A Mente Como Atividade Mental
O que significa “mente” no budismo? Isso pode gerar muita confusão, porque as palavras que nossas línguas ocidentais utilizam para traduzir “mente” têm diferentes significados. Em francês ou alemão, por exemplo, esprit e Geist abrangem não só o que se chama de mind em inglês e mente em português, mas também incluem espírito. Na verdade, a palavra alemã é usada até para fantasmas! Então, para evitar mal-entendidos, nós precisamos ver o que significa “mente” nos idiomas originais do budismo indiano e tibetano.
Em primeiro lugar, a maioria das línguas ocidentais fazem uma distinção entre mente e coração. “Mente” se refere ao nosso lado racional e intelectual e “coração” se refere ao lado emocional e intuitivo, e talvez ao irracional também. Mas essa divisão não existe no budismo, onde usa-se a mesma palavra para as duas coisas. A palavra “mente” não inclui apenas mente e coração, ela também abrange todos os aspectos de nossa percepção e todas as maneiras que podemos saber de algo, como dedução, suposição, etc. Tudo isso também é parte do que se chama de “mente”.
Ainda mais diferente é o fato de que, no contexto budista, “mente” não se refere a alguma “coisa” que tem como função perceber, pensar e sentir. “Mente” se refere à atividade mental em si. Lembre-se, quando dizemos “mental”, aqui, queremos dizer tanto os sentidos como o pensamento. Não há uma “coisa” material ou imaterial dentro de nossas cabeças para a qual podemos apontar e dizer: “isso é a mente”. Claro que podemos descrever a atividade mental do ponto de vista da fisiologia do cérebro e do sistema nervoso, mas cérebro não é o mesmo que mente. Mente, no budismo, se refere à atividade mental, do ponto de vista da experiência subjetiva.
A atividade mental é algo que acontece momento a momento, sem intervalos, quer estejamos acordados ou dormindo, e até mesmo quando estamos inconscientes, e é ao mesmo tempo individual e subjetiva. É muito importante reconhecer isso. Nós não estamos falando de algum tipo de mente universal, uma consciência universal ou algo assim. A atividade mental de cada um de nós é individual. Se eu estou feliz, isso não significa que você está feliz. Se eu estou com fome, isso não significa que você está com fome. Se um grupo de pessoas vê o mesmo filme ao mesmo tempo, cada uma de suas experiências a respeito do filme será diferente. Alguns gostarão do filme, outros o acharão chato e outros não gostarão dele. Por isso temos que concluir que a atividade mental é individual e subjetiva, não algo coletivo.
As Características Definidoras da Mente
Se quisermos entender melhor o que é atividade mental, ou seja, o que é “ter uma experiência individual e subjetiva de algo” – precisamos examinar suas características definidoras. Para isso são usadas três palavras. Cada uma delas é uma forma de descrever um momento de atividade mental de um ponto de vista diferente. As três palavras normalmente são traduzidas como “mera” (que significa “apenas”), “clareza” e “consciência”.
É essencial entender o que essas palavras de fato significam. Caso contrário, quando em meditações avançadas, tais como mahamudra, nos pedirem para nos concentrarmos em nossa mente, talvez tenhamos uma ideia destorcida do que fazer, como pensar em maçãs quando deveríamos pensar em laranjas. Poderíamos nos concentrar em algo completamente inadequado e isso não teria nenhum benefício. Por isso, veremos essas características definidoras uma por uma.
Clareza
Clareza, como característica da atividade mental, é uma forma de descrever o que a atividade mental faz. Ela não se refere a como nossas mentes têm clareza e estão concentradas, e com certeza não se refere a algum tipo de luz em nossas cabeças, que ilumina tudo. “Clareza” se refere à atividade mental de dar origem ao aparecimento mental de algo. Em tibetano, diz-se que o surgimento de aparências mentais é como o nascer do sol.
O que surge com a atividade mental é uma representação mental, como um holograma de algo que nossos sentidos detectam, por exemplo uma imagem. Quando vemos algo, os fótons atingem a nossa retina, se convertem em impulsos elétricos e sinais químicos e temos a experiência do aparecimento de uma imagem mental – algo como um holograma mental. Mas esse holograma não tem uma localização. Nós não podemos encontrá-lo se dissecarmos o cérebro, e não há um órgão imaterial chamado “mente” onde poderíamos encontrar esse holograma. Ele simplesmente “surge” como o Sol.
Os hologramas mentais não são necessariamente visuais. Eles podem ser de qualquer objeto dos sentidos. Eles podem, por exemplo, ser a representação mental de um som. Quando escutamos algo, as vibrações do ar atingem o tímpano e novamente são convertidas em impulsos elétricos e sinais químicos. Como resultado, temos a experiência de um som mental. Mas não podemos localizar esse som em nossas cabeças. Quando pensamos, lembramos ou sonhamos algo, o que ocorre também é o surgimento de hologramas mentais.
Consciência
A segunda característica definidora, “consciência”, descreve exatamente a mesma atividade mental que “clareza”, mas de um ponto de vista diferente. No tibetano, usa-se a palavra “relacionar-se” para explicá-la . A atividade mental se relaciona cognitivamente com algo. Por exemplo, se há um objeto, uma mesa, na nossa frente, a forma como nossa atividade mental se relaciona com ela é vendo a mesa. Como a atividade mental faz isso? Dando origem a um holograma mental da mesa. Em outras palavras, há apenas uma atividade mental — descrita de dois pontos de vista diferentes — relacionando-se cognitivamente com algo e dando origem a um holograma mental.
“Relacionar-se cognitivamente” com um objeto é uma composição de muitas partes. Pode ser apenas, ver, ouvir ou pensar em algo, mas ao mesmo tempo pode ser saber ou não saber o que é algo, entender ou não entender o que alguém diz e gostar ou não gostar disso. Ao mesmo tempo, podemos nos sentir felizes ou infelizes a respeito de nossa experiência de algo. Relacionar-se cognitivamente com algo inclui até sentir alguma emoção em relação a isso, seja positiva ou negativa. Portanto, “consciência” não significa apenas ter consciência de um objeto. Não prestar atenção ao que alguém está dizendo e, mesmo que inconscientemente, sentir hostilidade em relação à essa pessoa também são formas de se relacionar cognitivamente.
É importante perceber que se relacionar cognitivamente com algo e dar origem a um holograma mental são a mesma atividade, porém descrita de dois pontos de vista diferentes. Pense nisso: não é que primeiro um pensamento surge e então pensamos nele. O surgimento do pensamento e pensar o pensamento são a mesma coisa. Da mesma forma, o som mental de uma frase não surge e depois o escutamos. O surgimento da representação mental e o fato de escutarmos é a mesma atividade.
Mera
A terceira característica definidora da atividade mental, “mera”, quer dizer que o surgimento e o relacionar-se são tudo que está acontecendo. Não há um “eu” concreto que se possa encontrar separado da atividade mental, fazendo com que ela aconteça, ou só a observando. E não há uma “mente” concreta que se possa encontrar como uma “coisa” separada de todo esse processo, e que está fazendo a atividade. Não existe um “eu” dentro de nossa cabeça, no painel de controle de uma máquina chamada “mente”, apertando botões para que agora os olhos se abram e possamos ver, e ligando o microfone nos nossos ouvidos para que possamos escutar. Não é assim que as coisas funcionam.
Isso não significa que nós não existimos ou que ninguém está vendo ou pensando. Sou eu queestou pensando no que estou pensando, e não você. Mas esse “eu” que está pensando é só uma outra forma de descrever a atividade mental individual e subjetiva. Assim como dar origem a um holograma mental e se relacionar cognitivamente com algo não são coisas distintas e nem idênticas, o mesmo acontece com o “eu” envolvido com a atividade mental. O “eu” não está separado e também não é idêntico ao surgimento e o relacionar-se, é apenas uma outra forma de descrever a mesma atividade mental.
O Benefício de Entender o que é a Mente
Entender corretamente o que é a mente nos permite praticar os ensinamentos do Buda sobre as quatro nobres verdades de forma profunda. O sofrimento verdadeiro – infelicidade, felicidade comum ou o sentimento neutro de um transe profundo – é uma parte de nossa consciência a respeito de tudo, assim como a verdadeira causa do sofrimento, nossa ignorância de não entender a realidade corretamente. Tanto o sofrimento quanto a ignorância, portanto, são partes da atividade mental.
O verdadeiro cessar do sofrimento e da ignorância ocorre quando nossa atividade mental fica completamente livre dos dois. Já que sofrimento e ignorância não são características definidoras da atividade mental, eles não são inerentes à essa atividade e podem ser removidos para sempre. As únicas características definidoras da atividade mental são “mera clareza e consciência”.
A realidade do caminho se refere ao tipo de consciência que pode subjugar e livrar nossa atividade mental de sofrimento e ignorância. Essa é a consciência discriminativa que entende a verdadeira natureza da realidade, ou seja, a sabedoria da vacuidade. A consciência discriminativa também é parte da atividade mental: ela é uma forma de se ter consciência de algo.
Em suma, todos os ensinamentos do Buda podem ser entendidos em termos de atividade mental, em termos de “mente”. Não importa qual seja a nossa experiência, sofrimento ou liberação, se trata apenas de atividade mental. Ao entendermos isso, ganhamos convicção de que a principal tarefa no budismo é aperfeiçoar a nós mesmos, aperfeiçoar nossas mentes.
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