A Boa Notícia Sobre o Sofrimento: Quatro Perguntas sobre as Quatro Nobres Verdades para Yongey Mingyur Rinpoche

por Chen Zhijun – Buddhistdoor Global | 04/10/2018

Tradução: Claudia Roquette-Pinto – Revisão: Luís Fernando Machado

Yongey Mingyur Rinpoche é um professor venerado, um mestre das linhagens Karma Kagyu e Nyingma do Budismo Tibetano. É conhecido por sua habilidade em apresentar a prática de meditação de um modo simples e acessível, relacionando-a tanto à sua experiência pessoal quanto às modernas pesquisas científicas.

Rinpoche é o fundador da Comunidade Tergar de Meditação, que possui centros e grupos de prática ao redor do planeta, além de figurar entre os autores de livros mais vendidos, como “Alegria de Viver: Descobrindo os Segredos da Felicidade” (2007), “Alegre Sabedoria: Abraçando Mudanças e Encontrando a Liberdade” (2009), e “Transformando Confusão em Clareza: Um Guia para as Práticas Preliminares do Budismo Tibetano” (2014).

Buddhistdoor Global: O senhor vai apresentar uma palestra sobre As Quatro Nobres Verdades em Hong Kong, no mês de Outubro. Ela vai abordar o sofrimento, não é mesmo? Por que os Budistas estão sempre reclamando que a vida é sofrimento?

Yongey Mingyur Rinpoche: Algumas pessoas pensam que As Quatro Nobres Verdades tratam apenas do sofrimento. Na realidade, elas não abordam exclusivamente o sofrimento. O início – ou a Primeira das Quatro Nobres Verdades – é, de fato, a respeito do sofrimento. Ou seja, a respeito da realidade. Se não compreendemos a realidade, na verdade sofremos mais ainda.

Tenho um amigo que costumava sentir que estivera sofrendo durante toda a vida, embora tivesse uma boa carreira, houvesse conquistado algumas realizações e tivesse até mesmo alcançado o cargo de Diretor Executivo. Um belo dia, ele foi a uma livraria e pegou um livro. Logo no alto da primeira página estava escrito: “A vida é sofrimento”. O meu amigo ficou tão feliz!

Ele descobriu que não estava sozinho: “Não admira que eu me sinta assim!”, pensou.

Algum tempo depois, ele foi se aprofundando mais e mais nas Quatro Nobres Verdades e acabou compreendendo que, na realidade, a vida não se resume ao sofrimento. O sofrimento se encontra apenas no nível mais superficial. O nível mais profundo vai além do sofrimento. Nós descobrimos que existem qualidades admiráveis dentro de nós, que possuímos esta incrível natureza verdadeira.

Sendo assim, não é verdade que os Budistas só falem em sofrimento. Quando sentimos que a vida se resume a sofrimento, viver pode se tornar algo assustador e deprimente. E não é isso o que acontece.

Na realidade, reconhecer o sofrimento é o primeiro passo para nos tornarmos livres dele. Existe tanto mais a se descobrir! A consciência plena e a sabedoria são livres de sofrimento. O amor e a compaixão genuínos, a clareza, a abertura, a amplitude… todas essas qualidades básicas encontram-se além do sofrimento. E nós nem sequer dependemos das circunstâncias externas para nos conectarmos com elas.

Então, a verdade sobre o sofrimento é uma boa notícia, que pode nos levar à liberação. É só que, às vezes, as boas notícias começam com uma notícia ruim.

BDG: Mas eu não estou sofrendo. Tenho uma família feliz, um bom emprego e bons amigos. Tudo está indo bem. Por que eu iria querer ouvir falar de sofrimento?

YMR: Algumas pessoas talvez pensem e se sintam assim. Mas o fato é que existem muitos níveis diferentes de sofrimento. Sofrimento é a tradução de uma palavra em Sânscrito, dukkha. O significado de dukkha está mais próximo de insatisfação”  – você não se sente satisfeito, não consegue apreciar o que possui, está sempre precisando de mais, mais, mais. É um sentimento de estar incompleto, a sensação de que alguma coisa está faltando. Quando você ouve a palavra “sofrimento”, provavelmente vai associá-la à dor, obstáculos, problemas e à ideia de passar por grandes dificuldades. Mas o verdadeiro sentido desta palavra está mais próximo de uma insatisfação, uma sensação de se sentir incompleto.

Se você sente que a vida é boa, ótimo. Mas você pode se desenvolver muito mais, amadurecer muito mais e descobrir muito mais. Existem coisas realmente magníficas a seu respeito, das quais nem você mesmo desconfia. E você pode descobrir estas qualidades dentro de si, através da prática das Quatro Nobres Verdades.

Outra maneira de responder à essa pergunta é: aparentemente, julgamos que a vida é boa, mas pode ser apenas porque desconhecemos o problema. O que costumamos fazer se assemelha a tomar um veneno adocicado. O veneno pode ser bastante doce, mas, eventualmente, nós vamos acabar nos prejudicando. O que nós queremos é parar de tomar este doce veneno. A liberação nasce do conhecimento das Quatro Nobres Verdades.

Além disso, é importante reconhecer que é a nossa mente quem rotula o que é sofrimento e o que não é. Não existe uma única coisa sobre a qual todo mundo concorde que seja sofrimento ou que seja ruim. Tudo depende da pessoa. Não conseguimos encontrar um único objeto que todas as pessoas considerem bom, nem tampouco um objeto que todas considerem ruim.

Quando eu era mais jovem, costumava sofrer de ataques de pânico. No início, eu odiava o pânico. Mas depois, comecei a tentar fazer amizade com ele. Primeiro, eu aceitei o pânico. Então, para podermos realmente fazer amizade com ele, precisamos conhecer a técnica e a habilidade para transformar o pânico em uma causa de felicidade. Eu aprendi como fazer isso e, no fim, não me incomodava mais com ele. Quando o pânico chegava, era algo bastante empolgante e eu não me sentia mais mal. O pânico se tornou meu amigo e professor. Aprendi um bocado com o meu pânico. E penso que isto é o que acontece com todas as situações.

BDG: Eu gosto de meditação – ao menos, da ideia de meditar. Será que eu não posso praticar meditação sem contemplar o sofrimento?

YMR: Sim. Se você deseja meditar apenas para adquirir uma paz e uma calma temporárias, a meditação ajuda. É melhor do que tomar café ou ganhar na loteria; é algo muito bom. Mas, se você quer encontrar felicidade, clareza e liberdade incondicionais, você precisa ir mais fundo. Apenas a meditação simples não vai ser o bastante.

BDG: OK, Rinpoche, por favor, simplifique para mim: diga-me três coisas boas a respeito do sofrimento.

YMR: Primeiramente, o sofrimento, os erros e os obstáculos são muito bons para a nossa vida, porque nós podemos aprender com eles. É por isso que costumamos dizer que, se não existirem obstáculos nem erros, não vai haver sucesso. É claro que ficar repetindo os mesmos erros, outra e outra vez, também significa que não vai haver sucesso. Cada um de nós possui um grande potencial, poder e capacidades em nosso interior, mas estas qualidades, no momento, estão adormecidas. Então, o que dispara todo este nosso potencial interior? Os problemas. Quando você tem um problema e você realmente se esforça em buscar uma solução, descobre seu poder interior e as suas capacidades. Assim, através do sofrimento, você pode realmente crescer.

Em segundo lugar, reconhecer o sofrimento enquanto tal é a porta de acesso para a extinção do sofrimento. Por que razão? Porque, ao familiarizar-se com o sofrimento, ao olhar para ele, observa-lo e trazer sua atenção plena até ele, você não vai conseguir encontra-lo. Eventualmente, você aprende que o sofrimento é aquilo que você mesmo criou. É como se você criasse a sua própria prisão e depois se colocasse dentro dela. Por este motivo, o sofrimento – o mero reconhecimento dele – nos leva à liberação do sofrimento.

E, terceiro, para o meditador e praticante, o sofrimento é um ótimo suporte para a consciência plena, a compaixão e a sabedoria. O sofrimento pode se transformar no caminho – o caminho da liberdade, o caminho da liberação.

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