A mente não treinada é como um macaco louco, saltando de uma coisa para outra, incapaz de se concentrar sobre uma delas.
SOLTAR O MACACO DA MENTE
Para bem realizar essa tarefa, deve-se começar acalmando sua mente turbulenta. Compara-se a mente com um macaco cativo que, de tanto se agitar, se enrosca nas próprias correntes, incapaz de se soltar.
Do turbilhão de pensamentos surgem, primeiramente, as emoções, depois os humores, o comportamento e, com o tempo, os hábitos e os traços de personalidade. Tudo o que se manifesta assim espontaneamente não produz em si bons resultados, da mesma forma que semear grãos ao vento não dá boas colheitas. Ante de tudo, precisamos dominar a mente, a exemplo do camponês que prepara sua terra para nela jogar as sementes.
Se considerarmos sinceramente os benefícios que se colhem quando se faz de cada instante da nossa existência uma nova experiência do mundo, não parece excessivo reservar vinte minutos por dia para conhecer melhor a mente e treiná-la.
O fruto da meditação seria aquilo que se poderia chamar de uma maneira de ser ideal ou de uma felicidade autêntica. Essa felicidade não é constituída de uma sucessão de sensações e de emoções agradáveis. É o sentimento profundo de ter realizado da melhor maneira o potencial de conhecimento e de desempenho que se tem. Essa aventura vale a pena.
PORQUE MEDITAR?
Examinemos sinceramente nossa existência. Como está nossa vida? Quais foram até agora nossas prioridades e o que queremos para o tempo de vida que nos resta?
Somos um misto de sombras e luzes, de qualidades e defeitos. Seria essa uma maneira de ser ideal, um fato inevitável? Se assim não for, o que fazer? Essa perguntas merecem ser feitas, sobretudo, se sentimos que uma mudança é possível e desejável.
Contudo, no Ocidente, devido às atividades que consomem, da manhã à noite, uma parte considerável de nossa energia, temos menos tempo para nos debruçar sobre as causas fundamentais da felicidade. Imaginamos que, mais ou menos conscientemente, quanto mais multiplicamos nossas atividades, mais as sensações se intensificam e mais nossa insatisfação é estancada. Na realidade, muitos são aqueles que, ao contrário, se sentem decepcionados e frustrados com o modo de vida contemporâneo. Sentem-se desarmados, mas não veem outra solução porque as tradições que preconizam a própria transformação estão fora de moda. AS técnicas de meditação visam a transformar a mente. Não é necessário atribuir-lhes um rótulo religioso particular. Cada um de nós tem uma mente, cada um pode trabalhar com ela.
DEVEMOS MUDAR?
Poucos são os que afirmam não valer a pena melhorar seu modo de vida e sua vivência do mundo. Alguns pensam que seus defeitos e suas emoções conflituosas contribuem para a riqueza da vida e que é essa alquimia singular que faz deles o que são, pessoas únicas; que devem aprender a se aceitar assim, a amar tanto seus defeitos como suas qualidades. Eles correm o risco de viver com uma insatisfação crônica, sem perceber que poderiam melhorar com um pouco de esforço e de reflexão. Imaginemos que nos proponham passar um dia inteiro vivenciando o ciúme.
Qual de nós aceitaria fazê-lo com prazer? De outra forma, se nos convidassem a passar esse mesmo dia com o coração cheio de amor pelos outros, acharíamos essa opção infinitamente melhor.
Nossa mente é frequentemente perturbada. Somos afetados por pensamentos dolorosos, dominados pela raiva, feridos pelas palavras duras dos outros. Nesses momentos, quem não desejaria controlar suas emoções para ser livre e mestre de si mesmo? Nós nos privaríamos, de bom grado, desses tormentos, mas, não sabendo como agir, preferimos pensar que, afinal de contas, “a natureza humana é assim mesmo”. Ora, o que é natural não é necessariamente desejável. Sabemos, por exemplo, que a doença é o destino de todos os seres, mas isso não nos impede de consultar um médico quando estamos doentes.
Não queremos sofrer. Ninguém acorda de manhã pensando: “Tomara que eu sofra o dia inteiro e, se possível, toda a vida!”. Em tudo que fazemos, seja iniciar uma tarefa importante, realizar um trabalho habitual, empenharmo-nos numa relação duradoura, seja simplesmente passear na floresta, beber uma xícara de chá, ter um encontro fortuito, esperamos sempre tirar disso alguma coisa benéfica para nós mesmos e para os outros. Se tivéssemos a certeza de que nossos gestos só trariam sofrimento, não agiríamos.
Temos, sim, momentos de paz interior, de amor e lucidez, mas, na maior parte do tempo, são apenas sentimentos efêmeros que logo dão lugar a outro estado de espírito. Entretanto, compreendemos facilmente que, se treinássemos nossa mente para cultivar esses momentos privilegiados, transformaríamos radicalmente nossa vida. Todos sabemos que seria desejável que nos tornássemos seres humanos melhores e nos transformássemos por dentro, tentando consolar o sofrimento alheio e contribuir para o bem-estar do outro.
Certas pessoas pensam que a existência não tem sabor sem os conflitos interiores. Conhecemos todos os tormentos da raiva, da avidez ou do ciúme. Da mesma forma, todos nós apreciamos a bondade o contentamento, a alegria de ver os outros felizes. Parece que o sentimento de harmonia associado ao amor ao próximo possui uma qualidade própria que se basta. O mesmo acontece com a generosidade, com a paciência e com muitas outras qualidades.
Se aprendêssemos a cultivar o amor altruísta e a paz interior, e, paralelamente, nosso egoísmo e seu cortejo de frustações se atenuassem, nossa existência não perderia nada de sua riqueza, ao contrário.
É POSSÍVEL MUDAR?
A verdadeira questão não é então se “Queremos mudar?”, mas “É possível mudar?”. Podemos, com efeito, imaginar que as emoções perturbadoras estão tão intimamente associadas à mente que seria impossível livrarmo-nos delas, a menos que destruíssemos uma parte de nós mesmos.
É certo que nossos traços de caráter geralmente mudam pouco. Se observados com alguns anos de intervalo, raros são os coléricos que se tornam pacientes, os atormentados que encontram a paz interior ou os pretensiosos que passam a ser humildes. Entretanto, por mais raro que seja, alguns mudam, e a mudança que neles se opera mostra que não se trata de algo impossível.
Nossos traços de caráter perduram enquanto não fazemos nada para melhorá-los e deixamos nossa indisposição e nosso automatismo se manter, até mesmo ganhar força a cada pensamento, dia após dia, ano após ano. Mas eles não são intangíveis.
A malevolência, a avidez, o ciúme e outros venenos mentais fazem, indiscutivelmente, parte de nossa natureza, mas há diferentes formas de fazer parte de alguma coisa. A água, por exemplo, pode conter cianureto e nos levar à morte imediata. Entretanto, misturada com um remédio, cura-nos. Por si mesma, ela nunca se tornou tóxica nem medicinal. OS diferentes estados da água são temporários e anedóticos, como nossas emoções, humores e trações de personalidade.
UM ASPECTO FUNDAMENTAL DA CONSCIÊNCIA
Compreendemos isso quando percebemos que a qualidade primeira da consciência, que é simplesmente “conhecer”, não é intrinsecamente nem boa nem má.
Se olharmos além das ondas turbulentas dos pensamentos e das emoções efêmeros que atravessam nossa mente, da manhã à noite, podemos constatar a presença desse aspecto fundamental da consciência que torna possível e subjaz toda percepção, qualquer que seja sua natureza. O budismo qualifica esse aspecto cognocente de “luminoso”, pois esclarece, ao mesmo tempo, o mundo exterior e o mundo interior das sensações, das emoções, dos raciocínios, das lembranças e dos temores, levando-nos a percebê-los. Ainda que essa faculdade de conhecer sustente cada acontecimento mental, ela não é afetada, em si mesma, por esse acontecimento, Um raio de luz pode clarear um rosto raivoso ou um sorridente, uma joia ou um monte de lixo, mas a luz não é em si mesma nem maléfica nem benéfica, nem limpa nem suja. Essa constatação permite compreender que é possível transformar nosso universo mental, o conteúdo de nossos pensamentos e de nossas experiências.
De fato, o fundo neutro e “luminoso” da consciência nos oferece o espaço necessário para observar os acontecimentos mentais, em vez de ficar à sua mercê, para criar, em seguida, as condições de sua transformação.
UM SIMPLES DESEJO NÃO BASTA
Não podemos escolher o que somos, mas podemos querer melhorar.
Essa aspiração dará uma direção à nossa mente. Já que um simples desejo não basta, cabe a nós realizá-lo.
Não achamos anormal passar anos aprendendo a andar, a ler, a escrever e a nos formar profissionalmente, passar horas a nos exercitar fisicamente para estarmos em forma, por exemplo, pedalando com assiduidade sobre uma bicicleta ergométrica que não vai a lugar algum. Ara empreendermos uma tarefa qualquer, precisamos ter um mínimo de interesse ou entusiasmo, e esse interesse vem do fato de estarmos conscientes dos benefícios que decorrerão de nosso ato.
Por que mistério a mente escaparia dessa lógica? E poderia ela transforma-se sem o menor esforço, simplesmente porque o desejamos? Seria o mesmo que desejar tocar um concerto de Mozart dedilhando ao piano apenas de vez em quando.
Esforçamo-nos muito para melhorar as condições exteriores de nossa existência, mas é a nossa mente que tem a experiência do mundo e a expressa sob forma de bem-estar ou sofrimento. Se modificarmos nossa maneira de perceber as coisas, transformaremos a qualidade de nossa vida. E essa mudança é resultado de um treinamento da mente que se chama “meditação”.
O QUE É MEDITAR?
A meditação é uma prática que permite cultivar e desenvolver certas qualidades humanas fundamentais, da mesma forma que outras maneiras de treinar nos ensinam a ler, a tocar um instrumento musical ou adquirir qualquer outra aptidão.
Etimologicamente, as palavras sânscrita e tibetana traduzidas em francês por “meditação” são, respectivamente, bhavana, que significa “cultivar”, e gom, “familiarizar-se”. Trata-se, principalmente, de familiarizar-se com uma visão clara e justa das coisas e de cultivar qualidades que nós todos possuímos mas que permanecerão em estado latente enquanto não nos esforçarmos para desenvolvê-las.
Alguns acreditam que a meditação não é necessária porque as experiências constantes da vida bastam para formar nosso cérebro e, consequentemente, nossa maneira de ser e de agir. Não há dúvida de que é graças a essa interação com o mundo que a maior parte de nossas faculdades, as dos sentidos, por exemplo, se desenvolve. Contudo, é possível fazer melhor. As pesquisas científicas no campo da “neuroplasticidade” mostram que toda forma de treinamento induz a reorganizações importantes no cérebro, tanto no nível funcional quanto no plano estrutural.
Comecemos, então, nos perguntando o que desejamos verdadeiramente na existência. Contentaremo-nos em improvisar o dia a dia? Não percebemos, no fundo de nós, um mal-estar difuso e constante, quando, ao contrário, temos sede de bem-estar e de plenitude?
Acostumados a pensar que nossos defeitos são irreversíveis, a colecionar fracassos ao longo da vida, acabamos por considerar nosso disfuncionamento como um fato consumado, sem tomar consciência de que é possível nos libertar desse círculo vicioso do qual estamos cansados.
Do ponto de vista do budismo, cada ser humano traz em si o potencial do Despertar, tão certamente, dizem os textos, quanto cada grão de gergelim está saturado de óleo. Apesar disso, nós vagamos na confusão como mendigos, que, para utilizar outra comparação tradicional, são ao mesmo tempo ricos e pobres, pois ignoram que um tesouro está enterrado em sua cabana.
TRANSFORMAR-SE A SI MESMO PARA
MELHOR TRANSFORMAR O MUNDO
Desenvolvendo nossas qualidades interiores, podemos ajudar os outros de uma forma melhor. Nossa experiência pessoal, ainda que seja, a princípio, nossa única referência, deve, em seguida, permitir-nos adotar um ponto de vista mais amplo que leve me consideração todos os seres. Dependemos todos uns dos outros e ninguém quer sofrer. Ser feliz no meio da infinidade dos outros que sofrem seria absurdo, se é que isso seja possível.
A busca da felicidade unicamente para si é destinada ao fracasso certo, já que o egocentrismo está na base de nosso mal-estar. “Quando a felicidade egoísta é o único objetivo da vida, a vida perde o objetivo”, escrevia Romain Rolland. Mesmo exibindo todas as aparências da felicidade, não se pode ser verdadeiramente feliz se não houver interesse pelo bem do outro. Em contraposição, o amor altruísta e a compaixão são os fundamentos da felicidade autêntica.
Esses propósitos não decorrem de uma intenção moralizante, mas refletem simplesmente a realidade. Buscar a felicidade unicamente para si é a melhor forma de não ser feliz nem fazer os outros felizes. Poderíamos acreditar que é possível isolar-se dos outros para garantir mais facilmente seu próprio bem-estar (que cada um faça sua parte e todos serão felizes), mas o resultado obtido dessa forma será contrário ao que se desejava. Divididos entre esperança e medo, tornaremos nossa vida miserável e arruinaremos a vida de todos aqueles que os rodeiam. No fim, todos seremos perdedores.
Uma das razões fundamentais desse fracasso é o que o mundo não é constituído de entidades autônomas dotadas de propriedades intrínsecas que as tornariam belas ou feias, amigas ou inimigas: as coisas e os seres são essencialmente interdependentes e em perpétua evolução. Além disso, os próprios elementos que os constituem só existem em relação uns com os outros. O egocentrismo se choca continuamente contra essa realidade e só gera frustações.
O amor altruísta, esse sentimento que, segundo o budismo, consiste em desejar que os outros sejam felizes, assim como a compaixão – definida como o desejo de atenuar o sofrimento do outro e suas causas -, não é simplesmente um sentimento nobre, mas está em harmonia com a realidade das coisas. A infinidade dos seres quer evitar o sofrimento tanto quanto nós mesmos. Além disso, como somos todos interdependentes, nossa felicidade e infelicidade estão ligadas às dos outros. Cultivar o amor e a compaixão é uma aposta duplamente vencedora: a experiência mostra que esses são os sentimentos que nos fazem o maior bem e que os comportamentos que eles provocam são percebidos pelos outros como benfazejos.
Quando sentimos sinceramente que o bem-estar e o sofrimento dos outros nos dizem respeito, devemos necessariamente pensar e agir de maneira justa e esclarecida. Para que os atos realizados com a intenção de ajudar o outro tenham verdadeiramente consequências benéficas, devem ser guiados pela sabedoria, que se adquire por meio da meditação. A principal razão de ser da meditação é transformar-se a sim mesmo para melhor transformar mundo, ou tornar-se um ser humano melhor para melhor servir aos outros. A meditação permite das à vida seu sentido mais nobre.
UM EFEITO GLOBAL
Se o objetivo principal da meditação é transformar nossa experiência do mundo, fica claro também que a experiência meditativa tem efeitos benéficos sobre a saúde. Há dez anos, aproximadamente, grandes universidades americanas como a Universidade de Madison, no Wisconsin, as de Princeton, Harvard e Berkeley, assim como centros em Zurique e em Maastricht, na Europa, vem fazendo pesquisas intensivas acerca da meditação e sua ação, a curto e longo prazo, sore o cérebro. Meditadores experientes, totalizando ente dez e 60 mil horas de meditação, demostraram que tinham adquirido capacidades de atenção pura que não são encontradas nos iniciantes. São capazes, por exemplo, de manter uma vigilância quase perfeita durante 45 minutos sobre uma tarefa particular, enquanto a maioria das pessoas não ultrapassa cinco ou dez minutos, ao fim dos quais os erros se multiplicam. Os meditadores experientes têm a faculdade de criar estados mentais precisos, focados, potentes e duradouros. Experiências mostraram notadamente que a zona do cérebro associada às emoções, como a compaixão, por exemplo, apresentava uma atividade consideravelmente maior nas pessoas que tinham longa vivência meditativa. Essas descobertas indicam que as qualidades humanas podem ser deliberadamente cultivadas por um treinamento mental.
Sem entrar em detalhes, assinalamos que um número crescente de estudos científicos indica igualmente que a prática da meditação em curto prazo diminui consideravelmente o estresse (cujos efeitos nefastos sobre a saúde já estão estabelecidos 2),
SOBRE O QUE MEDITAR?
O objeto da meditação é a mente. Por agora, ela está, ao mesmo tempo, confusa, agitada, rebelde e submetida a inúmeros condicionamentos e automatismos. A meditação não tem por objetivo feri-la ou anestesiá-la, mas torna-la livre, clara e equilibrada.
Segundo o budismo, a mente não é uma entidade, mas uma onda dinâmica de experiências, uma sucessão de instantes da consciência. Essas experiências são frequentemente marcadas pela confusão e pelo sofrimento, mas podem também ser vividas num estado amplo de clareza e de liberdade interior.
Conforme o mestre tibetano contemporâneo Jigmé Khyentsé Rinpotché, “não precisamos treinar a mente para que ela se aborreça mais facilmente ou fique com ciúme. Não precisamos de um acelerador de raiva ou de um amplificador de amor próprio”. 1 No entanto, o treinamento da mente é crucial se quisermos refinar nossa atenção, desenvolver nosso equilíbrio emocional e nossa paz interior, como também cultivar o devotamento ao bem do próximo. Temos em nós o potencial necessário para fazer frutificar essas qualidades, mas elas não se desenvolverão por si mesmas pelo simples fato de querermos que isso aconteça. Precisam de treino. Todo treinamento, como já enfatizamos, exige perseverança e entusiasmo. Não se aprende a esquiar exercitando-se somente um ou dois minutos por mês.
REFINAR A ATENÇÃO E A CONSCIÊNCIA PLENA
Galileu descobriu os anéis de Saturno após ter fabricado uma luneta astronômica suficientemente luminosa e possante que colocou sobre um suporte estável. Essa descoberta não teria sido possível se seu instrumento fosse defeituoso ou se ele o tivesse segurado com uma mão trêmula. Da mesma forma, se quisermos observar os mais sutis mecanismos do funcionamento da nossa mente e agir sobre eles, devemos aperfeiçoar nosso poder de introspecção. Para isso, temos de aguçar nossa atenção para que ela se torne estável e clara. Poderemos, então, observar o funcionamento da mente, a maneira pela qual ela percebe o mundo, compreende a concatenação dos pensamentos. Enfim, estaremos prontos para tornar mais refinada sua percepção com o objetivo de discernir o aspecto mais fundamental da consciência, um estado perfeitamente lúcido e vivo, sempre presente, mesmo na ausência de construções mentais.
O QUE A MEDITAÇÃO NÃO É
Os praticantes da meditação são, às vezes, criticados por ser muito autocentrados, por se satisfazer com certa introspecção egocêntrica em vez de ajudar os outros. Mas não se pode tratar de egoísta uma atitude que busca erradicar a obsessão consigo mesmo e cultivar o altruísmo. Seria o mesmo que criticar um futuro médico por passar anos estudando medicina.
Existem numerosos clichês sobre a meditação. Antes de mais nada, ela não consiste em criar um vazio na mente, bloqueando os pensamentos – o que é, aliás, impossível -, nem em levar a mente a cogitações sem fim para analisar o passado ou antecipar o futuro. Também não se reduz a um simples processo de relaxamento no qual os conflitos interiores são momentaneamente suspensos num estado de consciência indiferenciado.
Há, certamente, um elemento de relaxamento na meditação, mas trata-se mais do alívio que acompanha o “desprender-se” das esperanças e medos, dos apegos e caprichos do ego que não param de alimentar nossos conflitos interiores.
UM CONTROLE QUE LIBERTA
Veremos que a maneira de produzir pensamentos não consiste nem em bloqueá-los nem em nutri-los indefinidamente, mas em deixá-los emergir e desaparecer por si mesmos no campo da consciência plena, de maneira que não invadam nossa mente.
A meditação consiste mais exatamente em tomar o controle de sua mente, em familiarizar-se com uma nova compreensão do mundo e em cultivar uma maneira de ser que não está submetida aos nossos esquemas habituais de pensamento. Começa frequentemente por uma atitude analítica, passando à contemplação e à transformação interior.
Ser livre é ser dono de si mesmo. Não é fazer tudo o que vem à cabeça, mas libertar-se da sujeição às aflições que dominam a mente e a obscurecem. È tomar as rédeas de sua vida, em vez de entregá-la às tendências forjadas pelo hábito e à confusão mental. Não é largar o leme, deixar as velas flutuar ao vento e o barco partir à deriva, mas, ao contrário, colocá-lo na direção escolhida: aquela que consideramos como a mais desejável para nós e para os outros.
NO CORAÇÃO DA REALIDADE
A compreensão da qual tratamos consiste em uma visão mais clara da realidade. A meditação não é um meio de escapar da realidade, como a acusam às vezes. Ao contrário, tem por objetivo nos fazer ver a realidade como ela é – o mais perto possível daquilo que vivemos -, desmascarando as causas profundas do sofrimento e dissipando a confusão mental que nos leva a procurar a felicidade onde ela não se encontra. Para chegar à justa visão das coisas, medita-se, por exemplo, sobre a interdependência de todos os fenômenos, sobre seu caráter transitório e sobre a não existência do ego percebido como uma entidade sólida e autônoma à qual nos identificamos.
Essas meditações se apoiam igualmente na experiência adquirida por gerações de contemplativos que dedicaram a sua vida a observar os mecanismos do pensamento e a natureza da consciência e que, em seguida, ensinaram um grande número de métodos empíricos que permitiram desenvolver a clareza mental, a vigilância, a liberdade interior ou ainda o amor e a compaixão. É indispensável constatar o valor desses métodos e verificar a validade das conclusões às quais esses sábios chegaram. Essa verificação não é um simples procedimento intelectual: é preciso redescobrir essas conclusões, depois integrá-las no mais profundo de si por um longo processo de familiarização. Essa iniciativa tem de contar com a determinação, o entusiasmo e a perseverança, o que Shantidéva 2 chama de “alegria de fazer o que é benéfico”.
Começa-se, então, por observar e compreender como os pensamentos se encadeiam e provocam todo um mundo de emoções, de alegrias e de sofrimentos. Penetra-se, em seguida, por trás da tela dos pensamentos para apreender o componente fundamental da consciência, a faculdade cognitiva primeira, no seio da qual todos os pensamentos e todos os outros fenômenos mentais surgem.
COMO MEDITAR?
A meditação não diz respeito às palavras, mas à prática. De nada serve ler várias vezes o cardápio de um restaurante, o que vale é assentar-se à mesa. Entretanto, é útil dispor das linhas e diretrizes que as obras dos sábios do passado oferecem. Estas possuem minas de instruções que expõem claramente os objetivos e os métodos de cada meditação, a melhor forma de progredir e as armadilhas que espreitam os praticantes.
Vejamos agora alguns dos numerosos métodos de meditação. Começaremos pelas preliminares e pelos conselhos gerais, em seguida enfocaremos um certo número de meditações particulares que constituem o fundamento da via espiritual. Nós o faremos da forma mais simples possível, a fim de permitir a cada um exercitá-la gradualmente. Enfim, para os que desejam aprofundar essas práticas, daremos, no fim do texto, referências mais detalhadas de obras. Nunca conseguiremos enfatizar suficientemente a importância dos conselhos d um guia experiente. Este texto não pretende substituir tais conselhos, mas oferecer bases provenientes de fontes autênticas.
Muitos desses exercícios, sobretudo aqueles que se referem à consciência plena, à calma interior, à visão penetrante e ao amor altruísta, são praticados por todas as escolas de budismo; outros, aqueles que tratam, por exemplo, da maneira de administrar emoções, provêm do budismo tibetano. Como este livro é destinado a todos aqueles que desejam praticar a meditação, sem se engajar necessariamente no budismo, nós não explicaremos certos fundamentos da prática budista propriamente dita, como a “tomada de refúgio”, assim como certos assuntos específicos.
Abordaremos os seguintes temas:
- a motivação que deve proceder e acompanhar todo o esforço;
- as condições favoráveis ao exercício da meditação:
– seguir os conselhos de um guia qualificado,
– os lugares propícios para a meditação,
– uma postura física apropriada,
– o entusiasmo como motor da perseverança;
- algumas recomendações gerais;
- volver a mente para a meditação contemplando:
– o valor da vida humana,
– a natureza efêmera de toda coisa,
– o que se deve cumprir ou evitar,
– a insatisfação inerente ao mundo do cotidiano;
- a meditação sobre a consciência plena;
- a calma interior (shamantha):
– a atenção ao vaivém da respiração,
– a concentração em um objeto,
– a concentração sem objeto,
– superar obstáculos,
– a progressão da calma interior;
- a meditação sobre o amor altruísta:
– o amor,
– a compaixão,
– o alegrar-se com a felicidade do outro,
– a imparcialidade,
– como associar essas quatro meditações,
– a troca com o outro;
- aliviar a dor física e mental;
- a visão penetrante (vipasyana):
– compreender melhor a realidade,
– administrar os pensamentos e as emoções,
– à procura do ego,
– meditação sobre a natureza da mente;
- dedicar os frutos de nossos esforços;
- associar a meditação à vida de todo dia.
Para concluir, lembremos que nossa mente pode ser nosso melhor amigo como também nosso pior inimigo. Libertá-la da confusão, do egocentrismo e das emoções perturbadoras é o melhor serviço que podemos prestar a nós mesmos e ao outro.
A MOTIVAÇÃO
Quando começamos uma meditação, como qualquer outra atividade, é essencial que verifiquemos a natureza de nossa motivação. Com efeito, é essa motivação, altruísta ou egoísta, vasta ou limitada, que dará uma direção positiva ou negativa aos nossos atos e determinará seu resultado.
Todos nós desejamos evitar o sofrimento e atingir a felicidade, e temos o direito fundamental de realizar essa aspiração. Entretanto, nossos atos estão, na maior parte do tempo, em contradição com nossos desejos. Procuramos a felicidade onde ela não está e nos precipitamos em direção ao que nos faz sofrer. A prática budista não exige renunciar a tudo o que é realmente benéfico na existência, mas abandonar as causas do sofrimento, às quais estamos agarrados como se fossem drogas. Esse sofrimento originário da confusão mental que obscurece nossa lucidez e nosso julgamento só pode ser combatido se adquirirmos uma visão justa da realidade e transformarmos nossa mente. Eliminarmos assim suas principais causas: os venenos mentais que são a ignorância, a malevolência, a avidez, a arrogância e o ciúme, eles mesmos produzidos pelo apego egocêntrico e falacioso ao “eu”.
Curar-se desses sofrimentos pessoais, entretanto, não basta. Cada um de nós é um único ser, enquanto os outros são em número infinito e querem, todos eles, da mesma forma que nós, não sofrer mais. Além disso, todos os seres são interdependentes e estamos, portanto, intimamente ligados aos outros. Consequentemente, o objetivo último da transformação que vamos empreender pela meditação é, também, ser capazes de libertar todos os seres do sofrimento e contribuir para o seu bem-estar.
MEDITAÇÃO
Vamos refletir sobre nossa situação atual. Nossos comportamentos ou nossas reações habituais não mereciam ser melhorados? Olhemos bem no fundo de nós mesmos.
Não vemos aí a presença de um potencial de mudança? Confiemos no fato de que a mudança é possível, ainda que tenhamos pouca determinação e lucidez. Esforcemo-nos em nos transformar não somente para o nosso bem, mas também para um dia sermos capazes de dissipar o sofrimento dos outros e ajuda-los a encontrar a felicidade duradoura. Deixemos essa determinação crescer e enraizar-se no mais profundo de nós.
FONTES DE INSPIRAÇÃO
“Demonstramos estreiteza ou abertura de espírito? Levamos em consideração o todo de uma situação ou limitamo-nos aos seus detalhes? Temos uma perspectiva de longo ou curto prazo? Nossa motivação e realmente impregnada de compaixão?… Nossa compaixão se limita a nossa família, aos nossos amigos e a todos aqueles com os quais nos identificamos? Precisamos a todo momento nos fazer esse tipo de perguntas.”
XIVº Dalai Lama
Que o precioso Pensamento do Despertar
Nasça em mim, se não o concebi.
Quanto tiver nascido, que jamais decline
Mas cresça sempre.
Votos de Bodhisattva
AS CONDIÇÕES FAVORÁVEIS PARA A PRÁTICA DA MEDITAÇÃO
Seguir os conselhos de um guia qualificado
Para meditar, é preciso, primeiramente, saber como fazer. Por isso, o papel do instrutor qualificado é essencial. No melhor dos casos, trata-se de um mestre espiritual autêntico, capaz de oferecer uma fonte inesgotável de inspiração e de conhecimento, assim como uma longa experiência pessoal. Nada pode substituir, com efeito, a força do exemplo e a profundidade da transmissão viva. Além de sua presença inspiradora e do ensinamento que dispensa silenciosamente, só pela sua maneira de ser, esse mestre vigia seu discípulo para que ele não se perca em outros atalhos.
Se o encontro com um mestre assim não for possível, podemos nos beneficiar com os conselhos de alguém sério, que tenha mais conhecimento e experiência que nós e cujas instruções se apoiem numa tradição verdadeira e aprovada. Caso contrário, é melhor ter a ajuda de um texto simples como este, se ele for baseado em fontes confiáveis, em vez de nos deixar orientar por um instrutor cujos ensinamentos refletem somente as fantasias de sua própria invenção.
Um lugar propício à meditação
As circunstâncias que a vida cotidiana nos oferece não são favoráveis à meditação. Nosso tempo e nossa mente estão ocupados com toda espécie de atividade e de preocupação sem fim. Por isso, torna-se necessário, no início, organizar um certo número de condições favoráveis. É possível e desejável manter os benefícios da meditação quando estamos mergulhados no seio da vida corrente, sobretudo recorrendo ao exercício da “consciência plena”. Mas, inicialmente, é indispensável treinar a mente num meio ambiente propício. Não aprendemos os rudimentos da navegação na hora da tempestade, mas quando o tempo está bom e num mar calmo. Da mesma forma, no começo, é preferível meditar num lugar tranquilo para dar à mente a chance de se tornar clara e estável. Os textos budistas recorrem sempre à imagem de uma lâmpada de querosene. Se ela for constantemente exposta ao vento, sua claridade será fraca e correrá o risco de se apagar. Se, ao contrário, for protegida contra o vento, sua chama será estável e luminosa. O mesmo acontece com nossa mente.
Uma postura física apropriada
A postura física influi no estado mental. Se adotarmos uma postura muito relaxada, haverá grande possibilidade de que nossa meditação caia no torpor e na sonolência. Já uma postura muito rígida e tensa pode nos provocar agitação mental. Então, tem-se de adotar uma postura equilibrada, nem muito tensa nem muito relaxada. Encontramos neste texto a descrição da postura em sete pontos, chamada vajrasana (postura do diamante).
DESENHO
- As pernas estão cruzadas na postura do vajra, comumente denominada “postura de lótus”, na qual se começa dobrando a perna direita sobre a esquerda, depois a esquerda sobre a direita.
Se essa postura for muito difícil, pode-se adotar a “meio-lótus”, que consiste em colocar a perna direita sob a coxa esquerda e a perda esquerda sob a coxa direita (postura dita “feliz”, chamada de sukhasana):
DESENHO
- As mãos repousam sobre o regaço num gesto de equanimidade, a mão direita sobre a mão esquerda, com a extremidade dos polegares se tocando. Outra variante consiste em colocar as mãos abertas sobre os joelhos, com as palmas voltadas para baixo.
- Os ombros são levemente levantados e inclinados para a frente.
- A coluna vertebral fica bem reta, “como uma pilha de moedas de ouro”.
- O queixo fica ligeiramente encolhido sobre a garganta.
- A ponta da língua toca o alto do palato.
- O olhar se dirige em linha reta para a frente ou levemente para baixo, no prolongamento do nariz, os olhos ficam bem abertos ou semicerrados.
Se tivermos dificuldade de permanecer assentados com as pernas cruzadas,
poderemos, é claro, meditar sobre uma cadeira ou sobre uma almofada alta.
O essencial é manter uma posição equilibrada, as costas retas e adotar outros pontos da postura descrita acima. Os textos dizem que, se o corpo estiver bem ereto, os canais de energia sutil ficam igualmente eretos e, por conseguinte, a mente fica clara.
Pode-se contudo modificar levemente a postura do corpo segundo a evolução da meditação. Se tivermos a tendência a mergulhar no torpor, até mesmo no sono, levantaremos o peito, adotando uma postura mais firme, dirigindo o olhar para o alto. Se, ao contrário, a mente estiver muito agitada, relaxaremos um pouco e dirigiremos o olhar para baixo.
A postura apropriada deve ser mantida o maior tempo possível, mas, se ela se tornar muito desconfortável, é melhor relaxar alguns instantes do que ficar constantemente distraído pela dor. Pode-se também, no limite de suas possibilidades, apreender a experiência da dor, sem rejeitá-la nem ampliá-la, acolhendo-a como qualquer outra sensação, agradável ou desagradável, na consciência plena do momento presente. Pode-se, enfim, alternar a meditação sentada com a marcha contemplativa, um método que descreveremos mais tarde.
O entusiasmo como motor da perseverança
Para nos interessarmos por alguma coisa e dedicar-lhe algum tempo, é preciso primeiramente perceber suas vantagens. O fato de refletirmos sobre os benefícios esperados da meditação, de tê-los experimentando um pouco alimentará nossa perseverança. Contudo, isso não quer dizer que a meditação seja um exercício sempre agradável. Podemos compará-la a uma excursão na montanha, que não é prazerosa o tempo todo. O essencial é ter um interesse suficientemente profundo para manter o esforço, apesar dos altos e baixos da prática espiritual. A satisfação de progredir em direção ao objetivo fixado é suficiente para manter a determinação e a convicção de que o esforço vale a pena.
ALGUMAS RECOMENDAÇÕES GERAIS
É essencial manter a continuidade da meditação, dia após dia, pois é assim que ela ganha, pouco a pouco, em amplitude e estabilidade, como um filete de água que se transforma em riacho e depois em rio.
Lê-se nos textos que é melhor meditar regularmente, e de forma repetida, durante certos períodos de tempo do que fazer longas sessões de vez em quando. Podemos, por exemplo, dedicar vinte minutos todo dia à meditação e aproveitar pausas em nossas atividades para reavivar, por alguns minutos, a experiência adquirida durante nossa prática formal. Esses curtos períodos terão mais chance de ser de boa qualidade e manterão um sentimento de continuidade em nossa prática.
Para que uma planta cresça bem, temos de regá-la um pouco diariamente. Se nos contentarmos em derramar sobre ela um grande balde de água uma vez por mês, ela morrerá provavelmente pela seca entre duas regaduras. O mesmo acontece com a meditação. Isso não quer dizer que não possamos consagrar à meditação mais tempo, às vezes.
Se meditarmos de maneira muito descontínua, durante os intervalos sem meditação voltaremos a nossos velhos hábitos e seremos novamente dominados pelas emoções negativas, se poder recorrer ao suporte da meditação. Inversamente, se meditarmos sempre, ainda que de maneira breve, poderemos prolongar, entre as sessões formais, uma certa parte de nossa experiência meditativa.
Dizem, também, que a assiduidade não deve depender do humor do momento.
Seja nossa sessão de meditação agradável ou enfadonha, fácil ou difícil, o importante é perseverar. Aliás, é quando não estamos com vontade de meditar que a prática é mais proveitosa, pois ela ataca diretamente o que, em nós, impede o progresso espiritual.
Como veremos adiante mais detalhadamente, devemos igualmente equilibrar nossos esforços para não sermos nem muito tensos nem muito relaxados. Buda tinha um discípulo que era um grande tocador de vina, um instrumento de cordas parecido com o sitar. Esse discípulo tinha muita dificuldade em meditar e contou a Buda: “Por vezes, faço esforços desmedidos para concentrar-me e fico muito tenso. Outras vezes, tento relaxar, mas relaxo demais e mergulho no torpor. Como agir?” Buda lhe respondeu com uma pergunta: “Quando você afina seu instrumento, que tensão dá às suas cordas para que emitam o melhor som?”. “Elas não devem ficar nem muito tensas nem muito relaxadas”, respondeu o músico. Buda concluiu: “O mesmo acontece com a meditação: para que progrida harmoniosamente, deve-se encontrar o exato equilíbrio entre esforço e relaxamento”.
Aconselha-se não dar importância às diversas experiências interiores que podem surgir no curso da meditação sob a forma, por exemplo, de felicidade, clareza interior ou ausência de pensamentos. Essas experiências são comparáveis às paisagens que vemos desfilar quando estamos sentados dentro de um trem. Não poderíamos descer do trem toda vez que uma cena nos parecesse interessante, pois o mais importante é chegar ao nosso destino final. No caso da meditação, nosso objetivo é nossa própria transformação ao longo dos meses e dos anos. Esses progressos são, em geral, quase imperceptíveis de um dia para o outro, como os ponteiros de um relógio que parecem não se mover quando os olhamos fixamente. Devemos, pois, ser diligentes, mas não impacientes. A precipitação não combina com a meditação, uma vez que toda transformação profunda exige tempo.
Pouco importa se o caminho for longo, de nada serve fixar uma data-limite, o essencial é saber que estamos indo na direção certa. Além disso, o progresso espiritual não é um caso de “tudo ou nada”. Cada passo, cada etapa, traz sua parte de satisfação e contribui para o desabrochar interior.
Resumindo, o que conta não é fazer de vez em quando experiências efêmeras, mas ver, no fim de vários meses ou anos de prática, que mudamos de forma duradoura e profunda.
DIRIGIR A MENTE PARA A MEDITAÇÃO
Com o objetivo de reforçar nossa determinação para meditar, eis quatro temas de reflexão que merecem nossa atenção:
- O valor da vida humana.
- Sua fragilidade e a natureza transitória de todas as coisas
- A distinção entre os atos benéficos e os nocivos
- A insatisfação inerente a um grande número de situações de nossa existência.
O valor da vida humana
Desde que possamos gozar de um mínimo de liberdade e de oportunidades, a existência humana oferece extraordinárias ocasiões de desenvolvimento interior. Utilizada com conhecimento de causa, a meditação nos oferece uma chance única de realizar o potencial que todos nós possuímos e dilapidamos tão facilmente. Esse potencial, encoberto por nossa ignorância ou confusão mental e por nossas emoções perturbadoras, permanece na maior parte do tempo enterrado dentro nós como um tesouro escondido. As qualidades adquiridas ao longo do percurso espiritual assinalam o aparecimento gradual desse potencial, comparável ao brilho de uma pepita de ouro que vai se manifestando à medida que a limpam.
MEDITAÇÃO
Damo-nos conta de como a vida é preciosa e desejamos extrair sua quintessência. Em comparação com a dos animais, essa vida nos dá a chance extraordinária de desempenhar uma obra benéfica que ultrapassa os limites de nossa simples pessoa. A inteligência humana é um instrumento extremamente poderoso, capaz de produzir imensos benefícios, mas também terríveis males. Devemos utilizá-la para eliminar gradualmente o sofrimento e descobrir a felicidade autêntica, não somente para nós mesmos, mas para todos aqueles que estão à nossa volta, de maneira que cada instante valha a pena ser vivido, para que, na hora de nossa morte, não tenhamos nada a lamentar, como o camponês que cultivou sua terra da melhor forma possível. Permaneçamos alguns instantes nesta profunda apreciação.
FONTE DE INSPIRAÇÃO
Uma das principais dificuldades que encontramos tentando examinar nossa mente é a convicção profunda, e frequentemente inconsciente, de que somos como somos, e que não podemos mudar nada. Eu mesmo experimentei esse sentimento de pessimismo inútil na minha infância e o observei muitas vezes nos outros no curso de minhas viagens pelo mundo. Inconscientemente, o fato de ver nossa mente como algo rígido impede qualquer tentativa de mudança.
Alguns me disseram que tentaram mudar por meio de declarações afirmativas, orações ou visualizações, mas abandonaram essa prática, no fim de alguns dias, pois não viam resultado imediato. Quando os métodos não apresentam resultados, muitos rejeitam qualquer possibilidade de mudar sua mente. Entretanto, em minhas conversas com cientistas de todos os países, uma coisa chamou minha atenção: quase toda a comunidade científica concorda em pensar que o cérebro é estruturado de tal maneira que é possível efetuar verdadeiras mudanças em nossa experiência diária.”
Yongey Mingyour Rinpoché
MEDITAÇÃO SOBRE A CONSCIÊNCIA PLENA
Frequentemente nossa mente é levada por uma corrente de pensamentos nos quais se misturam reminiscências e projeções no futuro. Ficamos distraídos, dispersos, confusos e, por isso, desconectados da realidade imediata e mais próxima de nós. Percebemos com dificuldade o que se passa no instante em que vivemos: o mundo que nos cerca, nossas sensações, a maneira pela qual nossos pensamentos se encadeiam e, sobretudo, a consciência onipresente que nossas cogitações obscurecem. Nossos automatismos de pensamento estão no extremo oposto da consciência plena. Esta consiste em estar perfeitamente atento a tudo que surge em si mesmo e em torno de si, a cada instante, a tudo que vemos, ouvimos e pensamos. A isso se acrescenta uma compreensão da natureza a partir do que nos percebemos, livre das deformações que nossas atrações e rejeições provocam. A consciência plena possui igualmente um componente ético que permite discernir se é ou não benéfico manter esse ou aquele estado de espírito e dar prosseguimento ao que estamos fazendo no momento.
O passado não existe mais, o futuro ainda não surgiu e o presente, paradoxalmente, é ao mesmo tempo inatingível, já que ele não se imobiliza nunca, e imutável – como escrevia um físico célebre, “o presente é a única coisa que não tem fim”. 4 Cultivar a consciência plena do momento presente não significa que não tenhamos de levar em conta as lições do passado, nem fazer projetos para o futuro, mas que devemos viver com lucidez a experiência atual que os engloba.
MEDITAÇÃO I
Observemos que se apresenta à nossa consciência, sem lhe impor o que quer que seja, sem nos deixar atrair ou repelir. Contemplemos o que está presente diante de nós, uma flor, por exemplo, escutemos atentamente os barulhos próximos ou distantes, aspiremos os perfumes e os odores, sintamos a textura daquilo que tocamos, gravemos nossas diversas sensações, percebendo claramente o que as distingue. Estejamos inteiramente presentes ao que fazemos, seja quando estivermos caminhando, assentados, escrevendo, lavando a louça ou tomando uma xícara de chá. Não há mais tarefas “agradáveis” ou “desagradáveis”, pois a consciência plena não depende do que estamos fazendo, mas da maneira como fazemos, a saber com uma presença de espírito clara e tranquila, atenta e maravilhada com a qualidade do momento presente, evitando acrescentar à realidade nossas construções mentais.
Quando efetuamos essa prática, paramos de oscilar intermitentemente entre a atração e a rejeição: estamos simplesmente atentos, lúcidos, conscientes de cada percepção ou sensação, de cada pensamento que surge e desaparece e seguida.
Sintamos o frescor desse momento presente. Ele fará nascer em nós uma experiência vasta, luminosa e serena.
FONTE DE INSPIRAÇÃO
“Quando você ouvir um som durante a meditação, simplesmente preste atenção na experiência de ouvir. Somente nisso, em nada mais […] Nenhum cinema mental. Nenhum conceito. Nenhum diálogo interior. Simplesmente os barulhos. A realidade é de uma elegância simples e sem floreio. Quando ouvir um som, fique atento ao processo de ouvir. Todo o resto é tagarelice a mais. Não dê atenção”.
Bhante Henepola Gunaratna 5
MEDITAÇÃO 2
O caminhar atento
Esse é um método praticado por numerosos meditadores para cultivar a consciência plena. Consiste em andar, concentrando-se totalmente em cada passo. Devemos caminhar de maneira bastante lenta para ficarmos plenamente conscientes de nossos mínimos movimentos, mas não a ponto de perder o equilíbrio.
A cada passo, tomemos consciência de nosso equilíbrio, de como colocamos nosso calcanhar no chão e em seguida todo o pé, e de como o outro pé solta do chão para se pôr um pouco mais à frente. Voltemos nossos olhos para baixo, a alguns passos diante de nós, e aguardemos como principal objeto de concentração a própria mancha. Se não dispusermos de muito espaço, podemos ir e vir marcando uma pausa de alguns instantes cada vez que dermos meia-volta, mas permanecendo na consciência plena dessa suspensão do movimento. Podemos também combinar a marcha atenta com a consciência plena diante de tudo o que encontramos, virmos, ouvirmos e sentirmos, como explicaremos a seguir.
FONTE DE INSPIRAÇÃO
“Caminhar pelo simples prazer de caminhar, segura e livremente, sem se apressar. Estamos presentes a cada passo que damos. Se quisermos falar, paramos de caminhar e damos toda nossa atenção à pessoa que está diante de nós, ao fato de falar e escutar…Paremos, olhemos à nossa volta e vejamos como a vida é bel: as árvores, as nuvens brancas e a infinidade do céu. Escute os pássaros, sinta a leveza da brisa. Caminhemos como seres livres e sintamos nossos passos se tornarem leves à medida que caminhamos. Apreciemos cada passo que dermos.”
Thich Nhat Hanh 6
A CALMA INTERIOR
A meditação tem por objetivo libertar a mente da ignorância e do sofrimento. Como fazer? Não basta deseja-lo. Deve-se aplicar um método sistemático que permita livrar a mente dos véus que a obscurecem. Como é a própria mente que deve se encarregar dessa tarefa, temos de estar certos de que ela é capaz de fazê-lo. Se ela não fica imóvel por um único instante, como poderia se libertar de sua ignorância? A mente é como um macaco preso por numerosos laços que não para de saltar em todos os sentidos para se soltar. Gesticula tanto que impede qualquer pessoa, e a si mesmo, de desfazer um só nó. É preciso começar por acalmá-lo, tornando-o atento. Acalmar o macaco não significa imobilizá-lo, mantendo-o acorrentado. O objetivo é aproveitar essa trégua para lhe devolver a liberdade. Utilizaremos igualmente o controle que acompanha a mente quando ela está calma, atenta, clara e maleável para libertá-la das correntes criadas pelos pensamentos vazios, pelas emoções conflituosas e pela confusão.
Os automatismos de pensamento, alimentados por nossas tendências e hábitos, assim como a distração e as fabricações conceituais que deformam a realidade, são obstáculos para alcançar esse objetivo. É preciso, então, combater essas condições desfavoráveis. Controlar a mente não significa impor-lhe novas restrições, o que a tornaria ainda mais tensa e estreita; é, ao contrário, libertá-la da influência dos condicionamentos mentais e dos conflitos interiores mantidos pelos pensamentos e pelas emoções.
Para reconhecer a verdadeira natureza da mente, é preciso, por conseguintes, tirar os véus criados pelos automatismos de pensamento. Como fazê-lo? Suponhamos que tenhamos deixado cair uma chave no fundo de um lago. Se pegarmos um bastão e remexermos o lodo, a água ficará completamente opaca e não teremos nenhuma chance de achar a chave. Devemos deixar a água decantar até que se torne límpida, só então será fácil distinguir a chave e resgatá-la. Da mesma forma, devemos começar deixando a mente ficar clara, calma e atenta. Em seguida, será possível utilizar essas novas qualidades para cultivar outras, como o amor altruísta, a compaixão, e para adquirir uma visão profunda da natureza e da mente.
Para atingir esse objetivo, todas as escolas de budismo ensinam dois tipos de meditação fundamentais e complementares: a “calma mental”, chamada shamantha em sânscrito, e a “visão penetrante” (vipashyana), da qual falaremos mais tarde. Shamantha é o estado de espírito apaziguado, claro e perfeitamente concentrado em seu objeto. Vipashyana é a visão penetrante da natureza da mente e dos fenômenos, à qual se chaga analisando minuciosamente a consciência, depois recorrendo à prática contemplativa, à experiência interior. Vipashyana permite desmascarar as ilusões e, por conseguinte, não ser mais vítima das emoções perturbadoras. Em resumo, shamantha prepara o terreno fazendo da mente um instrumento manejável, eficaz e preciso, enquanto vipashyana liberta a mente do jugo das aflições e dos véus da ignorância.
Nossa mente é, na maior parte do tempo, instável, caprichosa, desordenada, empatada entre a esperança e o medo, egocêntrica, hesitante, fragmentada, confusa, por vezes até mesmo ausente, enfraquecida pelas contradições internas e pelo sentimento de insegurança. Além disso, ela é rebelde a todo treinamento e encontra-se constantemente ocupada com sua tagarelice interior que mantém um “ruído de fundo” que mal percebemos.
Essa disfunção não é mais que uma produção da própria mente. É lógico, portanto, que ela poderá igualmente combatê-la. Esse é o objetivo da prática de shamatha e de vipashyana.
Resumindo, trata-se de passar, gradualmente, de um estado de espírito submetido às condições desfavoráveis que acabamos de descrever a um outro no qual prevalecem a atenção estável, a paz interior, a capacidade de produzir emoções, a confiança, a coragem, a abertura em direção aos outros, a benevolência e outras qualidades que caracterizam a mente vasta e serena.
Num primeiro momento, a prática de shamatha visa, então, a apaziguar o turbilhão de pensamentos. Para isso, nós aperfeiçoaremos nosso poder de concentração tomando como suporte alguma coisa à qual não damos muita atenção: o vaivém de nossa respiração.
Em tempos normais, com a exceção de estarmos sem fôlego por um esforço qualquer, de prender nossa respiração ou de respirar profundamente para encher nossos pulmões de ar puro, temos apenas uma leve consciência de nossa respiração.
No entanto, respirar é quase sinônimo de vida. Uma vez que respiramos sem parar, peguemos esse ato como suporte de concentração. Teremos um instrumento precioso, pois está sempre disponível; além disso, ele servirá de ponto de referência para julgar nossa distração ou nossa concentração.
Essa prática comporta três etapas indispensáveis:
- Prestar atenção num objetivo escolhido (no caso, a respiração).
- Manter a atenção nesse objeto.
- Estar plenamente consciente do que o caracteriza. 7
MEDITAÇÃO SOBRE VAIVÉM DA RESPIRAÇÃO
Assentemo-nos confortavelmente, se possível adotando a postura em sete pontos descritas antes, ou pelo menos permanecendo eretos numa posição física de equilíbrio. Aqui, a consciência plena consiste em ficarmos continuamente atentos à nossa respiração, sem esquecê-la e sem nos distrair.
Respiremos calma e naturalmente. Concentremos toda nossa atenção na respiração que vai e vem. Prestemos atenção na sensação que cria a passagem do ar pelas narinas, no lugar em que percebemos o ar com mais acuidade. Conforme o caso, será a entrada do nariz, ou um pouco mais no interior, ou ainda mais alto, na curvatura. Notemos igualmente o momento em que a respiração é suspensa, entre a expiração e a inspiração seguinte. Depois, inspirando, concentremo-nos de novo no ponto por onde sentimos o ar passar. Notemos da mesma forma, o momento em que a respiração para um segundo entre essa inspiração e a expiração seguinte.
Concentremo-nos de maneira idêntica no ciclo seguinte, e assim por diante, respiração após respiração, sem nenhuma tensão, mas também sem relaxar a ponto de mergulhar no torpor. A consciência da respiração deve ser límpida e serena. Buda utilizava a imagem da chuva que dissipa as massas de poeira levantadas pelo vento para dar lugar ao céu puro e luminoso. A poeira representa a agitação e a confusão mental, a tempestade benéfica é a concentração sobre a respiração e o ar puro, a calma e a clareza interiores.
Não modifiquemos intencionalmente o ritmo de nossa respiração. Ela ficará, sem dúvida, mais lenta, mas isso deve acontecer naturalmente. Seja a nossa respiração longa ou curta, o importante é estarmos simplesmente conscientes desse fato.
Cedo ou tarde, cairemos na distração acompanhada de uma proliferação de pensamentos ou num estado vago de semissonolência, ou ainda na combinação dos dois, quer dizer, num estado confuso atravessado por uma sequência de pensamentos errantes. É nesse ponto que devemos intervir: quando nos dermos conta de que nossa concentração se perdeu, devemos retomá-la simplesmente, sem agravar isso com remorso ou culpa. Retornemos à respiração, como a borboleta que volta a uma flor após ter voado de um lado para o outro, sem razão aparente.
Quando alguns pensamentos surgem, não tentemos evitá-los – o que não seria possível, pois já estão presentes -, evitemos simplesmente alimentá-los. Deixemos que atravessem o campo de nossa consciência como um pássaro que passa no céu sem deixar rastro.
Às vezes, poderemos também, durante alguns instantes, escolher a própria distração como objeto de concentração. Depois, logo que nossa mente estiver novamente atenta, voltaremos nossa atenção para a respiração.
Se outras sensações físicas aparecerem, por exemplo uma dor por termos ficado muito tempo sentados na mesma posição, não fiquemos irritados, não deixemos que ela nos vença. Devemos incluí-la na consciência plena, depois voltemos á observação da respiração. Se a dor aumentar a ponto de perturbar a meditação, é preferível relaxar um pouco ou, então, praticar a “caminhada consciente”, em seguida retomar a meditação sobre a respiração com uma mente disposta e uma concentração mais viva.
Variante 1
Um método para reavivar a concentração quando ela se torna muito tênue consiste em contar as respirações. Pode-se, por exemplo, contar mentalmente “um” no fim de um ciclo completo de respiração, quer dizer, inspiração e expiração, depois “dois” no fim do ciclo seguinte, e assim por diante, até dez, e recomeçar, então, a partir de “um”. Essa maneira de proceder nos ajuda a manter a atenção. Se preferirmos, podemos também contar “um” no fim da inspiração e “dois” no fim da expiração. Esses métodos e os seguintes podem ser aplicados de vez em quando, conforme a necessidade, mas não é necessário contar as respirações durante todo o tempo da meditação.
Variante 2
Outra maneira de proceder consiste em repetir mentalmente e bem rapidamente1,1,1,1,1,1,1…, durante toda a inspiração, depois, da mesma maneira, 2,2,2,2,2,2,2…, durante a expiração. Para o ciclo seguinte contaremos 3,3,3,3,3,3,3… inspirando e 4,4,4,4,4,4,4… expirando. Prosseguiremos assim até dez, depois começa um novo ciclo. Pode-se, também, contar rapidamente de um a dez durante a inspiração e fazer o mesmo com a expiração. Existem, então, diversas maneiras de contar que encontraremos nos textos mais detalhados citados no fim do livro. Todos têm por objetivo refrescar a concentração quando se cai na sonolência ou na distração.
Variante 3
Em vez de observar unicamente a respiração, podemos nos concentrar nos movimentos de vaivém do abdome ou dos pulmões que acompanham a respiração.
Variante 4
É também possível associar uma frase simples ao vaivém da respiração. Expirando, por exemplo, diremos mentalmente: “Possam todos os seres ser felizes”, e inspirando: “Que todos os seus sofrimentos desapareçam”.
Variante 5
Os que praticam a recitação de mantras podem combinar a recitação silenciosa com a atenção dada à respiração. Se pegarmos como exemplo o mantra “om mani padmé hung”,8 que Buda usava para a compaixão (Avalokiteshvara), recitaremos “om” inspirando, “mani padmé” expirando e “hung” entre os dois.
8.Um mantra não é geralmente construído como uma frase tendo um sentido literal. Aqui “Om” é a sílaba que abre o mantra e lhe confere um poder transformação. “Mani” ou “joyau” refere-se à joia do amor altruísta e da compaixão. “Padmé”, gerúndio de padma ou “lótus”, diz respeito à natureza fundamental da consciência, nossa “bondade original”, que, à maneira de um lótus que cresce imaculado sobre um lodaçal, permanece intacta mesmo quando se encontra no meio dos venenos mentais que fabricamos. “hung” é uma sílaba que confere ao mantra sua força de realização.
Variante 6
Normalmente, não se deve influenciar o vaivém da respiração nem demorar no intervalo entre inspiração e expiração. Mas, nessa variante, concentramo-nos alguns instantes no ponto de suspensão da respiração, quer dizer, no momento em que a respiração desvanece no fim da expiração. É também o ponto em que os pensamentos discursivos estão temporariamente suspensos. Durante esse breve momento, permaneçamos em repouso nesse espaço límpido, serenos e livres de construções mentais. Sem, contudo, querer conceituar essa experiência, devemos reconhecer que ela representa um aspecto fundamental de nossa mente, que está sempre presente por trás da cortina dos pensamentos.
Essas diversas variantes podem ser praticadas como melhor nos convier com o objetivo de melhorar nossa concentração.
A CONCENTRAÇÃO EM UM OBJETO
Há muitas outras formas de cultivar a concentração e a calma mental. Há dois métodos, conforme se recorre ou não a um objeto. Esse objeto pode ser o vaivém da respiração, como acabamos de ver, mas também outras sensações físicas, uma forma exterior ou uma viagem que visualizamos, Podemos escolher um objeto exterior totalmente comum: uma pedra, uma flor ou uma chama de uma vela, por exemplo. Como no caso da respiração, o treinamento consiste me deixar a mente repousar atentamente sobre o objeto desejado, e leva-la de volta a ele, ao percebermos que nos distraímos.
O objeto pode ser uma representação simbólica ou figurativa associada ao caminho espiritual, por exemplo, uma pintura ou uma estátua de Buda. Começaremos concentrando-nos bastante na representação mental desse suporte. Eis aqui, resumidas, as instruções orais dadas por Dilgo Khyentsé Rinpoché sobre esse assunto:
MEDITAÇÃO
Assente-se na postura de sete pontos. Deixe sua mente se acalmar por alguns instantes, depois visualize o Buda Shakyamouni no espaço à sua frente. Está assentado sobre um disco lunar, o qual repousa sobre um lótus e sobre um trono sustentado por oito leões. Seu corpo resplandece como uma montanha de ouro. Com a mão direita, ele toca o chão perto de seu joelho direito, fazendo o gesto de tomar a terra como testemunha. Sua mão esquerda repousa em seu seio, num gesto de serenidade, e segura uma tigela de esmola cheia de néctar. Está vestido com três vestimentas monásticas e do seu corpo emanam infinitos raios de luz de sabedoria e de compaixão que preenchem o universo. Dê vida a essa imagem. Pense que o Buda que você está visualizando não é inerte como um desenho ou uma estátua. Também não é feito de carne e osso: seu corpo é luminoso e transparente como um arco-íris, radiante de sabedoria e compaixão.
Concentre-se inteiramente na visualização, cada detalhe sendo o mais nítido possível. Preste atenção na forma oval perfeita do rosto, nos olhos impregnados de sabedoria e de amor, no nariz e nas orelhas de proporções harmoniosas, no sorriso e nos raios de luz que emanam de seu corpo. Estenda progressivamente sua concentração a todos os detalhes da forma do Buda, de cima para baixo e de baixo para cima, com a minúcia de um pintor.
Para firmar sua concentração, neutralize imediatamente tudo o que possa perturbar sua mente. Se sua mente estiver agitada, se seus pensamentos acelerarem e o impedirem de obter uma imagem clara, abaixe ligeiramente o olhar, que está normalmente fixando o espaço, para se concentrar na parte inferior do Buda: as pernas cruzadas, o trono sustentado pelos leões, ou o assento de lótus. Sua agitação mental diminuirá.
Se sua mente mergulhar no torpor, no relaxamento ou em uma morna indiferença, levante o olhar e concentre-se na parte superior de sua visualização: o rosto de Buda, seus olhos, o ponto entre as sobrancelhas.
Se sua visualização não for clara, tente incansavelmente torná-la mais fina e precisa. Se for clara, concentre-se nela de forma natural, sem tensão.
Quando sua mente se tornar estável e calma, examine-a. Compreenda que a imagem que você visualiza não é o próprio Buda, mas uma projeção de sua mente cujo objetivo é cultivar a concentração. Ainda que a mente tenha a faculdade de se concentrar em um objeto, se você tentar vê-lo como ele é verdadeiramente, não o descobrirá em parte alguma. É impossível localizar a mente, identificar seus contornos, sua cor, sua forma, de onde vem, onde ela está ou para onde vai: você nunca encontrará nada. A mente não é uma identidade autônoma que possa ser identificada como tal.
O mesmo acontece com o corpo. O que chamamos de “corpo” é apenas uma junção de elementos. Qualificamos de “pilha” um amontoado de grãos, de “feixe” tiras de palha amarradas juntas, e de “mutirão” um ajuntamento de pessoas, mas essas designações não se referem a nenhuma entidade que existe em si e por si mesma. Da mesma forma, se você considerar esse conjunto chamado “corpo”, tirando dele a pele, a carne, a medula, os ossos e os diferentes órgãos, nada restará que possamos identificar como corpo.
Na verdade, todos os fenômenos do universo aparecem em sua infinita variedade como o resultado de um concurso temporário de causas e de condições específicas.
Consideramos esses fenômenos como reais porque não os examinamos cuidadosamente. Na realidade, eles são desprovidos de qualquer existência intrínseca.
Quando você sentir claramente que seu corpo, o Buda de sua visualização e todos os fenômenos são uma manifestação da mente e que, por natureza, amente não é uma entidade dotada de existência própria, mas um fluxo dinâmico de experiências, permaneça simplesmente no estado natural da mente desprovido de qualquer artifício. Quando os pensamentos surgirem, tome consciência deles, sem impedi-los nem encorajá-los. È o que chamamos de visão profunda. Deve-se, assim, unir a calma mental, shamatha, e a visão profunda, vipashyana.
A CONCENTRAÇÃO SEM OBJETO
À primeira vista, pode aparecer que a meditação informal e sem objeto seja mais fácil do que a meditação com objeto. Na verdade, é mais difícil manter sua mente clara e concentrada em si mesma num estado de consciência plena do que se concentrar em qualquer coisa. A razão disso é que é difícil “não pensar em nada”.
A concentração em um objeto implica uma certa atividade mental ligada à atenção, e, mesmo sendo difícil manter essa concentração, é mais fácil do que deixar sua mente num estado de perfeita simplicidade, sem nenhuma construção mental. Assim sendo, a concentração sem objeto é o fim natural da concentração com objeto e representa um passo a mais em direção à compreensão da natureza fundamental da mente pela experiência direta.
MEDITAÇÃO
Voltemos nossa mente para o interior e deixemos que ela contemple sua qualidade primeira que é a de simplesmente “conhecer”. Essa faculdade, a consciência plena em estado puro, ilumina todo pensamento e toda percepção. É uma qualidade constante e fundamental do fluxo da consciência. Podemos fazer essa experiência mesmo na ausência de pensamentos e imagens mentais. Tentemos identificar esse aspecto primordial de toda experiência, depois deixemos nossa mente repousar alguns instantes nessa consciência plena não dual, clara, lúcida, desprovida de conceitos e de pensamentos discursivos.
FONTE DE INSPIRAÇÃO
Presença transparente, infinita abertura,
Sem fora nem dentro;
Toda envolvente,
Sem fronteira nem direção.
Imensidão infinita da vista,
Verdadeira condição do espírito,
Tal como o espaço do céu,
Não tem nem centro nem periferia,
Nem referência.
Shabkar
VENCER OBSTÁCULOS
Todo treinamento implica reforços e toda mudança encontra naturalmente resistência. No caso do treinamento da mente e da meditação, diferentes obstáculos podem diminuir o ritmo de nossa progressão. As instruções tradicionais sobre a meditação incluem nesses obstáculos a preguiça, a inércia e seu contrário, a agitação distraída, assim como a falta de perseverança e seu oposto, o esforço excessivo.
A preguiça, que se aproxima da indolência e da falta de motivação, pode tomar várias formas. A preguiça comum é o defeito de todos aqueles que rejeitam qualquer esforço. Seu antídoto consiste em lembrar o valor da existência humana, de cada instante que passa, e em contemplar os benefícios da transformação interior. Essas reflexões permitem reavivar a inspiração e o entusiasmo.
Outra forma de preguiça consiste em pensar: “Isso não é para mi, está além de minha capacidade, prefiro não me comprometer.” Em suma, renuncia-se à corrida antes mesmo de atravessar a linha de partida. Para nos opor a esse obstáculo, estimemos o potencial de transformação que existe em nós e encaremos o sentido da existência sob um ponto de vista mais amplo.
Terceira forma de preguiça: não ter a determinação de realizar, em primeiro lugar, aquilo que se sabe ser o mais importante e, em vez disso, dilapidar seu tempo em atividades menores. Para combater tal atitude, devemos estabelecer uma hierarquia em nossas preocupações, e nos lembrar de que nosso tempo é contado, enquanto nossas atividades comuns não têm mais finalidade do que as ondas no oceano.
A distração é o parasita mais comum da meditação. Qual praticante não foi a vítima dela? Ela é totalmente normal, uma vez que empreendemos essa prática com uma mente indisciplinada e caótica; não podemos esperar que ela se acalme logo de início. Não há, então, nenhuma razão para se desesperar. O objetivo da meditação é exatamente tornar a mente flexível e manejável, concentrada ou descontraída e, sobretudo, livre da influência das aflições mentais e da confusão. O antídoto para as aflições mentais e para a confusão é cultivar a vigilância e, cada vez que percebermos que nossa mente está vagando, trazê-la de volta, incansavelmente, para o objeto da meditação. Lembremo-nos da razão pela qual estamos meditando. Nosso objetivo não é perder tempo deixando vagar os pensamentos, mas utilizar esse tempo da melhor forma para estabelecer as condições de uma verdadeira felicidade partilhada.
A inércia e a agitação são também dois obstáculos maiores que levam a perder o fio da meditação. A inércia prejudica a clareza da mente, e a agitação, sua estabilidade. A primeira pode ir de um simples peso na mente ao sono, passando pela letargia, tédio, devaneio ou qualquer outro estado mental vago e nebuloso.
Essa falta de clareza é um grande obstáculo já que desejamos utilizar a concentração para melhor compreender a natureza da mente. Como explica Bokar Rinpotché, um mestre da meditação contemporânea: “Quando em pleno dia contemplamos o mar, vemos, através da água clara, as pedras e algas do fundo. A meditação deve possuir essa mesma qualidade clara que permite estar plenamente consciente da situação de nossa mente. À noite, entretanto, a superfície das ondas é uma massa escura e opaca que não deixa penetrar o olhar, assim como a mente pesada e sombria, apesar de sua aparência estável, impede de meditar”.9
Para se opor a esse estado, é aconselhável adotar uma postura mais ereta e firme, olhar mais para o alto, para o espaço diante de ti, e usar menos roupas, caso se esteja vestido demais. É preciso estimular sua atenção e das ênfase à consciência plena do momento presente.
A agitação é uma forma de distração hiperativa na qual a mente produz em cadeia pensamentos mantidos pelos automatismos e pela imaginação. Essa agitação febril não cessa de nos afastar de nosso objeto de concentração. Estamos assentados tranquilamente, mas nossa mente dá a volta ao mundo. Nesse caso, relaxemos um pouco nossa postura física, abaixemos o olhar e recobremos nosso sentido lembrando por que estamos ali e qual é o objetivo de nossos esforços.
Todo treinamento requer esforços regulares. A falta de perseverança diminui consideravelmente os efeitos da meditação e enfraquece seu poder de nos transformar. Assim como notamos no início, um grande esforço não tem, às vezes, o mesmo efeito benéfico de um esforço menos espetacular, mas contínuo.
Não bastará para transformar a mente de maneira profunda e duradoura.
E ainda é preciso lutar contra essa fraqueza, refletindo sobre o valor do tempo que passa, sobre a incerteza acerca da duração de nossa vida e sobre os benefícios do treinamento que assumimos.
Podemos, também, cair momentaneamente no excesso contrário, no esforço excessivo, pelo fato de termos combatido a displicência além do necessário. A tensão que resulta desse fato acaba nos desviando da própria meditação. Devemos, então, equilibrar nossos esforços, ou seja, conservar um meio-termo entre tensão e relaxamento, como Buda havia aconselhado ao tocador de vina do qual falamos, e cessar de aplicar um antídoto quando não é mais preciso, deixando a mente repousar calmamente em seu estado natural.
O esforço excessivo pode também vir da impaciência ou da exaltação, dois estados que não levam a nada. Se, para subir uma montanha alta, começaremos a correr, teremos de parar logo, com os pulmões pegando fogo. Da mesma forma, se dobrarmos muito um arco, ele se quebrará, e, se pusermos a comida no fogo muito forte, ela queimará em vez de cozinhar.
Exigir um resultado imediato é próprio do capricho ou da preguiça. O Dalai Lama diz com humor: “No Ocidente, as pessoas são, por vezes, muito apressadas. Elas gostariam de atingir o Despertar de maneira rápida e fácil e, se possível, sem grande custo1”. Da mesma forma que é preciso paciência para chegar à colheita – de nada serve forçar a muda para fazê-la crescer mais depressa! -, a constância é indispensável para a prática da meditação.
Os textos de meditação ensinam nove métodos para cultivar a atenção, estabelecer a serenidade mental e tornar a mente mais estável. Lembremos que, nesse caso, a consciência plena consiste em que se permaneça continuamente atento ao objetivo de concentração escolhido.
- Concentrar a mente, ainda que de maneira breve no início, num objeto, conforme as instruções, evitando que ela se deixe levar pelas imagens ou pelos pensamentos discursivos.
- Situar a mente continuamente sobre esse objeto, durante um período de tempo maior, sem se distrair. Para consegui-lo, temos de nos lembrar claramente dos ensinamentos de como manter concentrada no seu suporte, guardá-los na memória e colocá-los em pratica com cuidado.
- Trazer a mente de volta ao seu objeto cada vez que percebermos que a distração a afastou dele. Para isso, temos de reconhecer que a mente esteve distraída, identificar a emoção ou o pensamento que provocou essa distração e utilizar o antídoto apropriado. Pouco a pouco, tornamo-nos capazes de mantê-la calma e estável durante longos períodos de tempo, tendo uma concentração mais clara.
- Situar a mente com cuidado: quanto mais firme é a mente, mais ela é concentrada, mais tendência temos para meditar. Mesmo se a atenção ainda não for perfeita, conseguiremos não perder mais completamente o suporte da meditação e nos livrarmos das formas mais perturbadoras da agitação mental.
- Controlar a mente: quando a concentração mergulha no torpor, reavivamos a acuidade, a clareza da presença atenta e renovamos a inspiração e o entusiasmo considerando os benefícios da concentração perfeita (samadhi).
- Acalmar a mente: quando a acuidade se torna muito restritiva e a concentração é abalada pela agitação mental sutil que toma a forma de uma pequena conversação discreta por trás da atenção, o fato de se considerarem os perigos da agitação e da distração acalma a mente, tornando-a clara e límpida, à imagem de um som puro emitido por um instrumento de música bem afinado.
- Pacificar completamente a mente recorrendo à atenção sustentada e entusiasta a fim de abandonar todo apego às experiências meditativas. Estas podem revestir vários aspectos, tais como a felicidade, a clareza ou a ausência de pensamentos discursivos, e se manifestar também por movimentos espontâneos de alegria e de tristeza, de confiança inabalável ou de medo, de exaltação ou de desânimo, de certeza ou de dúvida, de renúncia às coisas deste mundo ou de paixão, de devoção intensa ou de vistas negativas. Todas essas experiências podem surgir sem razão aparente. Elas são o sinal de que mudanças profundas estão acontecendo em nossa mente. Precisamos evitar nos identificar com essas experiências e não lhes dar mais importância do que às paisagens que vemos desfilar pela janela de um trem.
Graças à atenção perfeitamente pacificada, essas experiências esmaecerão por si mesmas sem perturbar a mente, e esta conhecerá, então uma profunda paz interior.
- Manter a atenção concentrada em um ponto: depois de eliminar a inércia e a agitação mental, manter a atenção estável e clara em um ponto durante uma sessão de meditação. A mente é como uma lâmpada protegida do vento cuja chama, estável e luminosa, clareia com o máximo de sua capacidade. Basta um mínimo esforço para estabelecer a mente no fluxo da concentração em que ela se mantém, em seguida, sem dificuldade, permanecendo em seu estado natural, livre de restrições e perturbações.
- Repousar num estado de perfeito equilíbrio: quando a mente está plenamente familiarizada com a concentração em um único ponto, ela permanece num estado de serenidade que acontece espontaneamente e se perpetua sem esforço.
A PROGRESSÃO DA CALMA
Gradualmente, a mente se acalma. Entretanto, no início, acontece exatamente o contrário. Quando tentamos acalmar a mente, temos a impressão de ter mais pensamentos do que antes. Na verdade, não foi o seu número que aumentou, nós é que, de repente, tomamos consciência de sua proliferação. Mencionamos que não é possível nem desejável bloquear os pensamentos. É importante, contudo, controlar seu processo se quisermos eliminar as causas do sofrimento e permitir o desabrochar da felicidade autêntica. Os automatismos do pensamento só reforçam nossa dependência em relação às causas do sofrimento, enquanto a meditação regular, longe de criar uma espécie de entorpecimento ou de abolir qualquer espontaneidade, conduz à liberdade que acompanha o controle da mente e a paz interior. Os textos budistas ilustram a pacificação do turbilhão de pensamentos através da metáfora de uma cascata ruidosa que aos poucos se acalma, à medida que percorre a planície, para encontrar, finalmente, o vasto oceano. Essa progressão da meditação comporta cinco etapas e é ilustrada por cinco imagens:
- a cascata que se joga de uma falésia: os pensamentos se encadeiam sem descontinuidade; eles parecem mais numerosos porque tomamos consciência dos movimentos da mente;
- a torrente que despenca dos desfiladeiros: a mente alterna períodos de repouso e de atividade;
- o largo rio corre sem dificuldade: a mente se agita quando é perturbada pelos acontecimentos, caso contrário, permanece calma;
- o lago agitado por algumas ondas: a mente é suavemente agitada na superfície, mas permanece calma e presente em profundidade;
- o oceano calmo: a concentração inabalável e sem esforço não precisa mais recorrer aos antídotos contra os pensamentos errantes.
Uma tal progressão não se realiza em um dia, nem mesmo em algumas semanas, porém, mais cedo ou mais tarde, chega o momento em que se constata um real progresso. Sabemos que são necessários tempo e perseverança para dominar uma arte, um esporte, uma língua ou qualquer outra disciplina. Por que seria diferente com o treinamento da mente? A aventura vale a pena: não se trata de adquirir uma aptidão comum, mas um domínio e uma maneira de ser que determinarão a qualidade de nossa vida inteira.
FONTE DE INSPIRAÇÃO
No início, nada vem,
No meio, nada resta,
No final, nada parte.
Milarépa
MEDITAÇÃO SOBRE O AMOR ALTRUÍSTA
Todos Nós tivemos, em graus diferentes, a experiência de um profundo amor altruísta, de uma grande benevolência, de uma compaixão intensa pelos que sofrem. Certos seres são mais altruístas que outros, chegando às vezes ao heroísmo. Outros são mais fechados em si mesmos, têm dificuldade de considerar o bem do outro como um objetivo essencial, e ainda mais em deixá-lo passar na frente de seu interesse pessoal. Entretanto, é indispensável cultivar o altruísmo, pois ele nos permite não somente fazer o bem aos outros, mas também representa para nós mesmos a maneira de ser mais satisfatória possível. O sentimento exacerbado da importância de si mesmo só casa tormento.
De maneira geral, ainda que os pensamentos altruístas surjam em nossa mente, são rapidamente substituídos por outros, menos nobres, como a cólera e o ciúme. Por isso, se quisermos que o altruísmo predomine em nós, temos de levar algum tempo cultivando-o, pois, também nesse caso, um simples desejo não basta.
Meditar, como vimos, é familiarizar-se com uma nova maneira de ser. Como vamos meditar sobre o altruísmo? Precisamos, antes de tudo, tomar consciência de que, no mais profundo de nós, tememos o sofrimento e aspiramos à felicidade. Uma vez reconhecida essa aspiração, temos de nos conscientizar do fato de que todos os seres compartilham esse sentimento. E que o direito de não sofrer, tão frequentemente vilipendiado, é sem dúvida o direito mais fundamental entre os seres vivos. Enfim, devemos pensar que existe um remédio para esse sofrimento. É possível sentir de maneira mas positiva as dores físicas – com as quais todos nós somos inexoravelmente confrontados – para que tenhamos menos sofrimentos morais. Estes últimos podem ser gradualmente eliminados.
Infelizmente, quando se trata de escolher os meios de fundamentar a felicidade e de prevenir o sofrimento, somos muito inábeis, quando não nos enganamos totalmente. Alguns caem nas mais profundas aberrações e procuram cegamente sua felicidade provocando o sofrimento alheio. Seria absurdo desejar a um ditador sanguinário ter sucesso em seus funestos empreendimentos em nome de um altruísmo mal compreendido. Em contraposição podemos certamente desejar que ele se liberte do ódio que o incita a prejudicar os outros e a construir acessoriamente sua própria infelicidade. Trata-se aqui de um altruísmo bem compreendido, pois esta última aspiração vida realmente ao bem de todos os seres. Desejemos, sem reserva, que cada um dos seres sensíveis se liberte das causas do sofrimento. Com essa intenção, os textos budistas aconselham cultivar quatro pensamentos ou atitudes particulares, e ampliá-los sem limites. Trata-se do amor altruísta, da compaixão, da alegria diante da felicidade do outro e da imparcialidade.
MEDITAÇÃO
O amor altruísta
Imaginemos uma criança que se apaixona de nós e nos olha feliz, confiante e cheia de inocência. Acariciamos sua cabeça contemplando-a com ternura e a pegamos no colo, enquanto sentimos um amor e uma benevolência incondicionais. Deixemos nos impregnar desse amor que só quer o bem dessa criança. Permaneçamos por alguns instantes na consciência plena desse amor, sem nenhum outro pensamento.
Podemos também escolher qualquer outra pessoa pela qual temos grande ternura e um profundo reconhecimento, nossa mãe, por exemplo. Desejemos com toda nossa força que ela encontre a felicidade e as causas da felicidade, depois estendamos esse pensamento a todos que nos são próximos, depois àqueles que conhecemos menos, em seguida, progressivamente, a todos os seres. Enfim, desejemos o mesmo a nossos inimigos pessoais e aos inimigos de toda a humanidade. Neste último caso, não quer dizer, evidentemente, que lhes desejamos sucesso em seus projetos funestos. Desejamos que eles abandonem seu ódio, sua avidez, sua crueldade ou sua indiferença, e que a benevolência e a preocupação com a felicidade do outro nasçam em sua mente. Quanto mais grave é a doença, mais o doente precisa de cuidados, de atenção e de boa vontade.
Abracemos assim a totalidade dos seres num sentimento de amor ilimitado.
A compaixão
Imaginemos agora que um ser que amamos é vítima de um acidente, à noite, na estrada. Ele está ensanguentado no acostamento, entregue a dores atrozes. O socorro tarda a chegar e não sabemos o que fazer. Sentimos intensamente o sofrimento dessa pessoa próxima como se fosse nosso, misturado a um sentimento crescente de angústia e de impotência. Essa dor nos atinge no âmago, a ponto de se tornar quase insuportável. O que fazer?
Nesse momento, deixemo-nos levar por um imenso sentimento de amor por essa pessoa. Nós a tomamos em nossos braços. Imaginemos que ondas de amor emanam de nós e se derramam sobre ela. Imaginemos que cada átomo de sofrimento é substituído por um átomo de amor. Desejemos do fundo do coração que ela sobreviva, que se cure e pare de sofrer.
Esse sentimento de compaixão provém da mesma fonte de amor altruísta e não é mais do que o amor aplicado ao sofrimento.
Em seguida, estendamos essa compaixão a outras pessoas que nos são caras, depois, pouco a pouco, ao conjunto dos seres, formulando do fundo do coração esse desejo: “que todos os seres possam se libertar do sofrimento e das causas de seus sofrimentos”.
O júbilo
Há também, neste mundo, pessoas que possuem imensas qualidades, outras que enchem a humanidade de benefícios e cujos projetos foram coroados de sucesso.
Outros realizaram seus desejos a custo de grande esforço e de uma perseverança tenaz, e outros ainda possuem múltiplos talentos.
Alegremo-nos do fundo do coração com suas realizações, desejemos que suas qualidades não declinem, ao contrário, só aumentem. Essa faculdade de se sentir feliz com os aspectos positivos do outro é o melhor antídoto contra o desânimo e a visão sombria e desesperada do mundo e dos seres. É também o remédio para a inveja e o ciúme, sentimentos que refletem uma incapacidade de alegrar-se com a felicidade do outro.
A imparcialidade
A imparcialidade é um componente essencial das três meditações precedentes, pois o desejo de que todos os seres se libertem do sofrimento e de suas causas deve ser universal e não depender nem dos nossos interesses pessoais nem da maneira como os outros nos tratam. Adotemos o olhar do médico que fica contente em ver os outros com boa saúde e que se preocupa com a cura dos doentes, não importa quem sejam.
Tomemos consciência do fato de que todos os seres, sem exceção, sejam eles próximos, estranhos ou inimigos, desejam evitar o sofrimento.
Pensemos igualmente na interdependência fundamental de todos os fenômenos do universo e de todos os seres que o povoam. A interdependência é o próprio fundamento do altruísmo. À imagem do sol, que brilha de maneira igual sobre os bons e os maus, sobre uma bela paisagem como sobre um monte de lixo, façamos o melhor que pudermos para estender a todos os seres, sem distinção, o amor altruísta, a compaixão e a alegria que cultivamos nas três meditações precedentes.
Lembremos uma vez mais que, no caso de nossos adversários e dos inimigos da humanidade inteira, não se trata de encorajá-los nem de tolerar passivamente sua atitude e seus atos nocivos, mas de considera-los como seres muito doentes, ou como loucos. E, com a mesma benevolência que temos para com os nossos próximos, desejemos que os sentimentos perniciosos que os dominam sejam erradicados de sua consciência.
Como combinar essas quatro meditações
Comecemos pelo amor altruísta, o desejo ardente de que os seres encontrem a felicidade e as causas da felicidade. Se, no fim de um certo tempo, esse amor derivar para o apego egocêntrico, passemos a meditar sobre a imparcialidade, a fim de estender nosso amor e nossa compaixão a todos os seres – próximos, desconhecidos ou inimigos – de maneira igual.
Se nossa imparcialidade se transformar em indiferença, devemos pensar naqueles que sofrem e sentir intensa compaixão, fazendo votos de consolar esses seres de todos os seus sofrimentos, Pode acontecer, contudo, que, por vermos continuamente os males dos outros, sejamos dominados por um sentimento de impotência e de prostração, até mesmo de desespero, a ponto de nos sentir sufocados pela imensidão da tarefa, perdendo assim a coragem.
Meditemos, então, sobre a alegria diante da felicidade do outro pensando naqueles que possuem grandes qualidade humanas, naqueles cujas aspirações altruístas são coroadas de sucesso, naqueles que conhecem profundas satisfações na existência, e alegremo-nos plenamente.
Se essa alegria se transformar em euforia cega e em distração, passemos novamente ao amor altruísta, e assim por diante. Dessa maneira, desenvolvemos esses quatro pensamentos, um de cada vez, evitando cair em seus possíveis desvios.
No fim de nossa meditação, contemplemos durante alguns instantes a interdependência de todas as coisas. Assim como um pássaro precisa de duas asas para voar, devemos desenvolver simultaneamente a sabedoria e a compaixão. A sabedoria corresponde aqui uma melhor compreensão da realidade, e a compaixão ao desejo de que os seres se libertem das causas do sofrimento.
FONTE DE INSPIRAÇÃO
“O amor altruísta é o sentimento espontâneo de estar ligado a todos os outros seres. O que você sente, eu também sinto. O que eu sinto, você sente. Não há diferença entre nós […] Quando comecei a praticar a meditação da compaixão, observei que minha sensação de isolamento começou a atenuar-se, ao mesmo tempo que sentia, de mais a mais, uma impressão de força. Onde antes só via problemas, passei a enxergar apenas soluções. Eu que considerava minha felicidade mais importante que a dos outros, comecei a perceber o bem-estar alheio como o próprio fundamento de minha paz interior.”
Yongey Mingyour Rinpotché 10
“Não paro de repetir essa experiência interior: não há nenhum elo de causalidade entre o comportamento das pessoas e o amor que sentimos por elas.
O amor ao próximo é como uma oração elementar que nos ajuda a viver”. 11
Etty Hillesum
Possa eu ser o protetor dos seres sem proteção
E o guia daqueles que estão na estrada,
A balsa, o navio e a ponte daqueles que querem
[chegar à outra margem!
Possa ser uma ilha para os que procuram uma ilha,
Uma lâmpada para os que querem a luz,
Um abrigo para os que querem um abrigo
E um servo de todos que procuram um servo!
Possa eu ser para todos o cristal mágico, o jarro
[de água encantado,
A fórmula de ciência e a panaceia,
A árvore que engloba todos os desejos
E a vaca de teta inesgotável!
Como a terra e os outros elementos,
Possa eu continuar, na escala do espaço,
A ser a fonte que supre as múltiplas necessidades
Da multidão insondável dos seres!
Possa eu assim prover as necessidades dos seres
Até o fim do espaço, em todo lugar, em todo tempo,
Até que todos atinjam o nirvana!
Shantidéva 12
Enquanto durar o espaço,
Enquanto houver seres,
Possa eu também permanecer
Para dissipar o sofrimento do mundo.
Shantidéva 13
UMA SUBLIME TROCA
Um profundo sofrimento pode, por vezes, despertar nossa mente e nosso coração, abrindo-os aos outros. Para que essa abertura se torne um estado permanente, existe uma prática particular que consiste em trocar mentalmente, por meio da respiração, o sofrimento do outro pela nossa felicidade, e desejar que nosso sofrimento seja substituído pelo dos outros.
Podemos achar que já temos problemas suficientes e que seria pedir demais aumentar nosso fardo, tomando para nós o sofrimento dos outros. No entanto, acontece o contrário. A experiência mostra que, quando assumimos, transformamos e diluímos mentalmente o sofrimento dos outros pela compaixão, nosso sofrimento, em vez de aumentar, diminui. A razão é que o amor altruísta e a compaixão são os antídotos mais poderosos para nossos próprios tormentos. Trata-se, então, de uma situação em que todos são ganhadores! Por outro lado, a contemplação egocêntrica de nossas próprias dores, reforçada pelo eterno estribilho “eu, eu, eu” que ressoa em nós, mina nossa coragem e só aumenta nossa desgraça. Quebrando a carapaça do centrismo, a contemplação altruísta do sofrimento dos outros multiplica por dez nossa coragem.
Essa prática da troca é um meio particularmente eficaz de desenvolver o altruísmo e a compaixão pela meditação. Quando nos confrontamos com o sofrimento dos outros, seremos naturalmente compassivos, socorrendo-os.
MEDITAÇÃO
Comecemos sentindo um forte amor altruísta em relação a uma pessoa que foi muito boa para nós, nossa mãe, por exemplo. Vamos refletir sobre sua bondade: ela nos deu a vida após ter vivenciado as dificuldades da gravidez e as dores do parto; à medida que crescemos, tomou conta de nós sem medir esforços e, com nossa felicidade prevalecendo sobre a sua, esteve sempre pronta a sacrificar tudo por nós.
Para que surja em nós uma forte compaixão, imaginemos que nossa mãe enfrenta intensos sofrimentos, encontra-se privada de tudo, que morre de fome e sede e que é maltratada por seres ruins. Podemos imaginar ainda outras situações dolorosas com as quais ela é confrontada, ele ou qualquer outra pessoas que escolhemos como objeto de meditação: uma criança, um amigo fiel, um animal que nos é caro.
Enquanto somos invadidos por um sentimento de empatia dolorosa, quase intolerável, diante do sofrimento desse ser, deixemos surgir em nós um forte sentimento de compaixão. Depois, quando essa compaixão tiver dominado nossa mente, devemos estendê-la a todos os seres, pensando que eles também têm direito ao mesmo amor.
Imaginemos, da mesma forma, uma gazela perseguida por caçadores e sua matilha. Acuada, entregue ao pânico, salta de uma falésia e quebra os ossos. Os caçadores a encontram moribunda e a matam com sua faca.
Deixemos todas as espécies de sofrimento se desenhar, com precisão gráfica, em nossa mente. Pensemos em idosos ou doentes entregues aos tormentos da doença, pobres que têm o mínimo para sobreviver. Pensemos naqueles que são privados de tudo, assim como nos que são vítimas de sua própria mente e sofrem até a loucura com as angústias provocadas por seus desejos ou seu ódio.
Não deixemos de incluir nesse amor e nessa compaixão todos aqueles que consideramos inimigos e fomentadores de problemas. Visualizemos diante de nós todos os seres reunidos numa imensa multidão, e lembremos que, como nós, eles sofrem de diversas maneiras no ciclo infinito das existências.
Ao experimentarmos um intenso sentimento de compaixão, comecemos a prática da troca. Pensemos que, no momento em que expiramos, juntamente com nossa respiração, enviamos àqueles que sofrem toda nossa felicidade, vitalidade, boa sorte, nossa saúde etc., sob a forma de um néctar branco, refrescante e luminoso. Desejemos que recebam esses benefícios sem nenhuma reserva e acreditemos que o néctar supra todas as suas necessidades. Se sua vida estiver em perigo, imaginemos que ela se prolongue; se forem pobres que obtenham tudo que necessitam; se estiverem doentes, que se curem; se forem infelizes, que encontrem a felicidade.
Ao inspirarmos, imaginemos que tomamos para nós, sob a forma de uma massa escura, todas as doenças, todos os problemas físicos e mentais, assim como as emoções perturbadoras desses seres, e que essa troca alivie seus tormentos. Imaginemos que seus sofrimentos nos cheguem como uma bruma levada pelo vento.
Quando tivermos absorvido, transformado e eliminado todos esses males, sentiremos uma grande alegria que misturaremos com a experiência do não apego.
Reiteremos essa prática muitas vezes até que se torne uma segunda natureza. Nunca acreditemos que já fizemos o suficiente para os que sofrem.
Podemos aplicar esse método a qualquer momento e em toda circunstância, em particular quando nós mesmos estivermos sofrendo. Nesse último caso, o fato de associar o altruísmo e a compaixão às nossas próprias dores age como um bálsamo apaziguador e nos abre para os outros em vez de nos fechar ainda mais no egocentrismo. Podemos fazer esse exercício fora das sessões de meditação ou integrá-lo à nossa prática meditativa, aplicando-o em todas as atividades da vida cotidiana.
Variante 1
Quando expirarmos, imaginemos que nosso coração é uma esfera brilhante e luminosa de onde emanam raios de luz branca trazendo felicidade para todos os seres, em todas as direções.
Quando inspirarmos, tomemos para nós seus tormentos sob a forma de uma nuvem densa e sombria que penetra em nosso coração e se dissolve na luz branca sem deixar nenhum traço.
Variante 2
Imaginemos que nosso corpo se multiplica numa infinidade de formas que vão até os confins do universo, assumindo os sofrimentos de todos os seres que elas encontram, oferecendo-lhes nossa felicidade; que nosso corpo se transforma em roupas para os que têm frio, em alimento para os famintos e em refúgio para os sem-teto; que nos tornamos “a pedra preciosa que nos concede todos os desejos”, um pouco maior do que nosso corpo e resplandecente, de um magnífico azul-safira, que supre naturalmente as necessidades daqueles que lhe dirigem preces.
Essa prática permite associar nossa respiração ao desenvolvimento da compaixão.
Muito simples, pode ser utilizada a qualquer momento da vida cotidiana, quando estivermos assentados em um trem, parados numa fila de espera ou num engarrafamento, ou quando gozarmos de um momento de descanso em nossas atividades diárias.
Trecho do livro ”A arte de Meditar”