O conceito de samsara é um dos mais importantes no budismo, de fato, o mais importante no início do caminho. Ainda assim, ele é um conceito facilmente mal entendido.
Além de ele frequentemente ser confundido com o mundo externo, como uma coisa concreta, até mesmo as perspectivas que revelam sua natureza onírica podem revesti-lo de alguma noção de substancialidade.
Por exemplo, quando se diz que o samsara é criação da mente, e acreditamos que o samsara é algo como o mundo externo, facilmente isso é interpretado como idealismo – a doutrina filosófica segundo a qual o mundo é uma criação da mente. Porém há uma diferença crucial entre aparência e realidade, o mundo “criado” pela mente é o mundo das aparências, o mundo como ele nos parece.
A realidade para o budismo se diz “incriada”, o que pode soar apenas um jogo de palavras, mas simplesmente quer dizer que ela está além das limitações de existir ou não existir determinadamente. Ou seja, além de se coadunar a nossas estruturas habituais ou perspectivas convencionais.
O mundo (loka) como ele “realmente é”, é algo “além dos extremos”. Quando no budismo dizemos “além dos extremos”, isso é um resumo da Madhyamaka (“caminho do meio”). Em certo sentido, estamos querendo dizer que o mundo como ele realmente existe está além dos limites dos conceitos – de quaisquer conceitos e ideias possíveis. Ele simplesmente não pode ser contido pela mente ordinária. Sua possibilidade infinita, filtrada por nossos hábitos arraigados, faz surgir o “mundo como o percebemos”. Tecnicamente falando, porém, o conceito de samsara não é nem mesmo isso, é o reconhecimento de que uma sequência infindável de experiências em mundos projetados pela mente ordinária é inerentemente insatisfatória.
É preciso, portanto, reconhecer uma série de conceitos bastante incomuns para entender do que se trata a “experiência cíclica”, samsara. Em primeiro lugar, é preciso ter uma discriminação bem clara entre aparência e realidade, depois compreender a diferença entre mundo condicionado pela mente ordinária, ou “aparências impuras” (cheias de insatisfação) e a experiência de uma continuidade nesse mundo ou mundos. As formas de projetar a ignorância são infinitas, e parte do engano é a própria noção de continuidade e tempo. Samsara é assim um pouco mais insidioso do que a mera “mente ordinária” que é sua causa. É uma série de hábitos e estruturas compostas com base na mente ordinária, no hábito de reforçar a si própria, que culmina na concepção equivocada de um “eu” que passa por essas experiências.
Em certo sentido, compreender a mente limitada é insuficiente para revelar a liberdade inerente. Muitas pessoas entendem a futilidade da vida, mas sua tristeza está embasada numa perspectiva derrotista, que por sua vez também está vinculada a hábitos mentais inábeis. Trungpa Rinpoche usava o termo “coração genuíno de tristeza” para reverenciar a mente corajosa que reconhece a futilidade do mundo condicionado, e que efetivamente se entristece, mas que ainda assim mantém ternura, e nunca se desespera ou cai em depressão. Este aspecto caloroso da descoberta da futilidade das coisas temporárias só existe como uma expressão da liberdade inata, presente em cada um de nós, mas raramente exercida. Descobrir e revelar isto é o cerne do caminho do Buda.
A mente ordinária parece muito poderosa, mas isso se deve ao fato de que caímos vez após vez em sua ladainha, em sua “conversa de vendedor”. Por exemplo, embora esteja matematicamente provado que sistemas suficientemente complexos (mais complexos do que a simples aritmética) inerentemente demandem axiomas não justificáveis, ainda acreditamos que um dia vamos “explicar as coisas” para nós mesmos. Que vamos um dia obter uma formulação que finalmente vai revelar como as coisas são, e então relaxaremos nesse estabelecimento da verdade última, plenamente justificável e compreensível. Temos fé em que a mente ordinária, com a ajuda do esforço coletivo de muitas pessoas, numa empreitada como a da ciência ou da filosofia, vá produzir respostas ou sentido. Porém essa fé é totalmente injustificada. Está matematicamente provado que estas explicações completas e autocontidas são impossíveis.
Ainda assim, achamos que se pensarmos forte o bastante, por tempo o bastante, algo dessa experiência caótica e perturbadora – a expectativa da morte e a futilidade de nossas ações – finalmente fará sentido. No entanto, a verdade é que a mente ordinária só é capaz de produzir respostas insatisfatórias. O próprio fato de ela fazer perguntas para si própria, e as tentar responder, faz parte da insatisfatoriedade inerente dessa operação. O próprio fato de ela eventualmente conseguir respostas funcionais ou temporárias é ainda mais enganador – já que, ao vermos que ela tem sucesso em explicar um aspecto trivial disso ou daquilo, começamos a acreditar que ela talvez possa um dia entregar a esfera imaculada do sentido pleno. No entanto, está definitivamente provado que ela não pode: basta estudar um pouquinho de lógica de segunda ordem. Num sentido muito básico da estrutura da própria lógica, e nada pode ser mais fundamental que isso, isso se demonstra impossível. Caso tomemos refúgio na mente ordinária, isso só necessariamente vai prover insatisfação.
Porém, ao ser desafiada, a mente ordinária em que tanto pomos confiança logo grita que “precisamos desses processos racionais todos para nos defender do absurdo e do engodo!” Ela reconhece que já fomos enganados pelos outros, bem como por nossas próprias emoções de todo tipo, e assim por diante: e ela acaba parecendo ser nossa única protetora. Ainda assim, todas estas manifestações deviam ser reconhecidas como a própria mente ordinária, que no fundo, num sentido além da insatisfação inexorável do mundo projetado por ela, nunca garantiu coisa alguma.
E o que não seria embasado na mente ordinária?
Para revelar a liberdade inata além da mente ordinária são necessários dois aspectos: mérito e sabedoria.
Mérito é, em seu cerne, regozijo em e exercício nas próprias qualidades inatas, tanto nossas próprias quanto a de seres semelhantes a nós, ou as dos seres sublimes, que só reconhecemos por termos o potencial dessas qualidades e reconhecermos a reverberação dessa grandiosidade em nosso coração. Reconhecer o Buda, ou a sanidade básica que existe em cada um de nós, é naturalmente passar a expressar qualidades tais como generosidade e as demais perfeições. O próprio reconhecer dessa bondade inata em si é um cultivo de mérito, porque isto produz um regozijo que é, ele mesmo, fonte de regozijo, e por isso dizemos “inato”, ou poderíamos dizer “não ordinário”, “não causal”, “não esgotável”. Uma qualidade assim não é nem pode ser produzida pela mente ordinária – na melhor circunstância, a mente ordinária não a atrapalha, ou ajuda nesse reconhecimento, mas nunca é sua causa. Se algo possui causas, é ordinário, é temporário, não é confiável. Jamais alguém conseguiu justificar para outra pessoa a realidade da bondade, o total abandono do cinismo. Caso alguém espere convencimento com relação a isso, vai morrer esperando. E aqui poderíamos falar em “fé”, mas não há objeto algum de fé neste âmbito, trata-se apenas de uma confiança básica na coisa toda não ser fundamentalmente furada, que então nos coloca numa perspectiva que naturalmente está além da mente ordinária.
É, de fato, muito simples. Mas a mente ordinária produz em nós essa expectativa de algo que pode ser “sustentado” ou “explicado” no contexto dela, e isso não é possível. O que a mente ordinária pode fazer só diz respeito as preocupações da mente ordinária, sendo que nenhuma dessas coisas é fonte de qualquer satisfação verdadeira, sentido ou propósito.
Mesmo a pessoa mais cínica ou deprimida do mundo não escapa de lampejos dessa realidade. Mesmo que a mente ordinária tente suprimir ou envergonhar qualquer tentativa da pessoa ver o que é naturalmente positivo na expressão de meramente, digamos, respirar, mesmo um suicida precisa do subterfúgio de produzir uma armadilha para si mesmo – da qual provavelmente imediatamente se arrepende, se ainda estiver consciente. Mesmo o haraquiri é um golpe bastante indireto e ritualizado contra a barriga – mesmo um tiro na cabeça um reflexo súbito perpetrado em nome de uma ideação obsessiva da mente ordinária. A mente ordinária nesses casos extremos fica tão profundamente ofendida pela bondade inata, que reconhecidamente em nada depende dela, que faz de tudo para ofuscá-la. A própria futilidade do ato só faz aumentar o desespero da mente ordinária, cada vez mais o cerne da sua experiência. As pessoas realmente cometem as maiores atrocidades pela fé cega na mente ordinária, deem o nome que deem a ela.
Ocasionalmente se vai ouvir que o budismo mesmo diria que a coisa toda é fundamentalmente furada: mas isso se refere à perspectiva da mente ordinária. O budismo certamente reconhece que, da perspectiva da mente ordinária, não há chance alguma de sucesso verdadeiro – seja em obter sentido, seja em ser simplesmente ser feliz. De fato, samsara é reconhecido pelo budismo como fundamentalmente furado – só que, grande novidade para os leitores de Schopenhauer e amigos, samsara não é a realidade. Samsara é a projeção enganosa de uma mente confusa, que produz sofrimento para si própria. Fundamentalmente, o fato de podermos reconhecer o samsara só é possível pelo próprio aspecto final, independente de samsara. De que ponto de vista reconheceríamos o samsara? De dentro da operação do samsara, não somos capazes de ver nada – é só business as usual – não há solução a vista. Precisamos estar olhando de outro um ponto de vista para sermos capazes de sequer reconhecer esse tal samsara. E essa perspectiva que está olhando as coisas “de fora” é ela mesma o Buda.
Quando reconhecemos o samsara e a mente ordinária, isso em si é o aspecto de sabedoria. Quando a mente ordinária chega a uma conclusão definitiva sobre sua insuficiência (e isso é racionalmente possível), se há mérito, a terra pura é imediatamente reconhecida. Se não há mérito, a pessoa vai girar em um desespero ainda maior até que passe a gerar mérito. Isso é assim porque depositamos demasiada confiança na mente ordinária, e quando ela se revela insuficiente, se nosso mérito não está presente para reconhecermos o que está em frente a nosso nariz, essa mente livre subjacente, parece que simplesmente perdemos tudo que tínhamos. Então, melhor gerar o quanto antes esse mérito que advém da confiança na sanidade básica. Toda a prática do darma é focada em tornar essa confiança e essa geração de méritos um novo hábito, um hábito positivo – que quando se depara com a sabedoria de reconhecer a insatisfatoriedade intrínseca da mente ordinária, produz a faísca que leva ao reconhecimento do Buda. Um reconhecimento que está além de dentro ou fora, antes ou depois.
Na medida em que mérito e sabedoria se unem, a mandala da perfeição inata de todas as coisas se abre, e ali somos recebidos com chuvas de pétalas de flores por todos os budas. Essa é a realidade. Nossa experiência de não reconhecimento disso, nossa experiência confusa, é que é ilusória, temporária, não confiável.
Distinguir samsara e a mente ordinária que o produz é o que nos leva a tomar refúgio no Buda. Tomar refúgio no Buda significa reconhecer que ele proclamou essa verdade, e que ele viveu de acordo com isso. Regozijamos tanto com essa possibilidade que queremos exatamente a mesma coisa para nós mesmos e para todos os outros.
Quando a mente ordinária reconhece sua incapacidade inerente, ela não olha para si própria como uma derrotada, ou como uma inimiga. Ela começa a trabalhar em torno dessa perspectiva não ordinária, e então ela se torna essa própria perspectiva: o que era ordinário, autocentrado, convencional, temporário, se desfaz, revelando a operação da “onisciência”, que não é saber necessariamente “cada uma das coisas”, mas reconhecer o ponto crucial e não se separar dele. Conhecer o ponto crucial é efetivamente liberar todas as coisas; é reconhecer em cada coisa o potencial final. Esse é o sentido de “onisciência” no budismo, não uma coleção de fatos ou trivialidades, mas uma mente que não é limitada pelas preocupações comuns.
Que a mente ordinária prove-se a si mesma incapaz, e que ao fazer isso, não recaia em sua própria perspectiva derrotista e limitada, mas permita-se ser acolhida pelo buda inato como uma joia cheia de possibilidades. Que a expressão dessa acolhida desabroche as infinitas qualidades e meios hábeis da linhagem, tão necessários nestes tempos difíceis. Que estas qualidades e meios hábeis desembaracem todos os hábitos arraigados da percepção dualista, e que assim a mandala do sentido último resplandeça fulgurante, projetando bênçãos dentro e fora do tempo, em toda a vastidão sem centro ou circunferência.
PS: Algumas tradições budistas, ao contrário do que fiz nesse texto, chamam a própria liberdade inata de “mente ordinária”, porque na visão destas tradições, a mente cotidiana deludida em que nós, não budas, operamos, é que é construída, complicada, mentirosa, invencionista, carola, e “extraordinária” – no sentido de não ser natural, fundamental, comum. É apenas uma questão de nomenclatura.
Padma Dorje é praticante budista e autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos. Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org.