A MENTE NATURAL

Quando a mente é percebida, isso é o Buda.

VOCÊ NÃO É A PESSOA LIMITADA e ansiosa que pensa ser.  Qualquer professor budista treinado pode dizer com toda a convicção da experiência pessoal que, na verdade, você é o centro da compaixão, completamente consciente e plenamente capaz de atingir o bem maior, não apenas para si mesmo, mas para todos e tudo que possa imaginar.

O único problema é que você não reconhece essa capacidade em si mesmo. Em termos estritamente científicos que passei a compreender pelas conversas com especialistas da Europa e da América do Norte, a maioria das pessoas acredita que a imagem de si mesmas formada pelo hábito e neuronalmente construída representa quem e o que elas são. E essa imagem é quase sempre expressa em termos dualistas: o “eu” e o outro, dor e prazer, ter e não ter, atração e repulsa. Como me foi explicado, esses são os termos mais básicos da sobrevivência.

 Infelizmente, quando a mente é submetida ao filtro dessa perspectiva dualista, cada experiência — mesmo em momentos de alegria e felicidade — é restrita por algum senso de limitação. Há sempre um mas espreitando ao fundo. Um tipo de mas é o mas da diferença: “Ah, minha festa de aniversário estava maravilhosa, mas eu preferiria um bolo de chocolate a um bolo de coco.” Há, também, o mas do “melhor”: “Adoro minha nova casa, mas a casa do meu amigo é maior e bem mais iluminada.” E, finalmente, há o mas do medo: “Não suporto mais meu trabalho, mas, na situação atual do mercado, como eu encontraria outro emprego?” A experiência pessoal me ensinou que é possível superar qualquer senso de limitação pessoal. Caso contrário, eu provavelmente ainda estaria sentado em meu quarto no retiro, sentindo-me amedrontado e inadequado demais para participar das atividades em grupo. Um menino de 13 anos, eu só sabia como superar meu medo e insegurança. Por meio da orientação paciente de especialistas nas áreas da psicologia e da neurociência, como Francisco Varela, Richard Davidson, Dan Goleman e Tara Bennett -Goleman, comecei a reconhecer por que, de um ponto de vista objetivamente científico, as práticas de fato funcionam: que os sentimentos de limitação, ansiedade, medo e assim por diante são somente parte de uma fofoca neuronal. Eles são, em essência, hábitos.  E hábitos podem ser mudados.

A MENTE NATURAL:  Falamos de “verdadeira natureza” forque ninguém a criou.

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Uma das primeiras coisas que aprendi como um budista foi que a natureza fundamental da mente é tão ampla que transcende completamente a compreensão intelectual. Ela não pode ser descrita em palavras ou reduzida a conceitos. Para alguém como eu, que gosta de palavras e sente-se muito confortável com explicações conceituais, isso era um problema.

Em sânscrito, a língua na qual os ensinamentos de Buda foram originalmente registrados, a natureza fundamental da mente é chamada de tathagata-garbha, uma descrição muito sutil e aberta a diferentes interpretações. Literalmente, significa “a natureza daqueles que foram naquela direção”. “Aqueles que foram naquela direção” são as pessoas que atingiram a completa iluminação — em outras palavras, as pessoas cujas mentes suplantaram completamente as limitações comuns que podem ser descritas em palavras.

Acho que você concordaria comigo no sentido de que essa definição não ajuda muito.

Outras traduções menos literais utilizam termos como “natureza búdica”, “verdadeira natureza”, “essência iluminada”, “mente comum” e até “mente natural” para descrever o tathagatagarbha, mas nenhum deles lança muita luz sobre o verdadeiro significado da palavra. Para efetivamente entender o tathagatagarbha, você precisa vivenciá-lo diretamente, o que, para a maioria de nós, ocorre, em primeiro lugar, na forma de vislumbres rápidos e espontâneos. Quando, finalmente, vivenciei meu primeiro vislumbre, percebi que tudo o que os textos budistas falavam a respeito era verdade.

Para a maioria de nós, nossa mente ou natureza búdica é obscurecida pela auto-imagem limitada criada por padrões neuronais habituais — que, por si, são um reflexo da capacidade ilimitada da mente de criar qualquer condição que ela escolher. A mente natural é capaz de produzir qualquer coisa, até mesmo a ignorância de sua própria natureza. Em outras palavras, não reconhecer a mente natural é um exemplo da capacidade ilimitada da mente de criar o que ela quiser. Sempre que sentimos medo, tristeza, inveja, desejo ou qualquer outra emoção que contribua para o nosso senso de vulnerabilidade ou fraqueza, deveríamos dar um bom tapinha em nossas costas.  Acabamos de vivenciar a natureza ilimitada da mente. Apesar de a verdadeira natureza da mente não poder ser descrita diretamente, isso não significa que não deveríamos ao menos tentar desenvolver algum conhecimento teórico sobre ela. Mesmo um entendimento limitado é pelo menos uma placa, apontando para o caminho na direção da experiência direta. O Buda entendia que as experiências impossíveis de serem descritas em palavras poderiam ser mais bem explicadas por meio de histórias e metáforas. Em um texto, ele comparava o tathagatagarbha a uma pepita de ouro coberta de lama e sujeira.

Imagine que você esteja em uma caça ao tesouro. Um dia, você vê um pedaço de metal no chão. Você cava um grande buraco, retira o metal, leva-o para casa e começa a limpá-lo. No começo, uma parte da pepita se revela, brilhante e cintilante. Aos poucos, à medida que você limpa a sujeira e a lama acumulada, a pepita inteira se revela como ouro. Agora, pergunto: O que é mais valioso — a pepita de ouro enterrada na lama ou a que você limpou? Na verdade, o valor é o mesmo. Qualquer diferença entre a pepita suja e a limpa é superficial.

O mesmo pode ser dito da mente natural. Na verdade, a fofoca neuronal que o impede de ver sua mente na totalidade não altera a natureza fundamental de sua mente. Pensamentos como “Eu sou feio”, “Eu sou um idiota” ou “Eu sou um chato” não são nada mais que uma espécie de lama biológica, temporariamente obscurecendo as brilhantes qualidades da natureza búdica ou mente natural.

Algumas vezes, o Buda comparava a mente natural ao espaço, não necessariamente como o espaço é entendido pela ciência moderna, mas sim no sentido poético da experiência profunda de abertura que se sente ao olhar para um céu sem nuvens ou entrar em uma ampla sala. Como o espaço, a mente natural não depende de causas ou condições prévias. Ela simplesmente é: incomensurável e além da caracterização, o pano de fundo essencial por meio do qual nos movimentamos e relativo ao qual reconhecemos distinções entre os objetos que percebemos.

A PAZ NATURAL 

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Eu gostaria de esclarecer que a comparação entre a mente natural e o espaço conforme descrito pela ciência moderna é mais uma metáfora útil do que uma descrição exata. Quando a maioria de nós pensa no espaço, imaginamos uma tela vazia contra a qual todos os tipos de coisas aparecem e desaparecem: estrelas, planetas, cometas, meteoros, buracos negros e asteróides — mesmo coisas que ainda não foram descobertas. Mesmo assim, apesar de toda essa atividade, nossa idéia da natureza essencial do espaço permanece imperturbada. Até onde sabemos, pelo menos, o espaço nunca reclamou sobre o que acontece nele. Nós enviamos milhares — milhões — de mensagens através do universo e nunca recebemos uma resposta do tipo “Estou furioso porque um asteróide acabou de destruir meu planeta favorito” ou “Uau, que emoção! Uma nova estrela acabou de nascer!”.

Da mesma forma, a essência da mente é intocada pelos pensamentos ou pelas condições desagradáveis que podem normalmente ser consideradas dolorosas. Ela é naturalmente tranqüila, como a mente de uma criança acompanhando os pais em uma visita ao museu. Enquanto os pais estão completamente envolvidos em julgar e avaliar as várias obras de arte, a criança se limita a ver. Ela não se pergunta quanto uma determinada obra de arte pode custar, a idade de uma estátua específica ou se o trabalho de um pintor é melhor do que o de outro. Seu ponto de vista é completamente inocente, aceitando tudo da forma como é contemplado. Essa perspectiva inocente é conhecida em termos budistas como “paz natural”, uma condição similar à sensação de total relaxamento que uma pessoa vivencia depois de, digamos, exercitar-se ou concluir uma tarefa complicada.

A paz natural é esse estado que não demanda esforço de relaxamento.

Como ocorre com tantos aspectos da mente natural, a experiência da paz natural vai tão além do que normalmente consideramos relaxamento que desafia qualquer descrição. Em textos do budismo clássico, ela é comparada a dar um doce para um mudo. O mudo, sem dúvida, sente a doçura, mas é incapaz de descrevê-la. Da mesma forma, quando saboreamos a paz natural de nossas próprias mentes, a experiência é inquestionavelmente real, porém está além de nossa capacidade de expressá-la em palavras.

Assim, na próxima vez que você se sentar para comer, se você perguntar a si mesmo: “O que me faz pensar que esta comida está boa — ou não tão boa? O que reconhece o ato de comer?”, não se surpreenda se não conseguir responder. Em vez disso, cumprimente-se. Se você não consegue mais descrever uma experiência poderosa, isso é um sinal de progresso. Isso significa que você pelo menos molhou os dedos dos pés no domínio da amplitude inefável de sua verdadeira natureza, um passo muito corajoso que muitas pessoas, confortáveis demais na familiaridade de seu descontentamento, não ousam tomar.

 A palavra tibetana para a meditação, gom, significa literalmente “familiarizar-se com” e a prática da meditação budista está relacionada a se familiarizar com a natureza de nossa própria mente — um pouco como conhecer um amigo em níveis cada vez mais profundos. Da mesma forma como conhecemos um amigo, descobrir a natureza de nossa mente também é um processo gradual. Isso raramente ocorre de uma vez. A única diferença entre a meditação e uma interação social comum é que o amigo que você está gradualmente conhecendo é a si mesmo.

 O primeiro passo para reconhecer as qualidades da mente natural é ilustrado por uma antiga história contada pelo Buda sobre um homem muito idoso que morava em um velho e frágil barraco. Apesar de não saber disso, centenas de pedras preciosas estavam incrustadas nas paredes e no chão de sua cabana. Todas aquelas jóias pertenciam a ele, mas, como desconhecia seu valor, ele vivia como um mendigo — passando fome e sede, sofrendo com o frio cortante do inverno e o terrível calor do verão.

 Certo dia, um amigo perguntou: “Por que você vive como um mendigo? Você não é pobre. Você é um homem muito rico.”

“Você está louco?”, o homem retrucou. “Como você pode dizer isso?”

“Olhe ao redor”, o amigo disse. “Sua casa inteira está repleta de pedras preciosas: esmeraldas, diamantes, safiras, rubis.”

No começo, o homem não acreditou no que o amigo estava dizendo. Mas, depois de algum tempo, ficou curioso, retirou uma pequena pedra preciosa da parede de seu barraco e levou-a à vila para tentar vendê-la. Inacreditavelmente, o mercador a quem ele levou a jóia lhe pagou uma grande quantia e, com o dinheiro em mãos, o homem voltou à vila e comprou uma casa nova, levando consigo todas as jóias que conseguiu encontrar. Ele comprou roupas novas, encheu sua cozinha de comida, contratou auxiliares e começou a levar uma vida muito confortável.

 Agora pergunto: Quem é mais rico, o homem que mora em uma casa velha cercado de jóias que não reconhece ou alguém que compreende o valor do que tem e vive em pleno conforto?

 Como a questão formulada antes sobre a pepita de ouro, a resposta neste caso é: ambos. Ambos possuem uma grande fortuna. A única diferença é que, por muitos anos, um deles não reconhecia o que possuía. Foi só depois que reconheceu o que tinha é que pôde libertar-se da pobreza e da dor.

 O mesmo ocorre com todos nós. Enquanto não reconhecemos nossa verdadeira natureza, sofremos. Quando passamos a reconhecer nossa natureza, torna-mo-nos livres do sofrimento. Entretanto, não importa se você reconhece ou não sua natureza, suas qualidades permanecem as mesmas. Mas, quando passa a reconhecê-la em si mesmo, você muda, e a qualidade de sua vida também muda. Coisas que você nunca sonhou serem possíveis começam a acontecer.

Trecho do livro ”A Alegria de Viver DESCOBRINDO O SEGREDO DA FELICIDADE”.

 

Mente, Realidade e Ilusão, por 

Kalu Rinpoche

Apesar de todos nós termos a sensação de possuir uma mente e de existir, nossa compreensão a respeito de nossa mente e de como existimos geralmente é vaga e confusa. Instantaneamente dizemos, “Eu tenho uma mente ou uma consciência”, “Eu sou”, “Eu existo”; nos identificamos com um “eu”, ao qual atribuímos qualidades, mas não conhecemos a natureza desta mente, nem deste “eu”. Não sabemos do que são feitos, como funcionam, “o que” ou “quem” realmente são.

O paradoxo fundamental

Ao procurar a mente, inicialmente o mais importante é reconhecer a natureza da mente ao questionar, no nível mais profundo, o que realmente somos. Aqueles que realmente examinaram suas mentes e refletiram sobre o que ela é são realmente raros, e para aqueles que tentam, a procura prova ser difícil. Ao buscarmos e observarmos o que nossa mente é, muitas vezes não a cercamos verdadeiramente; não chegamos realmente a uma compreensão sobre ela.

Sem dúvida, uma perspectiva científica pode oferecer muitas respostas para uma definição de “mente”, mas não é o tipo de conhecimento ao qual estamos nos referindo aqui. A questão básica é que não é possível que a mente conheça a si mesma porque aquele que procura, o sujeito, é a própria mente, e o objeto que ele procura examinar também é a mente. Há um paradoxo aqui: posso procurar por mim em todos os lugares, procurar por todo o mundo, sem nunca me encontrar, porque eu não sou o que procuro.

O problema é o mesmo ao tentar enxergar o nosso próprio rosto: nossos olhos estão muito próximos do rosto, mas não podem ver muita coisa dele. Não reconhecemos a nossa mente simplesmente porque ela está muito próxima. Um provérbio do Dharma diz, “O olho não pode ver a sua própria pupila”. Igualmente, nossa própria mente não tem a capacidade de ver a si mesma; ela está próxima, tão íntima, que não podemos discerni-la.

Precisamos saber como mudar as perspectivas. Para enxergar nosso rosto, usamos um espelho. Para estudar nossa própria mente, precisamos de um método que funcione como um espelho, para permitir que reconheçamos a mente. Este método é o Dharma, que é transmitido a nós por um guia espiritual.

É na relação com este ensinamento e com este amigo, ou guia, que a mente será gradualmente capaz de despertar para a sua verdadeira natureza e de finalmente ir além do paradoxo inicial, realizando um outro tipo de conhecimento. Esta descoberta é efetuada através de várias práticas conhecidas como meditação.

Em busca da mente

A mente é uma coisa estranha. Os asiáticos tradicionalmente a situam no centro do corpo, no nível do coração. Os ocidentais entendem que a mente está localizada na cabeça, no cérebro. Apesar dos diferentes pontos de vistas serem justificados, estas designações são inadequadas. Basicamente, a mente não está mais no coração do que no cérebro. A mente habita o corpo, mas é apenas uma ilusão achar que a mente possa ser localizada neste ou naquele lugar. Essencialmente, não podemos dizer que a mente é encontrada em um lugar específico da pessoa, ou em qualquer outro lugar.

Buscar a mente não é fácil porque, além do paradoxo do conhecedor não poder conhecer a si mesmo, sua natureza essencial é indescritível. Não tem forma, nem cor ou qualquer característica que poderia permitir que concluíssemos, “É isso”.

Porém, cada um de nós desenvolve uma experiência da natureza de nossa mente ao nos perguntarmos o que o observador está fazendo: o observador, o conhecedor, o sujeito que experimenta os pensamentos e as diferentes sensações. Onde exatamente ele pode se encontrado? O que ele é? É uma questão de observar nossa própria mente. Onde ele está? Quem sou eu? O que sou eu? O corpo e a mente são o mesmo ou são diferentes? Minhas experiências se desdobram dentro ou fora de minha mente? A mente e seus pensamentos são distintos ou são a mesma coisa? Se sim, como? Se não, como? A busca é levada à meditação, em conexão próxima com um guia qualificado que pode nos dizer o que está correto e o que está errado. O processo pode demorar muitos meses, ou até mesmo muitos anos.

 À medida que esta busca se aprofunda, o lama progressivamente nos direciona para a experiência da verdadeira natureza da mente. É difícil compreender e realizar porque não é algo que possa ser compreendido através de conceitos ou representações. O principal estudo da mente não pode se feito através da teoria; precisamos da experiência prática da meditação para penetrar em sua verdadeira natureza.

 Na prática de meditação, há uma abordagem dupla: podemos dizer que há uma abordagem analítica e outra contemplativa. A primeira é feita de questões como aquelas que perguntamos anteriormente. Se levarmos este tipo de busca persistentemente, enquanto somos guiados competentemente, uma compreensão definitiva se desenvolve.

 Na segunda abordagem, a mente simplesmente descansa em sua própria lucidez, sem forçar ou usar artifícios. Esta prática vai além de todas as formas anteriores de análise, ao nos fazer deixar a esfera dos conceitos e de nos fazer abrir para uma experiência imediata. No final destas meditações, descobrimos a vacuidade essencial da mente. Isto é, a mente é vazia de determinações e características, tais como forma, cor ou aspecto, e sua natureza está além das representações, conceitos, nomes e formas. Para tentar invocar o reconhecimento da vacuidade, poderíamos compará-lo à “indeterminação” do espaço: a mente é vazia como o espaço. Mas isto é apenas como imagem e, como veremos, a mente não é apenas vazia.

Por enquanto, gostaria de enfatizar como é importante o conhecimento da mente, assim como os frutos deste conhecimento. A mente é o que somos. É ela que experimenta a felicidade e o sofrimento. A mente é o que experimenta diferentes pensamentos e sensações; é ela que está sujeita às emoções agradáveis e desagradáveis, é ela que experimenta o desejo, a aversão etc. Uma compreensão real da natureza é libertadora porque nos desengaja de todas as ilusões e, conseqüentemente, de toda fonte de sofrimentos, medos e dificuldades que constituem nossa vida diária.

 Por exemplo, se tivermos a ilusão de que uma pessoa má é um ajudante, ele poderá nos enganar, abusar de nós e nos causar dano, mas assim que o reconhecemos como sendo mau, não seremos mais ingênuos; ao desmascará-lo, podemos evitar cair como vítimas de seus maus atos. Aqui, a pessoa má é a ignorância do que realmente somos, ou mais precisamente, a ilusão do ego, do eu. O conhecimento que desmascara isto é a consciência da natureza da mente; ela nos libera das ilusões e do conhecimento doloroso. Esta compreensão da mente é o fundamento do Buddhadharma e de todos os seus ensinamentos.

 

Iluminação e ilusão

A mente tem dois rostos, duas facetas, que são os dois aspectos da realidade. Estes aspectos são a iluminação e a ilusão.

 A iluminação é o estado da mente pura. É o conhecimento não-dualista, chamado sabedoria primordial. Suas experiências são autênticas, isto é, elas são sem ilusão. A mente pura é livre e dotada de numerosas qualidades.

 A ilusão é o estado da mente impura. Seu modo de conhecimento é dualista; é a consciência condicionada. Suas experiências estão maculadas pelas ilusões. A mente impura é condicionada e dotada de muito sofrimento.

 Os seres comuns experimentam este estado de mente impura e deludida como sendo o seu estado habitual. A mente pura, iluminada, é um estado no qual a mente realiza sua própria natureza, livre das condições habituais e do sofrimento associado a elas. Este é o estado iluminado do Buda.

 Quando nossa mente está em seu estado impuro, deludido, somos seres comuns que se movem através dos diferentes tipos da consciência condicionada. As transmigrações da mente dentro destes tipos (ou reinos) fazem seus giros indeterminados na existência condicionada, cíclica — samsara em sânscrito.

 Quando é purificada de toda ilusão samsárica, a mente não mais transmigra. Este é o estado iluminado de um Buddha, é a experiência da pureza essencial de nossa própria mente, de nossa natureza búddhica. Todos os seres, quaisquer que sejam, têm a natureza búddhica. Esta é a razão pela qual todos podem realizar a natureza búddhica. Como cada um de nós possui a natureza búddhica, é possível atingir a iluminação. Se já não a tivéssemos, nunca poderíamos ser capazes de realizá-la.

 Então, o estado comum e o estado iluminado são distintos apenas pela impureza ou pureza da mente, pela presença ou ausência de ilusões. Nossa mente neste instante, já tem as qualidades do estado búddhico; essas qualidades permanecem em nossa mente, elas são a natureza pura da mente. Infelizmente, nossas qualidades iluminadas são invisíveis para nós porque estão mascaradas por diferentes mortalhas, véus e outros tipos de mácula.

 Buda Shakyamuni disse, “A natureza búdica está presente em todos os seres, porém escondida por ilusões adventícias; quando purificada, eles realizam verdadeiramente o Buda”.

 A distância entre o estado comum e o estado iluminado é o que separa a ignorância do conhecimento desta natureza pura da mente. No estado comum, é desconhecida. No estado iluminado, é totalmente realizada. A situação na qual a mente é ignorante de seu estado real é o que chamamos de ignorância fundamental. Ao realizar sua profunda natureza, a mente é liberada desta ignorância, das ilusões e condicionamentos que a mente cria, e então entra no incondicionado estado iluminado, chamado liberação.

 Todo o Buddhadharma e suas práticas envolvem a purificação, tirar as ilusões da mente, e proceder de um estado maculado para um imaculado, da ilusão para a iluminação.

 

A natureza da mente

A verdadeira experiência da natureza essencial da mente está além das palavras. Querer descrevê-la é como a situação de um mudo que quer descrever o sabor de um doce em sua boca: ele não tem um meio adequado de se exprimir. Mesmo assim, gostaria de oferecer algumas idéias que aludem a esta experiência.

 Podemos pensar que a natureza da mente pura tem três aspectos essenciais, complementares e simultâneos: a abertura, a claridade e a sensitividade.

 

A abertura

A mente é o que pensa, “Eu sou”, “Eu quero”, “Eu não quero”; é o pensador, o observador, o sujeito de todas as experiências. Eu sou a mente. De um ponto de vista, esta mente existe, já que eu sou e eu tenho a capacidade de ação. Se eu quero ver, eu posso ver; se eu quero ouvir, eu posso ouvir; se eu decido fazer algo com minhas mãos, eu posso comandar meu corpo, e assim por diante. Neste sentido, a mente e suas faculdades parecem existir.

 Mas se buscarmos por ela, não poderemos encontrar qualquer parte dela em nós, nem em nossa cabeça, em nosso corpo ou em qualquer outro lugar. Então, desta outra perspectiva, ela parece não existir. Portanto, de outro lado a mente parece existir, mas por outro lado não é algo que verdadeiramente existe.

 Por mais exaustivas que sejam nossas investigações, nunca seremos capazes de encontrar quaisquer características formais da mente: não tem dimensão, nem cor, forma ou qualquer qualidade tangível. É neste sentido que ela é chamada de aberta, porque é essencialmente indeterminada, desqualificada, além do conceito e, assim, comparável ao espaço. Esta natureza indefinível é a abertura que nos faz experimentar a mente como um “eu” que possui as características que habitualmente atribuímos a nós mesmos.

 Mas devemos ter cuidado aqui! Dizer que a mente é aberta como o espaço não é reduzi-la a algo não-existente, no sentido de ser não-funcional. Como o espaço, a mente pura não pode ser localizada, mas é onipresente e permeia tudo; ela abraça e permeia todas as coisas. Acima de tudo, ela está além da mudança e sua natureza aberta é indescritível e atemporal.

 

A claridade

Apesar da mente ser essencialmente vazia no sentido explicado acima, ela não é apenas aberta ou vazia, porque se fosse, a mente seria inerte e não iria experimentar ou conhecer qualquer coisa, nem sensações, nem alegria ou sofrimento. A mente não é apenas vazia — ela possui uma segunda qualidade essencial, que é a sua capacidade de experiências, de cognição. Esta qualidade dinâmica é chamada claridade. Ela é tanto a lucidez da inteligência da mente quanto a luminosidade destas experiências.

 Para melhorar nossa compreensão da claridade, podemos comparar a abertura da mente ao espaço da sala onde estamos. Este espaço sem forma permite que aconteçam nossas experiências; ele contém a experiência em sua totalidade. É onde a nossa experiência toma o seu lugar. A claridade, então, seria a luz que ilumina a sala e que nos permite reconhecer diferentes coisas. Se houvesse apenas o inerte espaço vazio, não haveria a possibilidade de haver consciência. Isto é apenas um exemplo, porque a claridade da mente não é como a luz comum do sol, da lua ou da eletricidade. É a claridade da mente que torna possível toda cognição e experiência.

 A natureza aberta e luminosa da mente é o que chamamos de “clara luz”; é uma claridade aberta que, no nível da mente pura, está consciente em e por si mesma; é por isso que a chamamos de cognição auto-luminosa ou claridade.

 Não há um exemplo verdadeiramente adequado para ilustrar esta claridade no nível puro, mas no nível comum, que podemos relatar mais facilmente, podemos ter uma idéia de alguns de seus aspectos, ao compreender uma das manifestações da mente — o estado do sonho. Vamos dizer que é uma noite escura, e que nesta escuridão estamos sonhando, ou experimentando um mundo de sonho. O espaço mental onde o sonho acontece, independente do lugar físico onde estamos, poderia ser comparado à abertura da mente, enquanto sua capacidade de experimentar, apesar da escuridão externa, corresponde à sua claridade. Esta lucidez abarca todo o conhecimento da mente e é a claridade inerente nestas experiências. É também a lucidez do que ou quem as experimenta; o conhecedor e o conhecido, a lucidez e a claridade, nada mais são do que duas facetas da mesma qualidade. A inteligência que experimenta o sonho é a lucidez, e a claridade presente em suas experiências é a sua luminosidade; mas no nível não-dual da mente pura, é apenas uma e a mesma qualidade, a “claridade”, chamada prabhasvara em sânscrito, ou de selwa em tibetano. Este exemplo pode ser útil para o entendimento, mas tenha em mente que isto é apenas uma ilustração, mostrando um nível de manifestação específico da claridade em um nível habitual. No exemplo, há uma diferença entre a lucidez, o conhecedor e a luminosidade das experiências do sujeito, porque o sonho é uma experiência dualista, diferenciada em termos de sujeito e objeto, na qual a claridade se manifesta de uma vez, na consciência ou lucidez do sujeito, e na luminosidade de seus objetos. De fato, o exemplo é limitado, pois fundamentalmente não há dualidade nas mentes puras: é a mesma qualidade da claridade que é essencialmente não-dual.

 

A sensitividade

Para uma descrição completa da mente pura, um terceiro aspecto deve ser adicionado às duas primeiras qualidades já discutidas; é a sensitividade, ou desimpedimento. A claridade da mente é a sua capacidade de experienciar; tudo pode surgir na mente, então suas possibilidades de consciência ou inteligência são ilimitadas. O termo tibetano que designa esta qualidade significa literalmente “ausência de impedimento”. Esta é a liberdade da mente experienciar sem obstrução. No nível puro, estas experiências têm as qualidades da iluminação. No nível condicionado, elas são as percepções da mente de cada coisa como sendo isto ou aquilo; ou seja, é a habilidade de distinguir, perceber e conceber todas as coisas.

 Voltando ao exemplo do sonho, a qualidade inerente de sensitividade da mente, por causa de sua abertura e claridade, seria a sua habilidade de experimentar a multiplicidade de aspectos do sonho, tanto as percepções do sujeito sonhador quanto as experiências do mundo sonhado. A claridade é o que permite surgir as experiências, enquanto a sensitividade é a totalidade de todos os aspectos distintamente experimentados.

 Esta sensitividade corresponde, no nível habitual e dualista, a todos os tipos de pensamentos e emoções que surgem na mente e, no nível puro da mente de um Buda, à sabedoria ou qualidades iluminadas colocadas em prática para ajudar os seres.

 Então, a mente pura pode ser compreendida assim: em essência, é aberta; em natureza, é clara; e em todos os seus aspectos, é uma sensitividade desimpedida. Estas três facetas, a abertura, a claridade e a sensitividade, não estão separadas, mas são concomitantes. Elas são as qualidades simultâneas e complementares da mente desperta.

 No nível puro, estas qualidades são o estado de buddha; no nível impuro da ignorância e da delusão, elas se tornam todos os estados da consciência condicionada, todas as experiências do samsara. Mas não importa se a mente é iluminada ou deludida, nada há além dela, e ela é essencialmente a mesma em todos os seres, humanos ou animais. A natureza de buddha, com todos os seus poderes e qualidades iluminadas, está presente em cada ser. Todas as qualidades do Buddha estão em nossas mentes, porém veladas e obscurecidas, assim como uma vidraça é naturalmente transparente e translúcida, mas fica opaca pela densa camada de sujeira.

 A purificação, ou remoção destas impurezas, permite que todas as qualidades iluminadas presentes na mente sejam reveladas. Realmente, nossa mente tem pouca liberdade e poucas qualidades positivas porque ela é condicionada pelos nossos hábitos adquiridos no passado. Pouco a pouco, porém, as práticas do Dharma e da meditação livram a mente e a despertam para todas as qualidades de um Buddha.

Uma breve meditaçãodownload

 Neste ponto, provavelmente ajudaria fazer uma curta prática experimental, uma meditação para tentar melhorar nossa compreensão sobre tudo isso.

 Sentando confortavelmente, vamos deixar a mente descansar em seu estado natural. Relaxamos a nós mesmos, nossas tensões, e permanecemos sem tensão, sem qualquer intenção específica, sem artifícios… Soltamos nossa mente e permitimos que ela fique aberta, como o espaço… Espaçosa, a mente permanece clara e lúcida… Relaxada, solta, a mente permanece transparente e luminosa… Não mantemos nossa mente encerrada em nós mesmos… Ela não está confinada em nossa cabeça, em nosso corpo, no ambiente ou em qualquer lugar. Relaxada, ela é vasta como o espaço que abarca tudo… Ela abarca tudo, todo o mundo e todo o universo. Ela permeia nosso mundo inteiro. Permanecemos descansados, relaxados, neste estado de abertura, ilimitado, totalmente lúcido e transparente.

  A abertura e a transparência da mente, similares ao espaço infinito, são sinais do que temos chamado de abertura. Sua consciência livre e clara é o que temos chamado de claridade.

 Há também a sua sensitividade, que é a capacidade da mente experimentar tudo em uma desimpedida consciência de pessoas, de lugares e de todas as outras coisas. A mente pode conhecer todas estas coisas e pode reconhecê-las distintamente.

 Mais uma vez, sem orientar “a mente” — o sujeito-conhecedor — para fora nem para dentro, permanecemos como estivermos, à vontade e relaxados… Sem afundar num estado de indiferença ou estagnação mental, nossa mente permanece alerta e vigilante… Neste estado, a mente é aberta e desengajada. Isto é a abertura… Na consciência lúcida está a sua claridade… Todos os aspectos que conhece, distinta e desobstruidamente, são a sua sensitividade.

 Um obstáculo importante surge como resultado de habitualmente confinarmos a mente ao corpo, que percebemos como sendo o nosso corpo; identificamo-nos com este corpo, nos fixamos nele e nos encerramos nele. Para neutralizar isto, é importante relaxar toda tensão, toda inquietação. Tensa e inquieta, a mente fica presa. Estas tensões terminarão causando dores físicas e de cabeça.

 Deixe a mente permanecer descansada em sua vastidão lúcida, aberta e relaxada.

 Podemos começar a meditar deste modo, mas é fundamental continuar a prática sob a direção de um guia qualificado, que nos conduzirá no caminho correto. Com a ajuda dele ou dela, podemos realizar a vacuidade da mente, dos pensamentos e das emoções, o que é o melhor de todos os métodos de nos livrarmos da delusão e do sofrimento. Reconhecer a natureza das emoções negativas permite que elas sejam liberadas; é, portanto essencial aprender a reconhecer sua vacuidade assim que as emoções negativas surgirem. Se permanecermos ignorantes de sua natureza vazia, elas nos carregarão em sua torrente, nos escravizando e subjugando. Elas têm controle sobre nós porque atribuímos a elas uma realidade que, na verdade, elas não têm. Se realizarmos sua vacuidade, então o seu poder alienador e o sofrimento que eles causam irão desaparecer.

 Esta habilidade de reconhecer a natureza aberta e vazia da mente e de todas as suas produções, projeções, pensamentos e emoções é a panacéia, o remédio universal que, em e por si mesmo, cura toda delusão, toda emoção negativa e todo sofrimento.

 Nossa mente pode ser comparada a uma mão que está atada ou amarrada; neste caso, a mente está presa pela representação de nosso “eu”, “ego” ou “si-mesmo”, assim como pelos conceitos e fixações que pertencem a esta idéia. Pouco a pouco, a prática do Dharma elimina estas fixações e conceitos de auto-estima e, assim como uma mão desatada pode se abrir, a mente se abre e ganha todos os tipos de possibilidades de atividade. Ela então descobre muitas qualidades e habilidades, como a mão livre de suas amarras. As qualidades que são lentamente reveladas são aquelas da iluminação, da mente pura.

Há o pensamento, e então a consciência sobre o pensamento. E a diferença entre estar consciente do pensamento e apenas pensar é imensa. É enorme … Normalmente ficamos tão identificados com nossos pensamentos e emoções, que somos eles. Somos a felicidade, somos a raiva, somos o medo. Precisamos aprender a dar um passo para trás e saber que nossos pensamentos e emoções são apenas pensamentos e emoções. Eles são apenas estados mentais. Não são sólidos, são transparentes.
É preciso conhecer isso e então não se identificar com o conhecedor. É preciso saber que o conhecedor não é um alguém. […]
Você pensa que entendeu quando compreende que você não é o pensamento ou sentimento — no entanto, ir mais adiante e saber que você não é o conhecedor… isso te traz a pergunta: “Quem sou eu?”.

E essa foi a grande compreensão do Buda — entender que quanto mais recuamos, mais aberta e vazia se torna a qualidade de nossa consciência. Em vez de encontrar alguma pequena e sólida entidade eterna — ou seja, o “eu” — recuamos para essa vasta mente espaçosa que está interconectada com todos os seres vivos. Nesse espaço, você precisa perguntar: “onde está o ‘eu’?” e “onde está o ‘outro’?”.

Enquanto estamos no reino da dualidade, há “eu” e “outro”. Essa é nossa ilusão básica — é o que causa todos nossos problemas. Por causa disso temos o sentimento de ser bem separados. Essa é nossa ignorância básica. […]

Ao compreendermos que a natureza de nossa existência está além de pensamentos e emoções, que é incrivelmente vasta e interconectada com todos os outros seres, então o sentimento de isolamento, separação, medos e esperanças desmorona. É um alívio espantoso!

Tenzin Palmo

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Comentarios:

comments

  • Mariane Zanotelli

    Gostaria de agradecer.Simples assim.Obrigada.

  • luis fernando ferreira

    Gostei de ler!
    Atingir um estado de paz e tranquilidade num mundo repleto de ruido,lixo,frivolidades e egoísmos e narcisismos é uma enorme conquista da mente,«uma grande solidão que dá imenso prazer» !

  • lucas

    muito lindo, esses textos vem mudando minha maneira de enxergar a vida

  • mARIA lUIZA

    É ISSO MESMO, SINTO-ME PRESA, LIMITADA, BURRA, MESMO SABENDO QUE NÃO. SÃO CRENÇAS?

  • cyrano

    quanto à prática meditativa sugerida, a noção de que temos uma auto-imagem confinada ao corpo não seria mais adequada à formação cultural oriental? digo isso porque aqui por estas bandas ocidentais me parece que vivemos em constante estado de dualismo corpo-mente, identificando-nos mais com estados mentais do que com sensações corporais (ainda que estados mentais tenham correspondência com estados fisiológicos). daí, minha desconfiança de métodos que enfatizem a desidentificação com o corpo. práticas corporais como tai chi, yoga, ou mesmo esportes como ciclismo, caminhada, escalada, não poderiam ser complementares à prática meditativa? e quanto à tradição do vipassana, que pega justamente esse caminho da consciência possível no momento presente (seja da dor nas costas, das pernas dormentes, dos pensamentos irrefreáveis) como ponte para a experiência da mente natural? excelente site. excelente artigo.