Na prática zen nós saímos de uma vida dramática — espécie de novela das 20 h — para uma vida não-dramática. A despeito do que possamos dizer, todos nós gostamos muito de nossos dramas pessoais. A razão para tanto? Seja qual for o nosso drama particular, sempre estamos no papel principal — que é onde nós queremos estar. E, pela prática, nós gradualmente nos deslocamos para longe dessa preocupação com nós mesmos. Assim, sair de uma vida dramática para uma vida não-dramática, embora possa parecer sem nenhum atrativo, é do que trata a prática zen. Examinemos esse processo mais de perto.
Quando começamos a praticar, é bom começar respirando algumas vezes bem fundo, enchendo a cavidade abdominal, o meio do peito e embaixo dos ombros, até estarmos repletos de ar; depois, soltamos o ar, interrompendo a expiração um instante. Faça isso três ou quatro vezes. Em certo sentido, é artificial, mas ajuda a criar um certo equilíbrio e forma uma base conveniente para se sentar e praticar. Depois de termos feito isso, o passo seguinte é esquecer exatamente isso, esquecer de controlar a respiração. Não o esqueceremos por completo, é claro, mas é inútil controlar a respiração. Em vez disso, apenas vivencie esse processo, o que é muito diferente. Não estamos tentando fazer uma respiração lenta, longa e regular, como muitos livros sugerem. Em lugar disso, o que queremos é deixar que o ar seja o comandante, para que a respiração esteja nos respirando. Se a respiração for superficial, que seja assim. Quando nos tornamos a nossa respiração, por sua própria pulsação a respiração se torna mais lenta. A respiração permanece superficial porque queremos pensar em vez de vivenciar a nossa vida. Quando fazemos isso, tudo se torna mais superficial e controlado. A palavra retesado é bastante sugestiva: descreve como subimos para a cabeça, a garganta, os ombros e lá nos tensionamos; estamos com muito medo e nossa respiração também fica alta. Uma respiração que consegue ser abdominal, como tende a ocorrer após anos de prática, é aquela que vem quando a mente perdeu as esperanças. Tudo aquilo pelo que esperamos é do que lentamente aprendemos a desistir e, então, a respiração desce. Não é algo que precisemos tentar fazer. A prática consiste em vivenciarmos a respiração como ela é.
Também pensamos que deveríamos ter uma mente sossegada. Muitos livros dizem isto: que a pessoa iluminada é aquela que tem uma mente sossegada. É verdade: quando não temos nenhuma esperança, nossa mente sossega. Enquanto alimentamos esperanças nossa mente está tentando descobrir como satisfazer essas vontades maravilhosas de coisas que queremos que aconteçam, ou estamos tentando nos proteger de todas as coisas terríveis que não deveriam acontecer. Assim, a mente está tudo, menos sossegada. Agora, em lugar de forçar a mente para que ela sossegue, o que podemos fazer? Podemos nos tornar conscientes do que ela está fazendo. É isso que é rotular nossos pensamentos. Em vez de nos atolarmos em esperanças começamos a ver: “É, sim, pela vigésima vez hoje estou esperando sentir algum alívio”. Depois de um bom sesshin, poderemos ter dito isso umas quinhentas vezes: “Espero que ele me telefone quando o sesshin acabar”. E então rotulamos: “Com esperança de que ele me telefone quando o sesshin terminar”; “Com esperança de que ele me telefone quando o sesshin terminar”. Depois de termos dito isso quinhentas vezes, o que acontece com isso? Enxergamos exatamente o que é: um absurdo. Afinal de contas, a verdade é que ou ele telefona ou não telefona. Conforme vamos observando nossa mente ao longo dos anos, aos poucos as esperanças se dissipam. E o que nos resta? Pode parecer lúgubre, eu sei: resta-nos a vida tal como ela é.
É proveitoso entrar nesse processo com uma atitude de investigação. Em vez de ver a nossa prática sentada como algo bom ou mau, como algo que deve melhorar numa base firme, deveríamos só investigar, observar o que estamos de fato fazendo. Não existe uma boa ou má prática sentada; existe apenas a percepção consciente ou a inconsciência do que está se passando em nossa vida. E, quando nós mantemos mais tempo a percepção consciente, as indagações que temos a respeito da vida são vistas por um novo prisma. Não somos entregues pura e simplesmente a um outro ponto de vista, mas conquistamos uma maneira diferente de ver as coisas. Conforme esse processo se desenvolve com o tempo, muito devagar a nossa mente vai sossegando não por completo, e o que se aquieta não são os pensamentos (poderemos praticar vinte anos e continuar vendo os pensamentos que correm pela mente). O que sossega é o nosso apego aos nossos pensamentos. Cada vez mais os vemos como uma espécie de espetáculo, parecido com o que fazemos quando olhamos as crianças brincarem. (Minha mente pensa quase o tempo todo. Que pense, se é o que quer.) E nosso apego aos pensamentos que bloqueia o samadhi. Podemos ter muitos pensamentos e mesmo assim estar em profundo samadhi, desde que não estejamos apegados a eles e só permaneçamos na vivência. É verdade que quanto mais tempo de prática tivermos, menos tenderemos a pensar, porque nossa tendência é obcecarmo-nos menos. Sendo assim, a mente de fato aquieta, embora com toda certeza não por termos dito a nós mesmos:’ ‘Eu tenho de ter uma mente sossegada!”. Quando nos mantemos sentados na prática, de tempos em tempos alcançamos perspectivas de grande lucidez a respeito de nossas vidas, que esclarecem diferentes aspectos das mesmas. Em si mesmos esses momentos não são nem bons nem mau s e, do ponto de vista da prática zen, não são nem particularmente importantes. Apesar de esses momentos de lucidez repentina terem uma certa utilidade, zazen não é ir atrás deles.
Eles realmente ocorrem, e de repente vemos: “Ora, é isso isso é o que eu faço. Que interessante!”. No entanto, até mesmo captar o momento dessa repentina lucidez é só algo que vem e vai, vem e vai, por nossa mente. Tornamo-nos cientistas que vivem esse experimento chamado nossa vida. Nossos eus e nossos pensamentos estão espalhados à nossa frente; olhamos com interesse para esse espetáculo, mas não mais como nosso próprio drama pessoal. Quanto mais desenvolvida for essa perspectiva em nós, melhor será a nossa vida. Por exemplo: se estamos fazendo um experimento com sal e açúcar, não dizemos: “Que coisa terrível! O sal e o açúcar estão discutindo!”. Não nos importa o que o sal e o açúcar estejam fazendo, apenas os observamos e apreciamos como interagem. Por outro lado, em geral nós nos importamos muito com o que os nossos pensamentos estão fazendo. Não ficamos apenas na sua observação, com uma atitude de interesse, como os cientistas que apenas acompanham o que acontece. “Se eu misturar isso e aquilo — interessante. Se eu puser essas coisas em proporções diferentes — interessante.” O cientista simplesmente observa e acompanha processos.
Quando essa qualidade de observar, de apreciar e vivenciar o que acontece estiver mais fortalecida em nossa vida, a realidade (que é só a percepção consciente) depara a irrealidade ou o nosso pequeno drama tecido de pensamentos. E vemos com mais clareza o que é real e o que é irreal, como a luz que ilumina a escuridão. Mas, quando nós trazemos mais realidade (percepção consciente) para nossas vidas, aquilo que vinha sendo problemático parece mudar. Quando instilamos mais percepção consciente em nossas vidas, começamos a eliminar nossos dramas pessoais. E não queremos fazer isso de verdade. Gostamos de nossos dramas pessoais, gostamos de alimentá-los. Cada um de nós tem sua própria encenação predileta. Por exemplo, podemos acreditar: “As circunstâncias da minha vida são em especial difíceis. A minha infância foi mais difícil que a da maioria das pessoas”; ou “Aquela coisa que me aconteceu realmente arruinou a minha vida”. É verdade, essas coisas aconteceram e criaram os nossos condicionamentos. Porém, enquanto mantivermos nossas crenças de que as histórias que contamos são a verdade acerca de nossa vida, a prática genuína não irá ocorrer. As crenças interditam a prática.
A menos que haja uma certa disponibilidade para abandonar essas crenças pessoais de vida, não existe nada que eu ou qualquer outra pessoa possa fazer. Às vezes, um sofrimento é o suficiente para criar por si aquela mínima brecha por onde a percepção consciente consiga se infiltrar. Mas enquanto essa pequena fenda não se abrir não há nada que alguém possa fazer. E as pessoas realmente obstinadas conseguem manter suas histórias pessoais até a morte. A vida para elas é muito dura. Uma crença pessoal desse tipo — “Sou uma vítima” — é como um armário fechado e escuro. Se queremos sentar nesse armário com a porta bem trancada, nada conseguirá penetrar nele. Infelizmente, enquanto insistimos em ficar sentados dentro desse armário (e todos fazemos isso às vezes), descobrimos que ninguém quer, na realidade, entrar e sentar-se conosco. Com franqueza, ninguém tem um interesse particular pelo drama dos outros. O que nos interessa é o nosso próprio drama. Eu posso querer me fechar dentro do meu próprio armário, mas com certeza não vou ficar sentado dentro do seu.
Todos nós entramos em nossos armários particulares. O armário é o nosso drama pessoal, e queremos ficar sozinhos dentro dele para nos sentir bem no seu centro. É uma suculenta infelicidade. E quer nos demos conta, quer não, adoramos isso. Porém, quando passamos pela experiência de abrir a porta e deixar um pouco de luz entrar, depois de termos visto uma vez que seja o que é um pouco de luz genuína dentro do armário, nunca mais conseguiremos nos manter indefinidamente dentro dele. Pode nos custar anos, mas depois de algum tempo iremos abrir a porta. Uma maneira de entender os sesshins é que esses encontros fazem a porta abrir-se para algumas pessoas. Por isso é que os sesshins podem ser tão incômodos.
Em algum momento começamos a ver que aquilo que acontece em nossa vida não é a questão; sempre haverá algo acontecendo. O que acontece sempre será uma mescla daquilo de que gostamos e de que não gostamos. Não há tempo em que isso cesse. No entanto, quanto mais cientistas nos tomarmos, menos nos emaranharemos no que está acontecendo e mais seremos capazes de apenas observar o que está acontecendo. A capacidade de fazer isso e a disponibilidade para tanto aumentam com o passar dos anos na prática. No início essa postura observadora pode ser mínima. Nossa incumbência é aumentar nossa abertura para desenvolvê-la.
No final, não importa como nos sentimos. Não faz diferença se estamos deprimidos, inquietos, fragmentados, felizes. A tarefa do aluno é observar, vivenciar, tomar consciência. Por exemplo, a depressão, quando completamente vivenciada, deixa de ser depressão e torna-se samadhi. A inquietação também pode ser vivenciada e, quando isso acontece, dá-se um deslocamento interno e não temos mais de nos preocupar com a nossa inquietação. Nenhuma circunstância, nenhum sentimento, essa é a meta. O objetivo é a oportunidade de vivenciar.
Costumamos supor que temos de mergulhar fundo nas “questões” psicológicas submersas e trabalhar com esse material. Não é bem isso. Afinal de contas, onde essas questões se escondem? Não é suposição realmente acurada a de que existam coisas por baixo da consciência que irão dar um jeito de vir à tona, embora possa assim parecer a nós. Nos sesshins, podemos ficar emocionados, tristes, desesperados, mas essas emoções não são mistérios escondidos que aparecem de repente. Essas coisas são simplesmente o que somos, e estamos vivenciando quem somos. Quando tentamos trabalhar para que essas coisas venham à tona, estamos apenas diante de uma outra forma de auto-aperfeiçoamento que não funciona. A prática não é uma questão de sentar para que essas coisas possam emergir e assim consigamos trabalhar com o material para nos tornarmos pessoas melhores. O fato é que já estamos bem. Não se trata de ir a nenhuma outra parte.
Bloqueamos nossa percepção consciente com nossa culpa e nossos ideais. Por exemplo, vamos supor que eu disse para alguém: “É só que não sou uma boa professora. Não lido com todas as situações de maneira perfeita”. Quando fico apegada a esse pensamento, bloqueio toda a minha capacidade de aprender. A culpa e os ideais de como eu deveria ser bloqueiam a única coisa que de fato importa: uma clara percepção consciente: “Estou vendo o que aconteceu, eu realmente fiz uma bela confusão, não foi? Bom, o que posso aprender?”. Um outro exemplo poderia ser o do cozinheiro preocupado com o jantar. Vamos supor que o jantar queimou. O cozinheiro não tem de se descabelar: “Oh! é o fim do mundo! O que as pessoas vão pensar de mim? Eu acabo de queimar tudo!”. Nesse ponto o que pode ser feito? Basta procurar cada pedaço de pão que ainda houver em casa e reparti-lo. Não é o fim do mundo quando o jantar queima, mas a culpa interdita o aprendizado.
A única coisa que importa é a percepção consciente do que está acontecendo. Quando entramos pelo setor dos ideais e da culpa, as decisões em si tornam-se difíceis, porque nós não vemos como caímos nas armadilhas das nossas preocupações: “Será que isso vai servir para mim? O que acontecerá? Será realmente uma boa medida? Minha vida vai se tornar mais segura, mais maravilhosa, mais perfeita?”. Essas perguntas são erradas. Quais são as certas? E quais são as decisões certas? Não podemos dizer antes, mas, em algum momento, saberemos se não nos emaranharmos na culpa, nos ideais e no perfeccionismo que em geral acrescentamos ao nosso processo de tomar decisões. Sentar para praticar trata dessa espécie de clarificação.
Todas as técnicas são úteis e todas são limitadas. Seja qual for a técnica que inserirmos em nossa prática, ela nos servirá por algum tempo, até que deixemos realmente de empregá-la, que comecemos a devanear com ela ou a sonhar. Sendo assim, o importante com qualquer técnica é a intenção. Nossa intenção deve ser a de estarmos presentes, de tomarmos consciência, de estarmos praticando. E ninguém sustenta essas intenções o tempo todo. Elas se mantêm em caráter intermitente. Também queremos encontrar um professor que passe a tomar conta disso por nós; todos nós queremos ser salvos e cuidados. A intenção de praticar é a coisa mais importante. Não existe técnica que possa nos salvar, professor algum que venha nos salvar, centro algum que possa nos salvar. Não existe nada que venha nos salvar. Esse é o mais cruel de todos os golpes.
Quando transformamos nossa vida dramática numa vida não-dramática, isso quer dizer que pegamos a nossa vida de incessante buscar, analisar, alimentar esperanças e sonhar e a tornamos um espaço para apenas vivenciar a vida tal como ela se nos aparece, neste exato momento. O fator chave é a percepção consciente, o mero vivenciar da dor que é como é. Paradoxalmente isso é o contentamento. Não existe nenhum outro contentamento na Terra, exceto este.
Essa espécie de prática surte um efeito letal: eliminará de maneira irreversível nosso drama. Mas não a nossa personalidade. Todos somos diferentes e continuaremos sendo assim. Contudo, o drama não é real. É um impedimento a uma vida que flui e pode ser atenciosa.
Charlotte Joko Beck (27 de março, 1917 — 15 de junho, 2011) foi uma mestre Zen dos Estados Unidos e autora dos livros Everyday Zen: Love and Work (Zen diário: Amor e Trabalho) e Nothing Special: Living Zen (Nada em especial: Vivendo Zen). Nascida em Nova Jérsey, em 1917, estudou música no Oberlin Conservatory of Music e trabalhou por algum tempo como pianista e professora de piano. Casou-se e teve quatro filhos, então separou-se e trabalhou como professora, secretária e assistente num departamento de universidade. Ela começou a praticar já com 40 anos com Hakuyu Taizan Maezumi em Los Angeles e, posteriormente, com Yasutani Roshi e Soen Roshi. Por vários anos, viajou de San Diego ao Centro Zen de Los Angeles. Tendo recebido a transmissão do Dharma de Taizan Maezumi Roshi, ela fundou a Escola Zen da Mente Comum (Ordinary Mind Zen School) e iniciou o Centro Zen de San Diego, em 1983, servindo como sua principal mestra até julho de 2006. Viveu em Prescott, Arizona.