O Monge e o Filósofo – J.-F. Revel & M. Ricard
Por que o budismo faz hoje tantos adeptos e suscita tanta curiosidade no Ocidente? Isso revelaria uma lacuna, uma necessidade insatisfeita, na civilização ocidental, científica e técnica?
Para tratar essa questão reuniram-se Matthieu Ricard, intelectual ocidental e monge budista, e seu pai, Jean-François Revel, grande filósofo agnóstico, para confrontar suas interrogações e curiosidades recíprocas. As considerações de Jean-François Revel, embora comportem sérias reservas ou objeções, contêm a parte do budismo que ele considera aceitável e universal: a sabedoria na condução da vida. Elas trazem à luz os fracassos do pensamento ocidental – especificamente a falência dos grandes sistemas filosóficos e das grandes utopias políticas – que podem explicar a presente atração dos ocidentais por uma forma de sabedoria muito antiga e ao mesmo tempo muito nova.
Jean-François Revel, nascido em 1924, é um filósofo que considera vã toda metafísica. Expôs seu agnosticismo em várias obras. A recente difusão do budismo no Ocidente, porém, fez com que pai e filho expusessem suas idéias em diálogos ao mesmo tempo espontâneos e estruturados. Jean faleceu em 2006 e era o pai de Matthieu Ricard.
Matthieu Ricard, nasceu em 1946 e depois de seguir estudos científicos de biologia molecular que o levaram até o doutorado adere ao budismo e, em 1972, instala-se definitivamente na Ásia, para acompanhar os ensinamentos de seus mestres tibetanos.
Esse encontro entre pai e filho, realizado em maio de 1996, em Hatiban, no Nepal, no isolamento de um sítio no alto da montanha que domina Kathmandu, revelou o pensamento de duas pessoas particularmente importantes com entendimentos bastante diferentes sobre assuntos sérios e atuais e conseguiu mostrar ao leitor como pode ser fantástico o intercâmbio entre um monge e um filósofo.
O MONGE E O FILÓSOFO – O BUDISMO HOJE
O INDIVÍDUO REI
JEAN-FRANÇOIS – Será que vocês, budistas, às vezes se perguntam em que as nossas ciências do homem e suas conquistas, tais como se constituíram e se desenvolveram de um ou dois séculos para cá, podem contribuir para sua ciência da mente? Ou será que para vocês essa ciência da mente, cujas bases foram lançadas há dois mil e quinhentos anos, não têm nada a aprender com as ciências ditas humanas?
MATTHIEU – A atitude budista consiste em manter-se totalmente aberto às reflexões e aspirações de todos. Portanto, não se trata de fechar-se para a maneira pela qual o Ocidente encara as ciências da mente. Mas convém não esquecer que, no geral, o Ocidente se desinteressou progressivamente das ciências contemplativas para se concentrar nas ciências ditas naturais. Curiosamente, até a psicologia – que, com o nome indica, deveria ser uma ‘ciência da mente’ – evita a introspecção, considerada não-objetiva, e se esforça por converter os eventos mentais em fenômenos mensuráveis. Então, por princípio e na prática, ela ignora o método contemplativo. Para o budismo, ao contrário, é evidente que a única maneira de uma pessoa conhecer sua mente é examinando-o diretamente, primeiro de modo analítico e depois, contemplativo, ou meditativo – e por meditação entende-se bem mais que um vago relaxamento mental, imagem que muitos ocidentais fazem da meditação. O budismo denomina meditação uma descoberta progressiva, ao longo de anos de prática, da natureza da mente e do modo pelo qual os eventos mentais se manifestam nele. A abordagem da psicologia ocidental parece então fragmentária e um tanto superficial, no sentido etimológico da palavra, porque apenas aflora a ‘casca’ da mente.
J.F. – Em contrapartida, quanto às ciências exatas, acho que a atitude dos budistas é inequívoca.
MATTHIEU – Isso mesmo. No caso, por exemplo, de uma lei matemática ou física que tenha sido demonstrada de maneira clara, sem deixar dúvida alguma, a atitude budista consiste em adotar todo conhecimento válido e em abandonar tudo o que se provou inexato. Por isso é que o budismo não tem nenhuma dificuldade em modificar sua percepção do universo físico – a da astronomia, por exemplo -, já que o fato de a Terra ser redonda ou plana não altera grande coisa nos mecanismos fundamentais da felicidade e do sofrimento. O Dalai-Lama sempre diz que no Tibete lhe ensinaram que a Terra tinha a forma de um trapézio, mas que ele não teve a menor dificuldade de compreender e, portanto, de admitir, que a Terra é redonda!
J.F. – É o que se chama na filosofia ocidental rejeitar o argumento de autoridade.
MATTHIEU – Existe uma cosmologia budista antiga, que foi redigida nos séculos VI e V a.C., na Índia. Uma grande montanha, o monte Meru, constituía o eixo do universo, e ao redor desse eixo giravam o sol e Lua e se estendiam diversos continentes. Essa cosmologia pertence àquilo que se chama ‘verdade relativa’ ou ‘convencional’, uma verdade que era a daquele momento.
J.F. – Em relação às ciências da matéria e às da vida – biologia, astrofísica, teoria da evolução das espécies – , parece-me que os budistas têm uma atitude muito mais aberta que a da Igreja católica e do catolicismo em geral, pelo menos até Ester últimos anos. A Igreja adotava, como parte do dogma, uma certa explicação do universo e da criação dos seres vivos que aos poucos foi sendo bombardeada pela ciência, na qual via uma inimiga. Ainda no século XIX, assistiu-se às reações hostis que a teoria da evolução das espécies despertou nos meios cristãos. A Igreja acabou se adaptando, mas muito tardiamente: nos anos 50 e 60, um padre que tentava conciliar a teoria da evolução das espécies com o dogma cristão – estou falando do padre Pierre Teilhard de Chardin – foi mantido no índex pela Igreja católica durante muito tempo porque adotava essa teoria como ponto de partida de suas investigações teológicas. O budismo tem uma atitude claramente menos dogmática.
MATTHIEU – De fato, a concepção que o budismo tem do mundo dos fenômenos não é um ‘dogma’, porque o modo pelo qual esse mundo fenomenal é percebido varia segundo os seres da época. A descrição contemporânea do cosmo corresponde à percepção que temos do universo em nosso tempo, e o budismo a aceita como tal. Não cabe rejeitar a ciência enquanto descrição dos fatos, das leis naturais. Em contrapartida, o budismo não pode aceitar a pretensão quase metafísica da ciência para deter uma explicação última, em todos os planos, materiais e imateriais, sobre a natureza do mundo e da mente. O budismo tampouco tem razão alguma para mudar fundamentalmente de ponto de vista segundo a direção em que o vento das descobertas científicas soprar, porque essas descobertas não confirmam nem desmentem os princípios da vida espiritual: o fato de o altruísmo ser causa de felicidade e o ódio, de infelicidade não deve nada à rotundidade da Terra ou ao big-bang. Pode-se admitir a priori que as teorias científicas sucessivas constituam uma visão cada vez mais próxima da realidade física, mas convém lembrar que a ciência, ao longo de sua história, muitas vezes adotou idéias diametralmente opostas às precedentes, sempre falando, a cada vez, de ‘revolução científica’ e exibindo o mais profundo desprezo pelos que não compartilhavam das idéias do momento. Não digo que seja preciso se agarrar ao passado, mas penso que não convém prejulgar o futuro ou desprezar outras visões da realidade.
BUDISMO E PSICANÁLISE
JEAN-FRANÇOIS – Passemos a uma outra disciplina ocidental à qual o budismo certamente deverá se confrontar: a psicanálise. A psicanálise não é uma ciência exata. É uma orientação de pesquisa. Mas, de cem anos para cá, exerceu no Ocidente um papel enorme na visão da natureza humana. EM certo momento, até se pôde falar de invasão generalizada da concepção psicanalítica. Em relação ao problema que nos interessa, o aspecto da psicanálise que o budismo deve levar em conta é a tese freudiana central: seja qual for o esforço de lucidez interior que um ser humano possa desenvolver, quaisquer que seja sua humildade, seu desejo de sinceridade, seu desejo de conhecer a si mesmo e de mudar, existe algo que fica fora do alcance da introspecção clássica: aquilo que Freud denomina o inconsciente. Sumariamente falando, existem formações psíquicas, pulsões, lembranças recalcadas que mantêm uma atividade e uma influência sobre nosso psiquismo – e, portanto, sobre nosso comportamento – , sem que disso tenhamos consciência ou possibilidade de controle. A única técnica que permite revelá-las, eventualmente dissipá-las e nos assenhorear delas é a psicanálise. Mas Freud estima que, pela sabedoria comum, é ilusório pretender transpor a barreira do recalque que escondeu essas forças psíquicas em nosso inconsciente. Não podemos ter acesso a elas simplesmente pelo olhar interior e pela prática do exercício espiritual. Desta vez, não se trata de pura teoria, já que a experiência do tratamento demonstrou a realidade desse inconsciente inacessível à introspecção clássica.
MATTHIEU – Afirmar que não se pode transpor a ‘barreira do recalque’ me parece uma declaração um tanto apressada… tão apressada quanto a de William James quando afirmava: “Não se pode deter o fluxo das associações mentais; eu tentei, é impossível”. Esse tipo de conclusão revela uma falta experiência e prolongada na introspecção, na contemplação direta da natureza da mente. Como foi que Freud tentou transpor essa ‘barreira do recalque’? Refletindo sobre ela, com a ajuda de sua brilhante inteligência, e abordando-a por meio de técnicas novas. Mas será que ele passou meses e anos inteiramente concentrado na observação contemplativa da mente, como fazem os eremitas tibetanos? Como é que o psicanalista, sem ter ele mesmo percebido a natureza última do pensamento, poderia ajudar os outros a percebê-la? Comparado a um mestre espiritual qualificado, ele faz pálida figura. O budismo atribui uma importância considerável à dissolução daquilo que, no geral, corresponde ao inconsciente da psicanálise. Chama-se isso de ‘tendências acumuladas’ ou ‘camadas da mente’. Estas não se apresentam no nível das associações mentais, mas predispõem o indivíduo a se comportar desta ou daquela maneira. Sob um certo ponto de vista, o budismo atribui a importância ainda maior a essas tendências, já que, segundo ele, elas não remontam apenas à infância, mas a incontáveis estados anteriores de existência. Comparam-se a sedimentos que pouco a pouco se depositaram no leito do rio da consciência, chamado ‘consciência de base’. Na verdade, distinguem-se oito componentes da consciência, mas não vou entrar em detalhes.
J.F. – Por que não? Seria interessante.
MATTHIEU – A ‘consciência de base indeterminada’ é a componente mais elementar da mente, é o simples fato de estar ‘consciente’, de ter uma percepção global e indistinta da existência do universo. A seguir, distinguem-se cinco aspectos da consciência ligados à visão, à audição, ao paladar, ao olfato e ao tato. A seguir, há o aspecto da consciência correspondente às associações mentais. E, por fim, o aspecto da consciência ligado às emoções positivas ou negativas que resultam das associações mentais. É a primeira ‘consciência de base’, que serve de suporte e de veículo para as tendências arraigadas. Quando se tenta purificar o fluxo de consciência examinando a natureza da mente, utilizando o ‘olhar interior’ ou a prática espiritual – os quais, segundo Freud, não alcançariam aquele inconsciente -, inclui-se, claro, a dissolução dessas tendências. Aliás, elas são mais difíceis de eliminar do que as emoções grosseiras, pois foram acumuladas durante um considerável lapso de tempo. Compara-se isso a uma folha de papel que ficou enrolada por um longo período. Quando tentamos alisá-la sobre uma mesa, ela fica estirada enquanto a seguramos, mas se enrola novamente quando a soltamos.
J.F. – Por conseguinte, o budismo admite a existência de tendências e representações inconscientes – se é que podemos falar de ‘representações’ inconscientes. Sim, podemos, na medida em que nos referimos a lembranças ao menos potenciais, a representações que foram recalcadas. Então, essa bagagem inconsciente não remonta apenas à primeira infância, mas também, como você dizia, a vidas anteriores? Por conseguinte, o trabalho de anamnese, isto é, da relembrança, que Sócrates aconselhava a seus discípulos, deveria entender-se até bem antes dos primeiros anos da existência, o que oferece aos colegas psicanalistas um novo campo de investigação, um trabalho considerável… Espero que isso reaqueça o assunto!
MATTHIEU – O choque do nascimento se faz acompanhar por uma obliteração das memórias anteriores – exceto no caso do sábio, que é capaz de dominar o fluxo de sua consciência entre a morte e o renascimento, através do bardo. Para o ser comum, produz-se um esquecimento que, em grau diferente, pode ser comparado ao esquecimento, pelo adulto, dos fatos da primeira infância. Diga-se de passagem que, muito antes de Freud, o Bardo Thodrol, o Livro tibetano dos mortos, declara que o ser que vai nascer experimenta, de acordo com o que vai se tornar, homem ou mulher, uma forte atração pela mãe ou pelo pai e um sentimento de repulsa pelo outro progenitor. Mas o que é muito diferente é a maneira pela qual o budismo concebe a natureza desse inconsciente, assim como os métodos empregados para purificá-lo. Quanto aos meios, o budismo não concorda com Freud quando este afirma que não se pode ter acesso às tendências passadas nem agir sobre elas por métodos espirituais. O próprio objetivo da vida espiritual é dissolver essas tendências, pois todos os pensamentos de atração e de repulsa nascem dos condicionamentos anteriores. Todo o trabalho sobre a mente consiste em chegar à raiz dessas tendências, em examinar-lhes a natureza e em dissolvê-las. Pode-se chamar isso de purificação, não em sentido moral, mas num sentido prático, comparável à eliminação dos poluentes e dos sedimentos que turvam a pureza e a transparência de um rio.
Com base na minha pouca existência, eu sempre tive a impressão, na presença de pessoas que haviam feito ‘análise’, de que elas sem dúvida se desembaraçaram dos elementos mais dramáticos de seus problemas, remontando à primeira infância, mas não puderam dissolver a raiz profunda daquilo que lhes atrapalha a liberdade interior. Depois de tantos anos de esforços, essas pessoas não têm particularmente o ar de quem irradia uma serena plenitude. Com muita freqüência, permanecem frágeis, tensas e inquietas.
J.F. – Infelizmente, acho que seu testemunho não é o único nesse sentido. Aliás, certas escolas recentes da psicanálise renunciaram à idéia freudiana segundo a qual a anamnese equivaleria à cura, e até a de que o inconsciente possa ser integralmente esclarecido.
MATTHIEU – O motivo pelo qual as tendências, o equivalente do inconsciente, não são visíveis é que elas permanecem em estado latente, como as imagens de um filme que foi exposto mas ainda não foi revelado. Todo o esforço da psicanálise consiste em tentar revelar esse filme. O budismo acha mais simples atear-lhe fogo, o fogo do conhecimento, que permite perceber a natureza última da mente – a vacuidade – e, na mesma ocasião, eliminar todo vestígio de tendências. Portanto, o budismo trabalha em um nível inteiramente diferente. Não basta identificar certos problemas nossos do passado. Reviver certos fatos longínquos não passa de um remédio limitado, que sem dúvida permite diminuir certos bloqueios, mas não elimina a causa primeira destes. Remexer excessivamente a lama do fundo de um lago com uma vara de nada serve para purificar a água.
J.F. – Não é bem assim! A coisa é mais sutil!… O que é que se costuma denominar um neurótico? Porque, em princípio, a análise se destina a indivíduos que sofrem de dificuldades. Tomemos, por exemplo, alguém que se mete sempre, quase voluntariamente, em situações de fracasso. Essa pessoa inicia alguma coisa, está quase conseguindo e, na hora em que tudo vai bem, comete um erro fatal, tão enorme, que é inexplicável em termos racionais sobretudo se se tratar de alguém inteligente. Eu tive amigos, aliás muito famosos, que em várias etapas de suas vidas enveredaram por uma série de comportamentos catastróficos, que destruíram de maneira incompreensível aquilo que eles haviam construído com muita sabedoria, inteligência e dedicação. Bem… Não existe explicação racional, e alertar o indivíduo em questão não adianta rigorosamente nada. O sujeito entra de novo em situações análogas, sem tomar consciência de que está repetindo sempre a mesma coisa. Ele não pode resolver essa fatalidade psíquica por seus próprios meios introspectivos, sem a alavanca que é a intervenção do analista, da transferência etc.
Seja como for, a hipótese de Freud se verificou com muita freqüência. Temos os relatos completos de algumas de suas análises e das de outros analistas. Nesses relatos, de fato identificamos, na primeira infância, um drama particular, no qual o sujeito se viu em conflito com a mãe, por exemplo. Para castigá-la de alguma forma, ele destruiu alguma coisa ou tirou notas ruins na escola de propósito, porque queria se vingar daquilo que, a seus ver, era uma privação do amor da mãe. Esse esquema de falta, escondido em seu inconsciente, continua a determinar seu comportamento adulto. O indivíduo prossegue na vingança contra a mãe, derrubando o que acabou de construir. Mas isso ele não sabe! Então, a tomada de consciência em relação ao traumatismo original o liberta – na teoria – dessa escravidão diante de um fato passado e inconsciente. Isso não significa que ele vá se tornar um ser perfeitamente harmonioso sob todos os outros aspectos, mas, em certos casos, pode descondicioná-lo em relação a uma neurose específica.
MATTHIEU – A psicanálise é correta e funciona no quadro de seu próprio sistema, mas esse sistema é limitado pelos próprios objetivos que estabelece. Tomemos a questão da libido, da energia do desejo, por exemplo. Se a pessoa tentar reprimi-la, ela entra por caminhos desviados para se exprimir de maneira anormal. A psicanálise visa então a redirigi-la para seu próprio objeto, a devolver-lhe uma expressão normal. Segunda a ciência contemplativa budista, não se busca nem reprimir o desejo nem lhe dar livre curso em seu estado ordinário, mas ficar totalmente liberto dele. Para fazer isso, utiliza-se uma série de meios gradativos, que começam pelo enfraquecimento do desejo com a ajuda de antídotos, continuam pelo reconhecimento da vacuidade intrínseca do desejo e se concluem pela transmutação do desejo em conhecimento. Ao fim e ao cabo, o desejo não mais sujeita a mente e cede espaço a uma felicidade interior, imutável e livre de todo apego.
Enquanto o budismo visa a desprender-se do marasmo dos pensamentos, como uma ave que voa de uma cidade enfumaçada para o ar puro das montanhas, a psicanálise, ao que parece, acarreta uma exacerbação dos pensamentos, dos sonhos. Pensamentos esses que, aliás, são inteiramente centrados na própria pessoa. O paciente tenta reorganizar seu pequeno mundo, controlá-lo bem ou mal, mas continua grudado nele. Mergulhar no inconsciente psicanalítico é quase como encontrar serpentes adormecidas, acordá-las e afastar as mais perigosas, para ficar na companhia das outras.
J.F. – Ainda mais que, sendo budista, não se tem o direito de matá-las! Mas como è que o budismo encara o sonho?
MATTHIEU – Há toda uma progressão de práticas contemplativas ligadas ao sonho. Primeiro, a pessoa se exercita em reconhecer que está sonhando no próprio momento em que isso acontece; depois, em transformar o sonho; e, finalmente, em criar à vontade diversas formas de sonho. O ponto culminante dessa prática é a cessação dos sonhos. Um meditador excepcionalmente consumado não sonha mais, diz-se, a não ser quando, ocasionalmente, tem sonhos premonitórios. Dá-se o exemplo de Gampopa, o discípulo do grande eremita Milarepa, que um dia sonhou com seu próprio corpo sem a cabeça, símbolo da morte dos pensamentos duais, e este foi então seu último sonho. Essa progressão pode levar anos. Em resumo, segundo o budismo, a dificuldade que a psicanálise encontrará é o fato de ela não identificar as causas fundamentais da ignorância e da sujeição interior. O conflito com o pai ou com a mãe, assim como outros traumas, não são causas primeiras, mas causas circunstanciais. A causa primeira é o apego ao ego, apego que se faz nascerem a atração e a repulsa, o amor a si mesmo, o desejo de se proteger. Todos os eventos mentais, as emoções, as pulsões, são como os ramos de uma árvore. Se os cortarmos, eles renascem. Em contrapartida, se cortarmos a árvore pela raiz, dissolvendo o apego ao ego, todos os ramos, folhas e frutos caem de uma só vez. Portanto, a identificação dos pensamentos perturbadores – de seus efeitos destrutivos ou inibidores – não basta para dissolvê-los, e não se traduz em uma libertação profunda e completa da pessoa. Somente a libertação dos pensamentos obtida quando se vai até a fonte deles – contemplando diretamente a natureza da mente – pode levar à resolução de todos os problemas mentais.
Todas as técnicas de meditação sobre a natureza da mente tendem a descobrir que o ódio, o desejo, a inveja, a insatisfação, o orgulho etc. têm apenas a força que lhes emprestamos. Se os observarmos diretamente, primeiro analisando-os, depois com o olhar da contemplação – se encararmos os pensamentos em sua ‘nudez’ -, até enxergar sua natureza primeira, percebemos que eles não possuem a solidez, a força coercitiva que à primeira vista pareciam ter. É preciso repetir muitas vezes esse exame da natureza dos pensamentos. Mas, se nos exercitarmos com a persistência, chegará o momento em que a mente permanecerá em seu estado natural. Tudo isso exige uma longa prática. Com o passar do tempo, domina-se cada vez mais o processo de libertação dos pensamentos. Em um primeiro momento, identificar os pensamentos na hora em que eles surgem é como localizar em uma multidão alguém que conhecemos. Assim que surge um pensamento de cobiça ou de animosidade, antes de ele gerar um encadeamento de pensamentos, deve-se identificá-lo. Sabe-se que, apesar das aparências, ele não tem solidez, existência própria. Mas não se sabe muito bem como libertá-lo. A segunda etapa lembra a serpente que desata o nó dado por ele mesma no próprio corpo. Para isso, ela não precisa de ajuda exterior. Emprega-se também o exemplo de um nó que alguém dá na cauda de um cavalo – ele se desfaz sozinho…
J.F. – Quantas metáforas!
MATTHIEU – Ao longo dessa segunda etapa, adquire-se uma certa experiência do processo de libertação dos pensamentos e tem-se menos necessidade de recorrer a antídotos específicos para cada tipo de pensamento negativo. Os pensamentos vêm e se desfazem por si mesmos. Finalmente, na terceira etapa, domina-se perfeitamente a libertação dos pensamentos, os quais já não podem nos causar nenhum mal. São como um ladrão que invade uma casa vazia. O ladrão não tem nada a ganhar e o proprietário, nada a perder. Os pensamentos sobrevêm e passam sem nos sujeitar. Nesse momento, a pessoa está livre do jugo dos pensamentos presentes e das tendências passadas que os desencadeiam. Por isso mesmo, ela é liberada do sofrimento. A mente permanece em uma presença clara e desperta, cujo seio os pensamentos já não têm influência perturbadora. Na verdade, a única virtude da negatividade é o fato de ela poder ser purificada, dissolvida. Esses sedimentos do inconsciente não são de rocha, são mais de gelo, e podem derreter-se ao sol do conhecimento.
INFLUÊNCIAS CULTURAIS E TRADIÇÃO ESPIRITUAL
JEAN-FRANÇOIS – A posição do budismo em relação à psicanálise, portanto, está clara. Agora, como ficam os ensinamentos que o budismo poderia extrair das ciências sociohistóricas, do estudo do vir-a-ser e da estrutura das sociedades? Toda religião, toda filosofia nasce no contexto de uma certa sociedade e inclina-se a considerar como verdades eternas algumas crenças que na realidade, são costumes da sociedade em questão. Os maiores gênios da filosofia da Antiguidade consideravam justo e natural o fenômeno da escravidão ou julgavam fundamentado o preconceito da inferioridade da mulher em relação ao homem.
MATTHIEU – E o direito dos animais como sendo menor ainda, como se o direito deles à vida não fosse o de todo ser vivo!
J.F. – Então, será que o budismo não vai fazer, digamos assim, um pouco de auto-exame e se perguntar se o fato de haver nascido em certas zonas geográficas, certas estruturas sociais, familiares e outras, não o faz tomar como princípios universais determinadas coisas que são simplesmente costumes locais?
MATTHIEU – Se os mecanismos da felicidade e do sofrimento são costumes locais, então eles são locais em toda parte, ou seja, universais! Quem é que não tem a ver com esses princípios? Quem não se preocupa com o que gera a ignorância ou o conhecimento? Todos os seres aspiram à felicidade e desejam não sofrer. Portanto, se os atos benéficos e os atos nocivos foram julgados não pela aparência, mas pela intenção – altruísta ou egoísta – que os anima, assim como pela felicidade e pelo sofrimento que causam, a ética decorrente de tais princípios não deveria ser muito influenciada pelo contexto cultural, histórico ou social.
J.F. – Mas o problema é que, quando alguém está influenciado por uma particularidade de seu próprio sistema social, não tem consciência disso! É próprio do preconceito não ser percebido como tal. Aliás, existem bons e maus preconceitos. Do ponto de vista do filósofo, o essencial é não os tomar por algo mais que produtos subhistóricos. Quando uma religião ou uma filosofia de ambição universalista integra um elemento particular da sociedade onde nasceu e se desenvolveu, ela não está absolutamente consciente de que se trata de um particularismo contingente, em função do contexto social.
MATTHIEU – Na tradição budista, existe um constante esforço por desembaraçar-se desse tipo de contingência. Examina-se atentamente a motivação dos atos caritativos, por exemplo. A generosidade é praticada por respeito às convenções sociais ou é movida por um impulso espontâneo de altruísmo? Para ser perfeita, a doação deve estar livre de qualquer expectativa de recompensa, qualquer esperança de receber louvores, agradecimentos ou mesmo de adquirir um ‘mérito’. Para ser fonte não apenas de mérito, mas também de sabedoria, a doação deve estar livre de três tipos de apego: à existência em si do sujeito que doa, à do objeto – a pessoa que recebe a doação – e à do ato de doar. A doação autêntica é feita com uma pureza de intenções desprovida de qualquer apego. Portanto, é indispensável não se agarrar ao aspecto exterior de uma ação e libertar-se das contingências culturais e sociais em particular, pois, retomando uma frase tibetana, que aliás encontramos no Ocidente, em Fénelon: “As correntes de ouro não são menos correntes que as de ferro”.
J.F. – Mas isso é possível? O perigo não seria a ilusão de estar livre das contingências, mantendo-se prisioneiro delas?
M. – Convém igualmente compreender a diferença entre contingência cultural e tradição espiritual. A tradição espiritual repousa sobre uma experiência profunda, sobre a necessidade de uma transmissão. Além disso, ela sempre alerta contra o perigo que existe em apegar-se mais à forma do que ao fundo.