A Compreensão Correta
A compreensão correta é o primeiro e mais importante passo na Nobre Senda Óctupla. Somos educados e acostumados a compreender as coisas dualisticamente; assim, é muito difícil transcendermos o conceito dualístico para compreendê-las em sua totalidade ou em sua unicidade. A compreensão correta é a compreensão das coisas tais como elas são, sem nenhuma comparação. É um modo de vê-las como uma totalidade única.
Julgamos as coisas através da comparação e dizemos que isso é bom ou mau, certo e errado, bonito ou feio. Julgamos as coisas de acordo com o nosso gosto e a nossa conveniência. E também as julgamos de acordo com o nosso próprio padrão e dizemos que alguém é civilizado, incivilizado ou selvagem. Comparar e julgar através da divisão é uma característica do mundo ocidental, que se baseia no conceito dualístico de criador e criatura, Deus e homem, recompensa e castigo, certo e errado, conquistador e conquistado, etc. Talvez este seja um desenvolvimento do conceito judaico-cristão de dualismo entre criador e criatura.
De acordo com este modo de pensar e compreender, tudo deve ser julgado como certo ou errado, isto ou aquilo. Esta é a filosofia do “ou/ou”, a cultura da moralidade. Nesta filosofia, tudo é conflito e competição. Por isso, vencer é importante. Se você não vencer você perde. Num mundo assim, a coexistência ou a unidade é muito difícil. Assim, se a esposa está certa, o marido há de estar errado. É preciso que haja democracia, senão haverá comunismo. Ou fulano é amigo ou inimigo. Se uma pessoa acredita numa certa fé, então ela tenta converter os outros porque pensa que sua fé é a melhor e a dos outros é errada ou inferior. A idéia de “eu estou certo e ele está errado” nos torna agressivos e críticos, e transforma-se em presunção e autoglorificação. Por outro lado, a pessoa se torna pessimista e tem uma atitude derrotista quando diz “eles são ricos, mas eu sou pobre” ou “ela é bonita, mas eu não sou”.Num mundo assim, sempre haverá competição, conflito, medo e todos os tipos de complexos.
A compreensão correta não é a comparação. Ela vai além dos valores relativos. Ela transcende a comparação dualística. Compreensão correta quer dizer reconhecer a singularidade de cada coisa, compreender as coisas tais como elas são. No budismo, a palavra Nyorai (tathagata) é usada como um título, assim como a palavra Buda; por exemplo, Amida-Nyorai, Shaka-Nyorai, Yakushi-Nyirai, Dainichi-Nyorai. Nyorai significa “que se mostra tal como é”, “que surge em sua essência” ou “que é aquilo que é”. Uma conhecida citação diz que “As flores são vermelhas e as folhas são verdes”. É exatamente assim. O Amida-sutra descreve que “a cor vermelha tem luz vermelha, a cor branca tem luz branca”. Homem é homem e mulher é mulher, e ambos são bons na medida em que não podem ser mudados. Capitalismo, comunismo e democracia – cada um tem seu lugar de acordo com a época, o local e as condições. Possuímos todos estes elementos dentro de nós, e não podemos ser puramente democráticos ou comunistas. Não é o comunismo ou a democracia que são bons ou maus; o que é mau é o egoísmo e o espírito de dominar os outros.
Na medida em que existe o errado em contraposição ao certo, este certo não é o correto. O correto está além do “certo e errado”. O bom está além do “bem e mal”. A verdadeira beleza transcende a comparação entre “belo e feio”. Compreender uma criança como uma criança; compreender um adulto como ele ou ela é. Deste modo, muitos problemas podem ser resolvidos. Um piano é um piano, um violino é um violino, uma flauta é uma flauta, um tambor é um tambor. Todos são únicos e independentes, mas, quando tocados em conjunto, uma sinfonia é criada. As folhas são folhas e são verdes; as flores são flores e são vermelhas. Assim, você é e deve ser o melhor que lhe é possível ser. Você não precisa comparar-se ao seu próximo. Por que você está competindo e tentando vencer? Por que tem medo de ser derrotado? Ninguém pode derrotá-lo. Você não pode ser derrotado porque você é você.
Uma Visão Sadia da Vida e da Morte
A vida torna-se muito diferente de acordo com a visão que se tem dela. Por exemplo, nossa visão ou atitude em relação à vida e à morte pode facilmente nos tornar perturbados e sombrios ou fazer nossa vida harmoniosa, pacífica e luminosa.
Eu gostaria de falar sobre uma visão sadia da vida e da morte, porque as diferentes religiões, culturas e raças têm diferentes perspectivas sobre a vida, a morte, a natureza, a moralidade, a política, etc.
A cultura norte-americana enfatiza a juventude, o crescimento, o progresso, o sucesso; ela não considera a velhice e a morte como partes do processo de nascimento e crescimento. A velhice é considerada feia, uma coisa a ser combatida; e a morte inevitável é odiada e temida. Mas a vida inclui tanto vida como morte, e elas não podem ser separadas. A vida não é só juventude ou crescimento; ela também inclui a morte. A velhice e a morte não feias ou odiosas; elas devem ser compreendidas como parte do crescimento e maturidade. A maturidade é bela e a morte faz parte da natureza.
Outro dia, um viajante do Oriente disse que a cultura norte-americana não possui uma filosofia sobre os idosos e a morte e, portanto, sua visão da vida é superficial. Talvez esta superficialidade seja devido à natureza do próprio país, que é jovem e vigoroso; ou talvez porque aqui se dá demasiada ênfase à juventude, à beleza e ao crescimento. No entanto, como em qualquer outro país, também aqui as pessoas nascem, amadurecem e morrem. Ainda assim, a cultura norte-americana é feita das mais completas dicotomias – dicotomizamos a vida e a morte, a juventude e a velhice, e pensamos que a vida é boa e bela enquanto a velhice e a morte são más e feias. Por isso, aqui os idosos se sentem tristes e desprezados; os jovens expressam sua aversão pelo envelhecimento; e todos temem a morte. Parece que filosofias e religiões inteiras se desenvolveram a partir do medo da velhice e da morte.
Mas, por que dicotomizamos a vida e a morte? O budismo ensina a falsidade disso, pois a vida e a morte não são pólos opostos e sim fases complementares de uma mesma vida. Assim como o metabolismo em um organismo vivo inclui tanto o anabolismo quanto o catabolismo, a vida não poderia existir sem ter a morte como um de seus processos. Não existiria a vida sem a morte.
A vida e a morte não são boas nem más, feias ou bonitas; apenas são tais como são – ou tais como você as vê. Todos nós apreciamos o desabrochar da primavera e o verde do verão. Mas, acaso também não são belas as douradas folhas mortas do outono? É lindo contemplar as folhas douradas desprendendo-se dos galhos, mesmo quando não há vento, e caírem dançando até o solo, retornando à terra mãe. As folhas do outono são mais poéticas que o verde do verão. A primavera é romântica, mas o outono é sereno e meditativo.
A velhice e a morte são processos naturais da vida e é assim que devem ser encaradas. Uma pessoa idosa tem dignidade e sabedoria, e deve ser respeitada e honrada. Nos lares tradicionais do Oriente, os idosos são profundamente amados e respeitados. As crianças amam mais os avós que os próprios pais.
O idoso deve viver como idoso, sem competir com o jovem. E vice-versa. Comparar e competir é criar problemas. O idoso oferece, o jovem ouve; isso é harmonia, esta é a lei da complementaridade, assim como o céu e a terra, o positivo e o negativo, o yin e o yang, se harmonizam e tornam-se unos. A vida é uma; esta é a beleza da vida. Unidade na diversidade; esta é a beleza da natureza.
Nossa vida tornou-se demasiado utilitarista nesta cultura da máquina, onde aquilo que não produz é considerado inútil e precisa ser descartado. Nesta cultura, os idosos são inúteis porque deixaram de produzir; logo, são ignorados ou tratados com desprezo. Parece que, com a filosofia pragmática e a cultura utilitarista, nossa vida tornou-se uma máquina produtora e perdeu sua beleza e seu calor.
A vida é nobre; também é nobre a morte. A morte é o complemento e a realização da nossa vida. É melhor morrer com nobreza do que viver na desonestidade e desgraça. Como morrer com nobreza e paz, como viver com nobreza e paz – isso é religião. Quando vivemos cada momento eterno com plenitude e honestidade, podemos morrer com nobreza e paz. Há um antigo ditado no Japão: é melhor morrer como uma jóia quebrada do que existir como um tijolo quebrado.
Vivemos pelas leis da morte. As pétalas da flor fenecem, mas deixam suas fragrâncias; o homem morre, mas deixa seu nome. Quang Duc, o monge sul-vietnamita, viveu ao morrer. Ele dedicou e realizou sua vida na morte. Sua morte não foi suicídio nem sacrifício; foi o mais sincero e bravo apelo ao seu governo para que acabasse com a injusta repressão aos budistas. Um antigo provérbio chinês diz que a morte é mais leve que o couro de uma vaca. Patrick Henry bradou, “Dai-me a liberdade ou senão a morte!” e Daisuke Itagaki disse, “Embora Itagaki morra, a liberdade não morrerá”. Estas afirmações demonstram que, para estes homens, era mais fácil morrer do que renunciar aos princípios pelos quais viviam.
A morte não chega a ser um grande problema, mas o modo de viver é um problema importante. “Quanto mais ele vive, mais desgraça existe” – se estivermos falando de um homem desonesto. Se a pessoa compreende o princípio da vida, então a morte não é problema. A vida e a morte são unas e inseparáveis. Morremos, sim, porém não morremos. Vivemos além da vida e da morte. Devemos viver plenamente este eterno hoje.
Além do Mundo Relativo
Estamos vivendo no mundo relativo, no mundo das relações; isso equivale a dizer que estamos relacionados uns aos outros. Com efeito, somos inter-relacionados e interdependentes. Ninguém é capaz de viver sem as outras pessoas e coisas. Na verdade, todos nós somos um. Esta relação, no entanto, não deve tornar-se oposição. Sempre que a relação se transforma em oposição ou em extrema dependência ou agressividade, ela cria problemas e sofrimentos.
Temos a tendência de nos opor aos outros, de censurá-los, e esta é a causa do sofrimento nas relações humanas. Havia um casal que tinha três filhos. O marido gostava de álcool e jogo. A esposa, mulher muito inteligente, fazia de tudo para corrigi-lo, mas ele estava cada vez pior e muitas vezes nem vinha passar a noite em casa. A raiva da mulher era tanta que ela nem conseguia dormir. Perdeu o apetite e começou a ter problemas de saúde. Para ela, era natural sentir raiva e ficar revoltada com a vida. As amigas lhe ofereciam conforto e conselhos. Duas delas lhe garantiram que o comportamento do marido era errado, mas que, quando um homem agia daquele jeito, sua esposa também tinha alguma responsabilidade. Seu marido era mau, é claro, mas ela também era má e deveria olhar para dentro de si mesma. A mulher não deu ouvidos a estes conselhos, porque acreditava que nada havia de errado com ela.
Certo dia pediram-me para falar com ela. Conversamos. Depois que ouvi sua história, concordei com tudo o que ela disse, o que a deixou satisfeita e feliz. Mas ficou chocada quando lhe afirmei que eu não diria que os dois eram culpados, mas sim que ela era a única responsável por seu próprio sofrimento. Perguntou-me, espantada, o que eu queria dizer com isso.
• No mundo relativo – respondi – onde as coisas são comparadas, seu marido está errado e você está certa. Mas quando você o condena, quando briga com ele, tem raiva dele, sente pena de si mesma, adoece e negligencia os filhos, aí você é culpada, O bom e o certo em você tornam-se maus, e você é responsável por seus próprios sofrimentos e misérias.
Ela compreendeu e concordou comigo. E então eu lhe disse que existe um mundo onde ela não precisa sofrer, que existe um modo de libertar-se, e que eu sabia que ela era capaz de alcançá-lo. Ela me perguntou como poderia fazer isso e superar seu sofrimento.
• Você deve ir além do mundo relativo – expliquei. Quer dizer, ir além da comparação e das oposições. Você precisa estabelecer sua própria vida, que não será reprimida ou vitimada pelos outros.
Ela compreendeu e começou a viver sua própria vida sem se deixar perturbar pela vida errada do marido. Superou admiravelmente a situação e começou uma vida nova.
Um dos meus amigos contou-me uma experiência recente: estava andando pela calçada e, de uma janela do terceiro andar, jogaram água em cima dele. Aquilo também estava acontecendo com muitas outras pessoas naquele local. Ele pensou que algum adolescente estivesse jogando água nas pessoas e ficou preocupado e irritado. Observou o local durante algum tempo. Um dia, viu o autor daquilo e, para sua grande surpresa, não era um adolescente e sim um homem adulto! E, ao lado dele, duas crianças. Um pai e seus dois filhos se divertiam jogando água nas pessoas. Quando meu amigo descobriu isso, mal conseguiu dizer uma palavra. Sua irritação se dissolveu e ele pensou, “Ah, aquele idiota está perdendo seu tempo e sua vida fazendo uma bobagem dessas”. E, de súbito, ele perguntou a si mesmo, “E quanto a mim? Estou fazendo a mesma coisa. Fiquei irritado com alguém que não tem um pingo de juízo na cabeça e aqui estou eu perdendo meu tempo minha vida com essa irritação”. Seus pensamentos se transformaram em compaixão; a oposição desapareceu, e ele e aquele homem tornaram-se um.
Estamos vivendo em uma cultura de dicotomias e materializamos os outros como se eles estivessem em oposição a nós. Tão logo percebemos isto, também iremos compreender que aquilo que está em oposição a nós é a nossa própria sombra. Quando virmos os outros em nós ou nós mesmos nos outros, superaremos a oposição e o mundo relativo, e nos tornaremos unos. No ato de reconhecer os outros enquanto tais, no sentido mais elevado, existe respeito por eles e também por nós mesmos. Só quando respeitarmos a nós mesmos, no real sentido da palavra poderemos respeitar verdadeiramente os outros.
Texto retirado do livro ”Budismo Essencial, A Arte de Viver o Dia a Dia”.
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