Enquanto traduzia Mente Serena para a Lúcida Letra, várias questões sobre a transposição do darma para o português me ocorreram. Neste texto começo essa investigação com um panorama sobre questões de tradução vinculadas as principais línguas conectadas com o darma, examinando algumas das questões próprias do português.
À medida que o budismo penetra o ocidente, e particularmente nos últimos 50 anos, a questão da tradução dos ensinamentos se torna cada vez mais objeto de escrutínio e lapidação. Processo semelhante já havia acontecido na Ásia, com os múltiplos enormes projetos de tradução que ocorreram por lá ao longo da história, e que não só permitiram vasta disseminação do darma, mas também enriqueceram a teoria de tradução e as diversas tradições literárias dos países envolvidos.
O budismo é o primeiro grande fenômeno transcultural – um processo civilizatório que atravessa as culturas tanto as transformando, como, em certa medida, mantendo suas peculiaridades. Nesse contexto o tradutor se torna uma figura crucial, considerado não só alguém que sabe duas línguas, mas que conhece dois mundos. Sendo capaz de transitar entre eles, semeia o darma do Buda em terras “bárbaras”, que muitas vezes acabam se tornando elas mesmas importantes celeiros de preservação dos ensinamentos – como foi o caso do inóspito Tibete.
Muitos textos budistas, principalmente traduções do sânscrito, hoje só podem ser encontrados em tibetano, uma vez que as condições daquele país – clima seco, inacessibilidade e insalubridade a estrangeiros (tanto pela altitude – com efeitos sobre respiração e pressão, bem como frio e raios UV – quanto pela peculiaridade do transporte e alimentação) e devoção do povo à preservação do darma – revelaram aquela região como uma verdadeira estupa natural (a estupa é um monumento que representa a mente do Buda, elas são recheadas de relíquias, a serem preservadas – e adoradas – da melhor forma possível pelo maior tempo).
Também a China é um reservatório inesgotável de traduções, em particular, novamente, do sânscrito. E neste ponto é prudente lembrar que o sânscrito é a língua “terciária” do budismo. O Buda ensinou numa língua não registrada, e, dita a historiografia tradicional, os primeiros textos budistas foram anotados em páli. (Isso, porém, é desafiado pela mais nova erudição, que não sabe mais datar o sânscrito em relação ao páli, e considera bem possível ter havido sobreposição, e não primazia.)
A língua que o Buda falava, o páli e o sânscrito são, as três, línguas relativamente próximas, como espanhol, português e francês. E todas essas línguas – as três primeiras línguas budistas e as três latinas que eu mencionei depois –, mais o persa, o inglês, o alemão e o grego, e muitas outras línguas que normalmente até consideramos bastante diferentes, pertencem a uma mesma família linguística mais ampla, chamada de “indo-europeu”. Porém, o Chinês é muito diferente de todas estas, sendo de outra família. Isto quer dizer que entre o chinês e o sânscrito, apesar da muito maior proximidade geográfica dos territórios conectados com as línguas, há mais distância do que entre o português e o sânscrito! E não só isso, o tibetano é de uma terceira família linguística, não sendo próximo nem do chinês nem do indo-europeu.
Embora textos budistas tenham sido traduzido para dezenas, senão centenas de línguas na Ásia, em termos de relevância e quantidade, é preciso acrescentar o Japonês. O Japonês e o Tibetano têm também peculiaridades interessantes porque foram línguas bastante influenciadas pelos centros culturais que os “civilizaram”, respectivamente China e Índia. Os próprios sistemas de escrita (“alfabetos”: mais corretamente um conjunto de logogramas e uma abugida, respectivamente), e todo o registro formal, e muitas formas de teorizar a língua e entender a gramática (descritiva e normativa: reconhecer as estruturas, bem como ser capaz de considerar determinadas formações como “certas” ou “erradas”), foram impostas por uma língua estrangeira bastante diferente, num contexto muito peculiar de aculturação. Essas importações ocorreram principalmente através do próprio budismo – o interesse pelo budismo fomentou a própria criação de modos de escrita (e sua padronização), e a formulação da reflexividade linguística (teoria e gramática) nessas línguas.
Assim, as línguas centrais para o budismo são o páli, o sânscrito, o chinês, o tibetano e o japonês. São quatro famílias linguísticas distintas, sendo que seria óbvio supor que alguém traduzindo para o português ou inglês (um texto raiz em páli ou sânscrito) encontraria mais facilidade nessa tarefa do que encontraram os grandes tradutores para o chinês, tibetano ou japonês – pelo menos se a tarefa do tradutor se resumisse a achar cognatos etimológicos (palavras com uma história de origem comum, e sons e sentidos semelhantes) – porém, traduzir não é bem só isso.
Enfim, a consideração que paira é: por que seria importante um panorama como esse na perspectiva da tradução de um texto de uma dessas línguas, ou mesmo um texto original em inglês de algum mestre contemporâneo, para, digamos, o português? É preciso dizer que a relevância é enorme. As soluções que todas essas línguas tão diferentes umas das outras deram para, em particular, a terminologia, mostram-se pesquisa essencial na solução de problemas prosaicos de tradução, uma vez que elas revelam a flexibilidade do espectro semântico de acordo com a cultura, e como as palavras “tradição” e “tradução” estão muito mais próximas do que foneticamente.
Ilusões sobre tradução
O monoglota ou leigo em tradução muitas vezes tem uma visão ingênua a respeito do processo de tradução, que é própria de um realismo linguístico superficial. Isto é, muitas pessoas acreditam que a expressão linguística seja discreta ou atomista, composta de uma série de elementos bastante isolados ou isoláveis, que representam as coisas e as relações abstratas ou concretas entre as coisas. Caso isto fosse assim, seria suficiente identificar o elemento discreto (a entidade ou átomo linguístico) e encontrar um elemento igual ou bastante semelhante na outra língua – muitas vezes com a perspectiva adicional de que as “caixas de ferramenta” linguísticas seriam equivalentes, isto é, que tudo que pode ser dito numa língua, pode ser dito em outra, numa transição relativamente direta.
A própria crença de que as línguas tenham o “mesmo valor” – a mesma capacidade/facilidade de expressão sobre o que seja – é um objeto de forte disputa entre linguistas, porque é um problema de raiz semelhante ao das diversidades multiculturais e étnicas tradicionalmente serem hierarquizadas. Porém, para todos os efeitos, aqui basta dizer que a incomensurabilidade da alteridade é um fato – isso tanto pacifica a ânsia contra ou a favor de uma hierarquização, porque ela se mostra impossível, quando mantém a realidade de que as culturas não se comunicam com qualquer facilidade, e de fato podem faltar, a princípio, modos diretos de expressar coisas bastante peculiares da identidade de um grupo perante a alteridade do outro.
Quando falo em “entidades linguísticas discretas”, estas podem ser palavras, expressões, sentenças, parágrafos ou até mesmo trechos de diversos tamanhos. A versão mais ingênua da tradução se foca na palavra como esse átomo independente linguístico, e disso surgem as traduções literais cometidas por amadores – no inglês é comum, por exemplo, manter pronomes inúteis (“isso” em troca de “it”, onde não cabe) ou até truncados (que não só são deselegantes, mas estragam o texto), entre uma infinidade de coisas que não são exatamente barbarismos ou erros, mas são próprios da tradução ruim. Assim a sentença perde o sentido, ou, no mínimo dos mínimos, fica desnecessariamente difícil de entender, ou simplesmente deselegante na língua destino. Aos poucos essas estruturas de tradução ruim acabam sendo tão largamente cometidas que, no passar dos anos, até se normatizam na língua destino – e aqui não se está falando apenas de neologismos e estrangeirismos, mas até mesmo de questões estruturais e, principalmente, prosódia.
A próxima resolução ou granularidade linguística é a tradução no âmbito das expressões, isto é, grupos de palavras. A maioria das mais modernas traduções por computador, como a do Google, e as ferramentas de informática que auxiliam tradutores, trabalham nesse âmbito. As mais sofisticadas são capazes de inferir pelo contexto – várias medidas estatísticas e algoritmos que buscam nas palavras vizinhas indícios para resolver ambiguidades, e decidir entre usar essa ou aquela expressão, quando mais de uma é equivalente na literalidade. Todo mundo sabe, por experiência própria de tentar ler um website numa língua que não domina, que esse método está longe de ser perfeito.
O extremo oposto da preocupação com níveis de resolução em termos de “átomos linguísticos” seriam escolas de tradução na Índia clássica e China medieval onde simplesmente se pretendia entender o texto como um todo, e o reescrever nas próprias palavras, sem preocupação com qualquer “caixa” ou elemento discreto: sentenças, parágrafos ou até mesmo capítulos, ou mesmo a ordem de apresentação: tudo poderia ser dito da forma mais conveniente para o tradutor – para ser cínico quanto ao método. Mas é fato que esses tradutores encontravam tamanha discrepância cultural (não estamos falando de um mundo globalizado onde todo mundo sabe, por exemplo, quem são os Beatles ou a Madonna) que o caminho mais direto para a tradução, na visão deles, era deter a essência do texto e fazer o que hoje chamaríamos de versão ou até palimpsesto.
O fato é que o bom tradutor hoje usa todos os níveis de granularidade simultaneamente. Ele algumas vezes se foca na terminologia, por vezes se foca na substituição de expressões, e, enfim, outras vezes “coloca aquilo do melhor jeito para ser entendido como se entende o original” – idealmente sem adicionar nem retirar nada, mantendo, no melhor dos mundos, apenas a imperfeição da diferença inevitável entre as línguas/culturas. O texto precisa ser encarado holisticamente, no contexto da relação entre as partes e o todo (estilo, coerência), e no contexto intertextual com as duas culturas: a cultura-origem e a cultura-destino.
Mesmo o foco em terminologia não pode ser estritamente discreto ou atomista: a semântica exige contexto, o que envolve, novamente, a totalidade em todos os níveis de granularidade, e ainda a especificidade da posição daquele termo. O tradicional é, por exemplo, usar consistentemente uma mesma tradução para um mesmo termo, ao longo de todo o texto: porém alguém desavisado pode se surpreender quando surge alguma rara exceção a essa consistência. Mais adiante darei o exemplo do termo “awareness” em inglês, que pode ser usado tanto em registro técnico (tradução de algum termo em língua asiática) quanto convencional (o sentido usual em inglês, fora do contexto do darma), e algumas vezes em mais de um sentido em cada registro, num mesmo texto – e que pode requerer diferentes traduções em português para cada registro e sentido, o que só pode ser determinado numa visão tanto contextual quanto holística sobre todos os aspectos do texto e seu entendimento.
Assim o tradutor é um negociador que barganha com as seguintes variáveis: precisão semântica, conversão estilística e de registro, audiência e os próprios limites (de conhecimento do assunto e das duas línguas-culturas, e do tempo disponível).
E aqui temos um elemento crucial na questão da tradução de forma geral, e do darma em específico. O norte central da tradução é a compreensão do texto sendo traduzido. É a partir dela que as escolhas técnicas em termos das possibilidades de terminologia e estilo são resolvidas.
Todo tradutor sabe, no entanto, que ao longo da vida aceitará trabalhos em que vai ser obrigado a fazer uma tradução enquanto tenta entender o texto, e que um entendimento completo muitas vezes não vai acontecer até a data de entrega. Evidentemente, ao elencar um tradutor, ou na hora de orçar uma tradução, o melhor é procurar um profissional que tenha experiência em traduzir aquela área. E claro, no caso de uma tradução importante, de um texto muito antigo e com uma grande história de comentários, é crucial escolher alguém que tenha estudado aquele texto – junto com sua tradição de suporte e polêmica, e outras traduções em várias línguas – por muitos anos.
No caso do darma, isso implicaria alguém que entende os ensinamentos, e, até mais que isso, no caso de textos clássicos, uma pessoa que não só tenha compreensão dos ensinamentos, mas tenha profunda erudição no contexto amplo daquele texto. Porém, qualquer um que tenha tomado contato mais que superficial com o budismo reconhece claramente que se os asiáticos que detém erudição autêntica no darma são bastante raros, no ocidente realmente não existem muitas pessoas com uma formação adequada para essa tarefa. Nem entremos então na língua portuguesa.
Não é surpresa, portanto, que tenha levado basicamente dois séculos para começar a haver alguns exemplos de alta qualidade em tradução budista em línguas ocidentais, e mesmo até hoje encontremos não só edições antigas com problemas graves, mas algumas novas traduções sendo feitas sem grande cuidado.
Qualidade das traduções
Particularmente no português o volume de traduções ruins é de embasbacar. É fácil abrir um livro numa página aleatória e, em qualquer parágrafo, encontrar erros – algumas vezes bastante sérios, que alteram bastante o sentido do que está dito. Algumas traduções de professores modernos, se não são particularmente brilhantes, são pelo menos adequadas. Esse é o máximo que temos no âmbito lusófono. E quanto a textos clássicos, os poucos que temos – em quase todos os casos, com raras exceções (particularmente de textos do japonês), traduzidos de traduções em línguas europeias – apresentam problemas bastante graves. Os textos de professores modernos muitas vezes são traduzidos por tradutores profissionais de qualidade variável, mas que não têm conhecimento ou contato com os ensinamentos, ou com as comunidades budistas no Brasil (que desenvolveram terminologias próprias). Já os textos clássicos são traduzidos por praticantes, também de “qualidade variável” como praticantes (como se é de esperar numa tradição incipiente), mas que no geral não têm conhecimentos específicos de tradução.
As três línguas europeias em que melhor se tem traduzido o darma são o inglês, o alemão e francês – com o inglês em certa medida à frente em quantidade e, por causa disso também, em qualidade (a proporção é mais ou menos a mesma). Alemão e francês tiveram seus momentos, e ainda há algumas raras obras importantes não disponíveis em inglês, ou em segundas traduções destas línguas e do russo (que teve um momento de erudição budista no início do século, com o grande tradutor Stcherbatsky). Bem mais atrás vem o espanhol, e atrás desse português, polonês, húngaro, etc. A maioria dos praticantes budistas não asiáticos, portanto, se não se decide a aprender uma língua asiática, acaba sentindo necessidade de aprender pelo menos o inglês para acessar uma bibliografia um pouco maior. Assume-se que o inglês, língua que tem o maior volume de traduções, tenha apenas algo como 5% dos textos asiáticos clássicos traduzidos.
O cânone em páli está sendo traduzido para o inglês desde 1895, e tem atualmente 43 volumes. Porém o presidente da sociedade responsável pela tradução disse em 1994 que a maioria dessas traduções é insatisfatória. Outro presidente em 2003 repetiu e aumentou a crítica, dizendo que são traduções efetivamente ruins. O estilo das traduções foi repetidamente criticado, chegando-se a afirmar o uso de um “inglês híbrido budista”, isto é, jargão extremamente técnico, só compreensível por eruditos.
Quanto ao cânone em tibetano (composto por sutras – diálogos do Buda com alunos, bastante diferentes dos do cânone páli; shastras – comentários dos sutras por professores na índia clássica; e tantras – ensinamentos esotéricos), um professor não sectário, Dzongsar Khyentse Rinpoche, iniciou recentemente um vasto projeto de tradução para em 100 anos traduzi-lo na íntegra.
Com relação aos textos em chinês e japonês, existem muitas traduções isoladas, e projetos de tradução ligados a tradições bastante específicas, mas até onde eu saiba nenhum projeto de tradução sistemática (para línguas ocidentais) dos textos canônicos. Talvez também seja mais difícil nestas línguas determinar o que é canônico, sendo que os eruditos nesses âmbitos ainda se referem ao cânone em páli e aos textos em sânscrito (e no caso do chinês, algumas vezes ao tibetano).
Modo geral as traduções do darma começaram a melhorar com a publicação do texto de divulgação What the Buddha Taught de Walpola Rahula, em 1959, que fez as primeiras e contundentes críticas a traduções de terminologia correntes até então. Nesta obra seminal o autor também aproximava o theravada e o mahayana, enquanto eruditos ocidentais adoradores de polêmicas sectárias jogavam gasolina em cima de alguma brasa remanescente de disputas ancestrais entre formas de budismo. O resultado é que esse é um livro universalmente louvado pelas tradições budistas autênticas, em sua grande diversidade.
Com a obra de Rahula, e sua profunda e acurada defesa por uma interpretação correta de “dukkha”, bem como outras terminologias, e o crescente número de mestres orientais que passaram a dominar bem línguas europeias, antigas escolhas terminológicas passaram a ser desafiadas. Com a melhor compreensão do ocidente e de seus contextos culturais foi possível entender as nuanças contextuais ligadas a certos termos, e durante a década de 1990 começam a aparecer as primeiras brilhantes traduções do sânscrito e do tibetano, bem como versões bastante melhoradas de traduções e textos originais chineses e japoneses.
O híbrido budista
A transposição do darma para uma cultura onde o darma de Buda é inédito não é um mero problema de tradução. Como certos conceitos inexistem na língua destino, duas estratégias são possíveis: manter o termo na língua original, transliterando foneticamente, ou ressignificar expressões na língua destino, criando igualmente um jargão especializado. Ambas as estratégias tem seus benefícios e problemas.
Nossa cultura em língua portuguesa é particularmente resistente a neologismos, especialmente os de pronuncia exótica. Isso pode ter várias causas sociais ou psicolinguísticas que não nos cabe cogitar aqui, mas o fato é que ainda mais que o inglês – pelo menos em sua veia erudita – o português é bastante impermeável a estrangeirismos.
A solução mais buscada, portanto, é a da ressignificação. O que isso implica? Tomemos o vocábulo “mente”, na sua acepção usual e na acepção corrente nos círculos budistas.
Para os praticantes budistas, modo geral, “mente” é algo centrado psicofisicamente no peito. Quando falamos em mente ordinária ou comum, estamos falando de um agregado de faculdades ou propriedades, que são a base de nossos hábitos – compostos por pensamentos e emoções – e têm a característica central de “poderem ser treinados”. Algumas traduções budistas do francês usam o termo “espírito”, com o mesmo sentido – já que nossa volição e humor também estão vinculados a esse conceito.
Alguns ensinamentos budistas, porém, falam de mente como “mente de Buda”, que está presente em todos os seres, subjacente à mente ordinária, e é absolutamente flexível, aberta e brilhante, absolutamente livre de todos os condicionamentos e prenhe de todas as qualidades.
Agora vejamos o sentido de “mente” contemporâneo entre não budistas: para muitos, refere-se a um epifenômeno de, ou indistinta do cérebro. Diz respeito particularmente ao intelecto, capacidade de raciocínio e memória. Emoções algumas vezes estão conectadas a ideia, mas não há noção de algo a ser treinado, ou mesmo ênfase em “hábitos mentais”. Duzentos anos atrás, seria reconhecida como indistinta de “espírito”, como “parte incorpórea, sensível ou inteligente” do ser humano. Hoje “espírito” guarda mais essa definição “velha” de “mente”, enquanto que este termo está mais vinculado a ciência médica, isto é, algo ligado ou idêntico ao corpo, não se sabe bem como.
E disso surge uma série de problemas: primeiro, se o budista está usando o termo corretamente no contexto budista, como tradução de citta, ele vai encontrar dificuldade em se entender com outro falante do português que use o termo no seu sentido mais corrente. Além disso, se o próprio usuário do termo estiver mantendo ideias budistas pela metade, junto com suas próprias ideias e as ideias da cultura sobre o que “mente” queira dizer, também haverá problemas.
Isso já ocorre em certa medida também com termos budistas do páli-sânscrito já incorporados no português, como as próprias palavras “buda” e “carma”. Segundo a doutrina budista, saber algo é também um tipo de ignorância: e todos nós usamos essas palavras de princípio com nosso entendimento cultural basal. Buda é mais ou menos equivalente a Deus para os budistas, e carma é algo (geralmente ruim) que nos acontece porque nos comportamos mal – ou algo como destino – “esse é meu carma”.
Claro, se assistimos algumas palestras sobre budismo, depuramos esse sentindo para algo como “Buda foi um professor que ensinou métodos para a salvação” e “carma é algo bom ou ruim que surge de acordo com nossas ações passadas respectivamente boas ou ruins”.
Caso nos aprofundemos nos ensinamentos, descobrimos que o termo “buda” tem uma riqueza semântica que sempre cresce – ao longo de todo caminho budista vamos ampliando o sentido do termo: vamos entendendo melhor a história do fundador e suas motivações, vamos o conhecendo mais profundamente como exemplo, vamos entendendo mais o que significa “acordar” ou “despertar” que é a raiz etimológica do termo, vamos descobrindo nossa própria natureza essencial, ou nossa “mente” mais básica como indistinta de “buda”, podemos falar em três kayas, em marcas maiores e menores, em vacuidade, em qualidades e atividades, conhecemos outros budas, e assim por diante.
Da mesma forma quanto a “carma”, que é o assunto mais complexo do budismo. Carma significa “ação”, e alguns ensinamentos e culturas juntam ação e reação na mesma palavra que traduziria karma-vipaka, isto é, ação e resultado. Daí que então se acaba falando de carma como resultado de ações, mas efetivamente, em primeiro lugar, a palavra indica ações – que podem ser hábeis (produzir felicidade), inábeis (produzir sofrimento), ou neutras (serem uma perda de tempo). E boa parte do aprendizado sobre carma acaba sendo eliminar noções como destino ou uma progressão evolutiva num “teste divino”, que são ideias de outras religiões que utilizam a palavra carma, tanto no ocidente como no oriente, mas não do budismo.
Portanto o que conhecemos sobre a mente, buda ou carma pode acabar se mostrando, exatamente porque vemos de uma forma específica, que nos pode impedir de ampliar os conceitos, uma grande ignorância. Entender algo pode se revelar um obstáculo. E isso ocorre indiferentemente da palavra ser um neologismo já antigo e normatizado, como “buda”, uma palavra que é ressignificada, como “mente”, e outros neologismos mais ousados e modernos, como kaya, vacuidade, “qualidades e atividades”, vipaka, “hábeis e inábeis” etc. O problema da tradução é que nem sempre é adequado ao tradutor expor sua própria explicação, possivelmente parcial e contextual, sobre o tema – em meio ao texto.
O que ocorre então é que, de acordo com a plateia a que o livro se destina – alguém que está iniciando e deseja algum beneficio não necessariamente atrelado a algum vínculo com o budismo, ou alguém que está aberto ou anseia o conhecimento especializado mais propriamente budista – é que se determina o nível de aculturação, apropriação e não tradução de termos a ser utilizado. No caso do português, a maioria dos editores acredita ainda não haver mercado para literatura mais técnica no contexto budista, o que nos deixa no mínimo 30 anos atrás da língua inglesa. E isso pode bem ser verdade, mas é um problema que naturalmente se retroalimenta: já que não há disponibilidade de literatura técnica, não se forma um nicho de leitores capazes para absorver literatura técnica, e vice-versa.
O grande tradutor chinês Kumarajiva disse que traduzir certos termos técnicos é como mastigar o arroz para as pessoas comerem. Da mesma forma que conhecer o termo é uma forma de ignorância, em certo sentido o processo de estranhamento, e obrigatória abertura, perante a terminologia é uma forma de sabedoria. A maioria das palavras do darma, em geral, contém o darma inteiro dentro delas – a começar pela própria palavra “darma”.
Esta conversa do grupo de tradutores do projeto 84.000: Traduzindo as Palavras do Buda ilustra bem a problemática:
‘…O termo sânscrito dharmadhatu é traduzido de muitas formas diferentes… me descobri ouvindo um debate acalorado sobre como essa palavra estava tornando difícil para os tradutores progredirem uniformemente. A discussão foi mais ou menos assim:
Erudito sênior: Como são então traduzidas as palavras?
Editor: “Reino dos fenômenos”; “espaço básico dos fenômenos”; “espaço fenomênico”; “expansão dos fenômenos”.
Tradutor: “Esfera da realidade.”
Editor: A questão subjacente é: darma aqui nesse caso se refere a “fenômeno” ou é “lei”, “religião”, “verdade” ou “realidade”? “Esfera de realidade” é uma forma antiga de traduzir dharmadhatu, mas acho que em alguns casos essa definição ainda se encaixa bem.
Erudito sênior: Mas aqui dhatu não se refere a “espaço”, mas a “essência”, então dharmadhatu é a “essência de todos os fenômenos”. Pode ser diferente em diferentes contextos, mas dharma se refere a “fenômeno” e dhatu a “realidade” ou “essência” – não “espaço” ou “esfera”, mas “natureza” ou “essência” do darma… algo assim.
Erudito sênior: Estes termos seriam entendidos de forma diferente no Sutrayana e no Tantrayana. De forma geral, no contexto do Tantrayana, poderia ser compreendido como “mente de sabedoria”.
Erudito sênior: A palavra sânscrita dhatu é traduzida de muitos formas diferentes no Abhidharma (a seção do cânone que esquematiza características da mente e da realidade).
Tradutor: É difícil pensar em dhatu como uma “esfera”; acho que essa tradução é problemática.
Editor: Que tal então os quatro dharmadhatus da escola chinesa Avatamsaka? Dharmadhatu em que princípio e fenômeno não obstruem um ao outro, dharmadhatu em que fenômenos não obstruem fenômenos etc.? Aqui é bem difícil tomar dharma em dharmadhatu como se referindo a fenômeno. Nesse caso o sentido de darma é mais próximo de “realidade” do que de “fenômeno”. Pode ser melhor dizer “esfera da realidade” no fim das contas!
Erudito sênior: É um assunto muito vasto. É preciso ser um bodisatva de nono bumi para chegar a uma conclusão!
Erudito sênior: Talvez possamos simplificar dhatu. O sentido original de dhatu é, na verdade, “fonte”. Esse é o sentido fundamental. Então onde puder ser traduzido como “fonte”, isso é o melhor. Onde não puder, daí é necessário encontrar a palavra certa de acordo com o contexto.”’
Dzongsar Khyentse Rinpoche então recomenda que deixem o termo no original, sem traduzir: dharmadhatu. Além dos sentidos de “darma” apresentados por um dos participantes conversa acima, darma se refere aos ensinamentos ou método ensinados pelo Buda, e alguns tradutores escolhem, nesse caso, capitalizar a inicial do termo: “Darma”. Porém, pode ser argumentado que a ambiguidade que existe na língua original (de não se saber de que darma se está falando, e em que sentido) faz parte da riqueza do texto.
“Dharma” possui uma raiz etimológica de “suporte”, “apoio”, e pode ser entendido como “método” ou “medida preventiva”, num sentido mais filosófico, em vez de “fenômeno”, pode ser também “coisa”, no sentido de qualquer coisa, abstrata ou concreta, aparente ou real. “Fenômeno” é usado num sentido especifico em que os darmas (coisas) são reconhecidos como vazios, e, portanto, “meras aparências”.
Em todo caso, a crítica da equipe de tradutores do cânone páli com relação a seu próprio trabalho procede. Em alguns casos acaba se tornando uma série de termos de língua asiática com transliteração fonética encadeados com algumas preposições, o que torna a coisa toda ininteligível para qualquer um que, ora, não fale a língua origem.
No extremo oposto, uma obra que traduz cada um dos termos, do jeito que dá, temos algo como o “Tibetan Book of the Dead” traduzido pelo Prof. Robert Thurman. Thurman considerou que o livro poderia beneficiar leigos, e não budistas, na hora da morte – e assim tomou liberdades como traduzir dakini como “anjo”, e assim por diante, não deixando absolutamente nenhum termo vago para alguém que dificilmente teria tempo de ficar confuso e procurar esclarecimento terminológico. Porém, é fácil entender que uma tradução assim, embora efetivamente possa beneficiar um não budista na hora da morte, faz pouco para esclarecer o budismo – e inclusive introduz complicações nesse sentido. (Thurman, que de modo geral é um excelente tradutor, ainda que pouco convencional, até aceitou manter, por questão de divulgação, a péssima tradução do título, elaborada nos anos 30 para compor uma coleção de cunho universalista com o “Livro egípcio dos mortos”. Em tibetano o nome desse livro se traduz como algo como “Liberação pela audição no estado intermediário”, ou “A transmissão oral que efetua liberação no bardo”.)
Com o passar dos séculos, no entanto, há efetivamente uma aculturação da terminologia técnica mantida com a fonética semelhante à original. O sânscrito utilizado pelos budistas é dito “sânscrito híbrido budista”, ele incorpora uma terminologia própria não presente no sânscrito védico – e é possível que algumas traduções budistas para o inglês configurem “inglês híbrido budista”, um inglês que só budista entende.
O inglês híbrido budista
Mas não bastasse ter que lidar com várias línguas asiáticas, a realidade é que o inglês cada vez mais se torna central ao darma, o que produz dificuldades específicas com relação a certas terminologias sem equivalente muito direto no português.
Este é o caso dos termos mindfulness e awareness – estas palavras são utilizadas amplamente no discurso budista em inglês, muitas vezes sem grande consistência, e representando um vasto espectro semântico. Isso é verdade entre as várias tradições budistas (e outras tradições espirituais e seculares que usam os termos), mas ocasionalmente um mesmo texto as utiliza em sentidos técnicos e não técnicos, e eventualmente em vários sentidos técnicos, sem consistência.
Quando há consistência, é relativamente fácil determinar qual o termo de língua asiática correspondente a mindfulness, de modo geral refere-se ao sânscrito-páli sati, mas também anapanasati. A diferença entre sati e anapanasati é que a primeira trata-se de uma faculdade cognitiva, uma capacidade de meta-atenção, isto é, a mente que observa (vigia) de tempos em tempos o que a mente está fazendo, e, se percebe-se distraída, tranquilamente se recoloca no estado mental desejado (o trabalho em mãos, uma prática de meditação). Anapanasati é uma prática de meditação específica em que em sati se aplica especificamente com a respiração como foco, e geralmente envolve sentar com a coluna ereta etc.
Porém, etimologicamente o termo sati tem a ver com memória, isto é, lembrar o que se está fazendo (com a mente) e se recolocar, sem desenvolver frustração etc. – isto é, reconhecendo que a distração faz parte da prática. A palavra em inglês, etimologicamente, diz respeito a um estado que a mente “preenche” ou está completa em algo, uma atenção cuidadosa – e se encaixa muito bem em sati, o problema é que não temos equivalente adequado em português. A escolha comum “atenção plena” não é adequada, porque sati envolve delicadamente retornar da distração, observar a distração – e perder o fio da meada e o encontrar repetidas vezes faz parte da prática. Muitas vezes a escolha “presença mental” ocorre, mas tanto presença mental quanto atenção plena possuem um viés mistificador e de entendimento não imediato (um agora português híbrido budista).
Além disso, mindfulness tornou-se marca registrada de certas terapias ocidentais, com práticas frouxamente inspiradas em budismo, o que adiciona complicação.
Já awareness não deveria ser um problema tão grande. Modo geral a palavra mais adequada para traduzir awareness seria “ciência”, no sentido de “estar ciente”, e não no sentido de conhecimento científico. Porém essa ambiguidade traria confusão, e assim o termo ideal não é utilizado.
Esse termo é traduzido como “consciência [pura/prístina]”, “atenção [plena/pura/prístina/atemporal]”, “sabedoria [pura/prístina]”, “cognição [pura/prístina]”, “estado desperto atemporal” e “percepção”. Precisamos de imediato descartar “percepção”, que é uma tradução boa para outro termo comum, um dos cinco agregados, samjana (páli, sanna). Todos os outros termos tem uso válido, dependendo do qualificador de awareness, se houver, e do termo original em língua asiática a que se refere, se for possível determinar.
É preciso frisar que tanto mindfulness quanto awareness têm usos não técnicos no inglês, e, apesar da ambiguidade, algumas vezes esses usos não técnicos ocorrem em textos budistas. Ser mindful significa “tomar cuidado”, cuidar bem do que se está fazendo, e awareness pode ser a consciência de uma ou outra questão política ou, por exemplo, de algo como câncer de mama – “breast cancer awareness” significa não que uma pessoa descobriu ela mesma que tem o câncer, mas que a sociedade em geral precisa se conscientizar, esclarecer-se, ficar ciente, quanto ao problema.
Nos casos onde o uso é técnico, é útil referir-se a um glossário de termos budistas que apresente as opções dos vários tradutores em inglês. Pode ser que alguma delas, mantendo a qualidade, tenha uma solução mais direta para o português.
Não há padronização da tradução budista no inglês. Ela não existe entre as várias correntes budistas, e não existe sequer nas grandes editoras. Cada tradutor mantém suas opções, e algumas vezes as muda ao longo do tempo, quando melhor informado ou simplesmente ao descobrir melhores opções. Dentro de um único centro de darma ou instituição é mais possível encontrar certa consistência, mas mesmo nesses âmbitos não tende a ser perfeita, mas um projeto em andamento. A disputa entre tradutores, embora bem humorada, é ferrenha – os grandes tradutores budistas para o inglês são muito independentes, e raramente reconhecem e acatam uma escolha de outro tradutor. Algumas vezes parece até como que se cada um deles queira ficar marcado pela sua peculiaridade ou especificidade – embora para o leitor informado, isso acabe enriquecendo o campo semântico do budismo, já que cada tradutor enfatiza uma faceta do sentido.
Porém, um dos grandes determinantes da diferença entre tradições na Ásia, foi a semântica utilizada nas traduções. Isto é, o uso de termos diferentes, ou de um mesmo termo com sentidos diferentes, acaba se mostrando combustível para a incompreensão mútua e o sectarismo – e os grandes mestres rimé (não sectários), como Sua Santidade o Dalai Lama, se ocupam bastante de esclarecer e dirimir diferenças terminológicas – preservando a identidade das tradições, mas provendo, se possível, uma ponte para a compreensão mútua.
O inglês empoderado por Trungpa Rinpoche
Num caso pelo menos, a língua inglesa se revelou fonte de expressões dármicas próprias, extremamente ricas e profundas. Termos como “materialismo espiritual”, “sanidade básica”, “tédio cool”, “ausência de esperança” (“hopelessness”), “ausência de credenciais”, “caos ordenado”, e assim por diante. Trungpa conhecia a mente dos alunos, e dominava tanto o inglês quanto o darma como poucos, e assim foi capaz de abençoar a língua inglesa com expressões hoje imprescindíveis para falar do darma no ocidente.
Estas expressões chegaram a fazer o caminho inverso, uma vez que clássicos como Além do Materialismo Espiritual, escrito em inglês, foram traduzidos para o tibetano – no primeiro caso do darma fazer o caminho reverso, e vir de uma língua ocidental na direção da Ásia.
Trungpa Rinpoche também se ocupava de questões de tradução, e fundou o Comitê Nalanda, além da primeira universidade budista no ocidente, o Instituto Naropa.
Aqui no Brasil o Lama Padma Samten parece desenvolver um trabalho similar com a língua portuguesa nos seus ensinamentos, tanto empoderando o português e o abençoando com sua perspectiva, quanto em alguns casos fomentando um português híbrido budista incipiente.
Uma questão de gênero
O português, como língua sem gênero neutro, possui uma dificuldade adicional. Modo geral é preciso escolher um gênero para a terminologia neutra das línguas asiáticas, nenhuma delas (pelo menos as ligadas ao darma) marcando o gênero de substantivos não próprios.
Isso quer dizer que mesmo os termos que são deixados sem traduzir, precisam ter traduções estabelecidas e consistentes, como o único critério possivelmente válido de determinação de gênero, por exemplo:
Darma como fenômeno, método, ensinamento, lei, ou costume, “o darma”; Darma como coisa ou realidade, “a darma”, “aquela darma”, “aquelas darmas”.
Dukkha como sofrimento, “o dukkha”; Dukkha como insatisfação ou insatisfatoriedade, “a dukkha”.
Prajna como sabedoria, “a prajna”; prajna como conhecimento, “o prajna”. Prajnaparamita como perfeição da sabedoria, “a prajnaparamita”; Prajnaparamita como o sutra ou o texto, “o Prajnaparamita”; Prajnaparamita como a deidade tibetana feminina, “a Prajnaparamita”.
Mas há termos sem tradução óbvia ou possível, o caso mais central sendo mandala. Falamos “a mandala” levados pela vogal “a” ao final, mas no sânscrito o termo é neutro. Mandala é “centro e circunferência”, “formação” (como numa atividade de infantaria, ou dança), “continente e conteúdo”, “diagrama” (no sentido de “planta baixa”), e assim por diante, mas em cada uso é indeterminado se o sentido é ambíguo ou não. Então se considera usar o masculino, que é o mais próximo do neutro, desconsiderando as questões modernas de gênero – mas o uso corrente e as questões modernas de gênero pesam para o lado contrário “a mandala”.
A palavra mala (algumas vezes japa mala), colar de contas budista com que se contam mantras ou as repetições (japa) de outras práticas, não encontra essa dificuldade, uma vez que talvez até para diferenciar do objeto comum que usamos para viajar, tendemos a usar o masculino – “o mala”, como “o colar”.
Liturgia, mantra e “linguagem crepuscular”
Já a palavra mudra é talvez mais complexa do que mandala, por ser ainda mais polissêmica na linguagem do tantra (outra palavra, aliás, com acepções peculiares no ocidente). Mudra é entendido pela maioria das pessoas que conhece a palavra superficialmente como apenas os gestos de mão dos budas – ou em alguns casos os gestos feitos em oferendas, ou em práticas como danças sagradas. Porém, além disso, mudra também é gesto ou postura no sentido mais amplo, como um jeito como nos colocamos ou surgimos no mundo. Também tem um sentido de “selo”, como algo que se aplica para confirmar ou assegurar um entendimento, visão ou realização, e finalmente, há o sentido de consorte, isto é, o par de um(a) praticante ou bodisatva.
Aqui não temos apenas a questão de manter o termo no original – é óbvio que sim, deve-se manter o termo – ou que gênero utilizar no lidar com a palavra. Como o uso é polissêmico, é preciso entender perfeitamente o contexto da expressão, para traduzir todas as palavras circundantes de acordo com esse contexto. Mais do que isso, em determinados textos a polissemia deve ser preservada, isto é, o trecho que contém esse termo deve estar preparado para carregar toda a riqueza de ambiguidades do original.
Alguns eruditos ocidentais chamam essa qualidade holográfica da terminologia tântrica, com várias camadas de sentidos, de “linguagem crepuscular”. Este modo de expressão supostamente imita a qualidade da fala do próprio Buda, que, ao ensinar nominalmente um ensinamento, tinha esse ensinamento entendido de modo diferente, para saciar necessidades específicas, por cada um dos ouvintes.
Como traduzir algo assim? Só sendo o tradutor um Buda. Sem essa pretensão, alguns trechos dessa literatura, particularmente os mantras, foram mantidos na língua original pelos tibetanos, invariavelmente. As escolas chinesas se digladiaram quanto a isso, muitas mantiveram o sânscrito, e outras ofereceram traduções, ou uma tradução tentativa junto com o sânscrito.
Alguns iniciantes no darma algumas vezes pedem uma “tradução” do mantra que estão recitando, e a recebem na forma de algum conjunto provisório de correspondências literais. O fato é que os mantras, como expressões extremamente comprimidas da vastidão do darma, são algumas vezes ensinados sílaba a sílaba – e não é difícil prever que certas sílabas possam ser ensinadas por horas a fio, dias adentro. Consta que todos os ensinamentos do Buda estão expressos na sílaba AH, o “a” longo do sânscrito. Explicar essa sílaba de modo intelectual é, portanto, ensinar toda a vastidão de métodos e contextos do darma do Buda.
Além da questão da não tradução dos mantras, revisões incorporadas na parte traduzida da liturgia, particularmente aquele tipo de recitação que é feito em grupo, como o Sutra do Coração em várias tradições mahayana, ou vários tipos de pujas tântricos, produzem estranhamento. O fato é que a recitação, o som dos sutras ou outros modos textuais sendo ecoado em grupo ou solitariamente, é um modo por excelência de gerar interdependência com os ensinamentos através da criação de um hábito. Quando mudanças são incorporadas nos textos litúrgicos, esse hábito auspicioso é enfraquecido. Dessa forma é fácil inferir que correções em liturgia devem ser feitas com muito cuidado, e apenas quando realmente necessário.
Novamente, seria muito bom que em inglês ou português houvesse, por exemplo, uma tradução universal e consagrada do Sutra do Coração – mas neste momento há dezenas de variações sendo utilizadas. Mesmo, digamos, dentro de uma mesma tradição tibetana, variando de centro para centro. Esse é um dos principais racionais para a recitação, mesmo sem compreensão, dos sons originais asiáticos dessas práticas. A ideia é que o sentido seja internalizado através do estudo, e o hábito seja gerado na língua estrangeira, que é comum pelo menos a todas as tradições que usam uma mesma língua, seja o tibetano, o chinês, o sânscrito ou o páli.
Dar tempo ao tempo
O fato é que vai levar mais de um ou dois séculos para o darma se estabelecer e se tornar central nas línguas europeias. Neste meio tempo, devemos nos inspirar no exemplo dos grandes tradutores Kumarajiva, Xuanzang, Vairotsana, Rinchen Zangpo e Marpa. E, no que diz respeito ao português, nos inspirar em Thubten Jinpa, Alan Wallace, Lama Chokyi Nyima, Kazuaki Tanahashi, Alex Berzin, Red Pine, Eric Pema Kunzang, Bikkhu Bodhi, Gudo Nishijima, Lama Sarah Harding, Robert Thurman, Thomas Cleary, Taigen Dan Leighton, Tulku Thondup, Jigme Khyentse Rinpoche, e tentar ao máximo apoiar suas atividades.
Dzongsar Khyentse Rinpoche recentemente, pensando no vasto projeto de tradução que iniciou, recomendou a uma plateia de seus ensinamentos que tivesse muitos filhos, e que os encorajasse a se tornar tradutores.
Que possamos todos nós, interessados no darma, portanto, aspirar aprender línguas e nos capacitar para tradução. Se não isso, pelo menos encher o mundo de tradutores por outros meios, ou no mínimo apoiar continuamente suas atividades.
Padma Dorje traduziu o livro “A Mente Serena”, que foi lançado recentemente pela Lúcida Letra. Neste livro extraordinário, de linguagem fácil e, ao mesmo tempo, profunda e precisa, S. Ema. Gyalwa Dokhampa nos oferece um espelho claro de nós mesmos e um caminho para melhor compreendermos nossos próprios processos internos e como pacificá-los, tornando nossa mente e coração dóceis, leves, abertos e preparados para os desafios da vida.
Padma Dorje é praticante budista e é autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos. Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org.