Publicado originalmente na Revista Tricycle. Tradução: Lilian Moreira Mendes.
Pema Chödrön, monja norte-americana da linhagem Shambhala do budismo tibetano e autora de vários livros, inclusive o best-seller Quando tudo se desfaz e Os lugares que nos assustam, atualmente pratica sob a orientação do Venerável Dzigar Kongtrul Rinpoche, um mestre da linhagem Nyingma do budismo tibetano. Dzigar Kongtrul fundou o Longchen Jigme Samten Ling, um centro de retiro nas montanhas no sul do Colorado. Ele passa boa parte do seu tempo lá orientando os alunos, com ênfase especialmente à prática em retiros de longa duração. Na primavera de 2004, Pema Chödrön conversou com Dzigar Kongtrul em seu centro de retiro sobre um obstáculo central enfrentado pelos ocidentais em sua prática: a culpa.
Pema Chödrön: Rinpoche, como você já vive na América do Norte há algum tempo e conhece bem a mente e a cultura ocidentais, na sua opinião, qual é o conselho mais útil que se pode dar aos estudantes do dharma aqui?
Ven. Dzigar Kongtrul Rinpoche: A coisa mais importante que eu percebo que os alunos ocidentais precisam compreender é a ausência de culpa.
PC: Ausência de culpa?
VDKR: Sim, ausência de culpa. Eles precisam compreender que uma pessoa ou a sua mente é inocente por natureza.
PC: Pode explicar o que quer dizer com “inocente”?
VDKR: Quero dizer que, do ponto de vista do budismo, podemos entender que tudo o que fazemos de mal a nós mesmos e aos outros tem origem em confusões e ignorância profundamente enraizadas, mas que a mente é naturalmente pura e iluminada. Quando sentimos uma culpa muito grande, nos esquecemos dessa perspectiva.
PC: Acho que às vezes os alunos ocidentais têm dificuldade de acreditar nessa perspectiva.
VDKR: O fato de que todos os seres sencientes desejam a felicidade e a liberdade prova que a natureza de suas mentes é pura e inocente.
PC: Mas, aparentemente, nós nos identificamos mais com o “nosso lado mau” do que com a pureza e a inocência.
VDKR: Essa noção de um “lado mau” vem da não compreensão da ideia de ausência de eu que é tão central ao caminho budista. A compreensão de que não existe um “eu” sólido, singular ou permanente torna possível acolhermos o que quer que surja na vida sem nos sentirmos tão intimidados pela nossa experiência, sem nos rendermos como um cão derrotado em uma briga. Podemos perceber que as coisas surgem devido ao nosso carma que se desdobra, e isso não tem necessariamente que ser algo tão pessoal. Assim, podemos nos identificar com algo maior – que é a nossa própria natureza. Dessa perspectiva, como não existe um eu sólido, singular, permanente, não há um eu “do mal” pelo qual sentir culpa. A mente é inocente, mas é influenciada pela ignorância e por crenças conceituais equivocadas que projetam um eu. Mas não existe um eu.
PC: Então, como podemos compreender a ausência de eu?
VDKR: A mente possui uma inteligência inata, e essa inteligência pode ser cultivada, a fim de que possamos compreender a ausência de eu, que é o oposto desse “eu” projetado. Essa é a nossa verdadeira natureza.
PC: Tendo isso em mente, como podemos lidar com essa tendência profundamente enraizada de nos sentirmos culpados?
VDKR: Primeiro, num nível mais básico, podemos nos lembrar de que a culpa não traz nenhum tipo de benefício e só aumenta nosso apego neurótico ao eu. Mas, sobretudo, podemos perceber que a culpa é, na verdade, uma forma de tentarmos fugir da responsabilidade pelas nossas ações e circunstâncias. Nos sentimos culpados quando não aceitamos totalmente nossas circunstâncias. Em vez disso, tentamos o tempo todo proteger e consolar esse eu imaginário. Quando nos sentimos culpados, estamos na verdade dando ainda mais solidez a esse “eu”, em vez de olharmos honestamente para a situação que está diante de nós. Se nos lembrarmos de que a mente é inocente, ainda que nossas ações tantas vezes se baseiem na ignorância, podemos nos distanciar da situação o suficiente para observá-la realmente de maneira honesta. A culpa, por outro lado, é um desvio que não traz solução alguma – não tem fim. Você pode achar que está enfrentando alguma coisa porque está mergulhado nela – esfregando na própria cara que foi algo muito ruim – mas a realidade é que você não está aceitando a situação.
PC: Rinpoche, se eu fizer algo de mal e não me sentir culpada por isso, como vou poder me reconciliar com o que eu fiz? Como posso reconhecer completamente o que eu fiz, e ainda assim não me sentir culpada?
VDKR: Por meio do arrependimento. O arrependimento é uma função da inteligência da mente. Podemos ver o que fizemos para causar sofrimento a nós mesmos e aos outros. Reconhecemos o que fizemos e também resolvemos não fazê-lo de novo. Isso é muito útil. Vemos o erro claramente e o reconhecemos, então ele não permanece no nosso fluxo mental. Essa capacidade de autorreflexão traz enorme liberdade. É como se você parasse de brigar com as suas circunstâncias e observasse honestamente. Como a sua visão do eu não é tão densa, você pode observar sem se intimidar. Fazemos essa prática de reconhecer e purificar, com um profundo arrependimento pelo mal que causamos. Nós o expomos a nós mesmos.
PC: Rinpoche, realmente não consigo perceber a diferença entre arrependimento e culpa. Ainda existe a noção de que alguém fez algo de mal.
VDKR: A diferença entre a culpa e o arrependimento é que a culpa nunca encara a má ação diretamente. Existe apenas um sentimento intenso de “Gostaria que não tivesse acontecido. Queria não ter feito isso. Queria não ter ficado nervoso” ou “Queria não ter feito algo tão vergonhoso”, e assim por diante. O arrependimento é o oposto da culpa. Nós reconhecemos o erro, expomos para nós mesmos que agimos mal e que isso se originou da nossa ignorância, mas não nos deixamos levar pelas emoções e pelas nossas histórias. A noção de remorso está longe de ser tão pesada quanto a ideia do “lado mau” que a culpa produz. Na verdade, a sensação do remorso sincero é libertadora. Ao aplicar a visão da ausência de eu, entendemos como o inútil sentimento de culpa nos congela na percepção que temos de nós mesmos como maus. Quando alguém sente que tem espaço para se abrir e consegue entender que sua ação é movida pela ignorância, e não por uma essência intrinsecamente má, não hesita em enxergar quando faz algo que prejudica outra pessoa. Tampouco hesitará em pedir desculpas se isso lhe parecer benéfico.
PC: Obrigada. Isso com certeza esclarece muita coisa para mim. E há outros benefícios em refletir sobre a ausência de culpa?
VDKR: Quando alguém compreende a ausência de culpa dentro de si, sente-se mais livre e mais leve. O apego ao eu, que todos nós temos, se vai. Também começamos a trabalhar melhor com nossas mentes. A mente fica mais ágil e flexível, porque nossa inteligência se torna o ponto de referência, em vez desse eu ao qual nos agarramos tão desesperadamente. Então podemos diferenciar nossas ações com mais precisão e trabalhar com elas de formas mais criativas no futuro, com mais sabedoria. Em relação às más ações das outras pessoas, percebemos que a natureza de suas mentes também é inocente, sem culpa. A ignorância as influenciou, e elas estão cegas e vulneráveis. E, como elas estão impotentes diante do poder da ignorância, é mais fácil gerarmos compaixão por elas e perdoá-las também. É muito mais fácil fazer tudo isso quando enxergamos a pessoa como inocente, e não como culpada e intrinsecamente má.
PC: Um dos aspectos mais importantes de um mestre é apontar aquilo que os alunos não conseguem ver. Como você lida com isso quando os alunos têm tanta dificuldade em enxergar as próprias falhas?
VDKR: É uma boa pergunta. Afinal, nada de significativo acontece realmente dentro da prática ou na relação entre aluno e mestre até que o aluno esteja pronto para enxergar suas falhas sem sentir uma grande culpa. O aluno é um praticante na medida em que deseja fazer isso. Quando um mestre aponta suas regiões sombrias e ocultas, está se dirigindo à ignorância e expondo-a para o bem do aluno, e não para reforçar a noção de um eu intrinsecamente mau. Mas o mestre também precisa ter consciência da verdadeira identidade do aluno. O mestre também aponta a natureza básica do aluno para que este possa se identificar com sua própria bondade, e não com a culpa ou com uma atitude defensiva. Dessa forma, existe muita abertura para olhar para os cantos escondidos, que são, na verdade, fugazes e temporários. Tanto o aluno quanto o mestre devem ter consciência dos pontos cegos do aluno e de sua natureza búdica.
PC: Então a disposição para a autorreflexão parece ser o segredo aqui.
VDKR: A disposição para a autorreflexão aliada à visão mais ampla da ausência de eu, o que de fato torna possível olhar. Quando conseguimos fazer isso, no fim das contas, nos tornamos muito mais despreocupados, nos livramos da resistência.
PC: Resistência?
VDKR: Sim, a resistência é a culpa – não querer olhar. Com a visão da ausência de culpa, podemos trabalhar com o certo ou o errado, com o que fizemos ou não fizemos. Não importa. Podemos nos sentir livres para trabalhar com essa situação sem opor resistência. A mente fica mais ágil porque há mais espaço – espaço para olhar sem se sentir ameaçada. Quando surge a culpa, ela dá mais força a esse sentimento de um “lado mau” intrínseco. Isso não é útil nem verdadeiro e contraria a forma como as coisas são. Se apresentamos a visão da ausência de ego para a nossa culpa, rompe-se a parte profunda do nosso apego emocional a esse “lado mau” intrínseco. Estou certo de que a compreensão da ausência de culpa e da ausência de eu é muito útil para todos os praticantes.