição budista consiste em romper as tradições impuras do samsara para atingir as tradições mais vastas e puras. A tradição, se não é pura, sempre impõe limites. Assim, desde o princípio, para liberar nossa mente do hábito da armadilha tradicional do samsara, não devemos ter apego à tradição. Devemos ter uma compreensão da exibição dos muitos possíveis aspectos da tradição sem ignorar as tradições dos outros, de forma a beneficiar e satisfazer os seres tradicionais do samsara. Dessa forma, ao mesmo tempo em que liberamos nossa mente da tradição, para ornamentá-la, devemos brincar com ela, sem aceitação ou rejeição, como um belo pássaro e uma árvore ornamentam um ao outro.
Caso enquanto artistas tenhamos a intenção limitada de expressar apenas as formas estéticas nos limites de nossa própria tradição, que vemos pelos olhos obscurecidos dos elementos grosseiros, então está bem para nós permanecer sempre presos no campo limitado da tradição de nosso próprio país. Caso tenhamos a intenção vasta de ser artistas sublimes, de expressar as qualidades da tradição da sabedoria ilimitada, então precisamos sair do canto sombrio de nossa tradição e vir para o centro, sem rejeitar o canto que também pertence ao centro; e permanecendo no espaço iluminado do centro, podemos emanar quantas formas existam desobstruidamente.
Caso enquanto filósofos tenhamos a intenção limitada de palestrar somente na forma lógica grosseira no limite da dedução, que analisamos com a mente neurótica dos elementos grosseiros, então está bem constantemente solidificar os limites da realidade dos fenômenos invisíveis dos seres comuns. Caso tenhamos a intenção vasta de ser filósofos sublimes, de criar qualidades invisíveis sublimes pela lógica visível dos seres comuns, então precisamos evitar expectativas de títulos e graduações externamente pomposas e internamente sem essência, e precisamos passar a tesouraria de sabedoria de nosso conhecimento ilimitado como um nobre rio por todas as universidades do universo, compartilhando o néctar de nosso conhecimento com todos afluentes recipientes do mundo, os alunos.
Caso enquanto monges tenhamos a intenção limitada de expressar formas morais no limite de nossa tradição, que consideramos com a mente moral egóica de nossos elementos grosseiros, então está bem seguir sempre atados pela disciplina inútil da tradição de nosso próprio grupo. Caso tenhamos a intenção vasta de ser monges sublimes, e aceitar a tradição ilimitada da pureza da sabedoria, então precisamos nos libertar do jardim cultivado da organização tradicional do grupo de monges e ir para a imaculada e vasta ilha da moralidade, permitindo que nossa moralidade desabroche como um lótus, cujas pétalas internas e externas são puras, e cujo perfume natural e incondicional de mel emana desobstruidamente para quantos seguidores-abelha existirem.
Caso enquanto iogues tenhamos a intenção limitada de expressar formas supersticiosas nos limites de nossa própria tradição, que visualizamos com a mente fixada de nossos elementos grosseiros, então está bem para permanecer sempre atados pelos limites da paranoia positiva. Caso tenhamos a intenção vasta de ser iogues sublimes, e cultivar a mandala ilimitada e não criada da sabedoria sublime, então é necessário escapar das mulheres comuns reclamonas e unir-se com as qualidades livres de desejo e de grande êxtase da Dakini avantajada que realiza desejos. E então, bêbados do vinho da sabedoria, poderemos cantar canções de realização e despertar os seres da ignorância dos elementos pesados para a luz de sua mente natural com o som do tambor e do sino.
Caso enquanto meditadores tenhamos a intenção limitada de apenas expressar formas silenciosas nos limites de nossa respiração, que inalamos e exalamos pelas narinas obscurecidas do corpo cármico limitado, então está bem permanecer atados pelo espaço limitado de nossa almofada tradicional, e renascer como vacas quase totalmente silenciosas, exceto pelo mugido ocasional. Caso tenhamos a intenção vasta de ser meditadores sublimes, então precisamos liberar nossa mente da concentração e relaxar num espaço sem espaço natural, límpido e infinito. Quaisquer concepções de existência e não existência que surjam, podemos liberá-las todas até que nossos pensamentos, como nós autoliberados feitos de nuvens, se tornem ornamentos luminosos da exibição sem tradição.
Thinley Norbu Rinpoche
Thinley Norbu Rinpoche ou Dungsé Thinley Norbu (1931-2011) foi um dos professores mais elevados da linhagem Nyingma do budismo tibetano, ele era o filho mais velho de S.S. Dudjom Rinpoche. Reconhecido como a encarnação de Tulku Drime Oser, que foi um dos sete filhos de Dudjom Lingpa, ele também é considerado uma emanação Longchen Rabjam (Longchenpa).
Em sua juventude, no Tibet, ele estudou durante nove anos no Monastério Mindroling. Rinpoche é o pai de Dzongsar Khyentse Rinpoche e de Dungse Garab Rinpoche. Ele foi um grande poeta e autor de importantes textos como A Small Golden Key, Magic Dance, White Sail e A Cascading Waterfall of Nectar. Seus livros são referências essenciais para todos os praticantes da tradição Nyingma.
A tradução do texto foi feita por Padma Dorje, praticante budista e autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos. Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org.
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