Há cerca de quatro meses, publiquei no Instagram um trecho chamado “Comunismo e Livre Mercado”, do livro “Liderança para um mundo melhor”, onde o Dalai Lama dizia o seguinte:
“Durante grande parte de minha vida, senti-me atraído pelo sistema socialista ou comunista, pois entendia que seu objetivo era proporcionar justiça e um padrão de vida digno para todos. O que me atraiu nele foi seu igualitarismo: as diferenças extremas de padrão de vida entre as pessoas não deveriam ser toleradas. Esse objetivo incluía a abolição da pobreza e a promoção da fraternidade entre as pessoas, dentro dos países e entre eles. Com o tempo, constatei que os países que praticavam o sistema comunista não atingiam esse objetivo; nem sequer tentavam alcançá-lo. Ao contrário, o desenvolvimento estagnou e a liberdade de expressão foi eliminada. Embora eu ainda acredite que o objetivo inicial era correto, passei a perceber as falhas desse sistema.
Minha compreensão do regime comunista aprofundou-se com os encontros que tive com o presidente comunista da China, Mao Tsé-Tung. Pessoalmente, Mao me impressionou de várias maneiras. Quando me explicou o sistema comunista, não percebi de imediato que se tratava de um regime de comando e controle baseado no planejamento central da atividade econômica. Mao o explicou como um sistema em que os capitalistas não mais explorariam os trabalhadores, o que eu apoiava totalmente. Não ficou óbvio para mim que a abolição da propriedade privada levaria à propriedade pelo Estado, com uma elite partidária no poder, a qual instituiria seu próprio sistema restritivo de ordens e controle e governaria como uma elite, como as aristocracias do passado. Hoje sabemos que isso levou a muitas violações dos direitos humanos.
Mao me convidou a assistir a uma reunião com seu gabinete. O que ficou especialmente gravado em minha memória foi que ele solicitou aos membros do gabinete sugestões sobre como seria possível melhorar o desempenho do governo. Ninguém disse nada. Em seguida, Mao pegou uma carta que havia recebido, a qual descrevia muitos problemas graves que vinham sendo enfrentados pelo povo, o que me deu a impressão de que ele estava sinceramente interessado no bem-estar dos chineses. Ele me pareceu uma grande personalidade e, durante algum tempo, o admirei. O que finalmente me fez mudar de ideia foi ele me dizer que a religião era um veneno. Mao sabia que eu era budista, e seus comentários deixaram claro que a amizade que ele me havia demonstrado não era sincera.
Foi por esse processo de ouvir e observar que vim a depositar minha confiança no sistema de livre mercado. Embora ele também tenha um grande potencial para o surgimento de abusos, o fato de permitir a liberdade e a diversidade de pensamento e religião me convenceu de que era o sistema com que deveríamos trabalhar. É claro que ainda acredito que devemos lutar por um padrão de vida adequado para todos, e não na postura de “sobrevivência do mais apto” comumente adotada pelo livre mercado. Nesse aspecto, há algo a se aproveitar do sistema socialista. ”
O Dalai Lama ainda complementa em outro momento do livro:
“Embora Adam Smith tenha se preocupado com as dimensões morais do sistema econômico, muitos de seus sucessores ignoraram esse aspecto. Considero perigoso o sistema econômico desprovido de uma dimensão moral. É por isso que quero acrescentar a dimensão da “responsabilidade” ao “livre mercado”. Concordo com o conceito de liberdade defendido por Smith e Hayek, mas sinto que ele não nos leva suficientemente longe. O comportamento responsável é necessário por causa das limitações do que é possível alcançar com leis e regulamentações. É impossível o governo fazer as pessoas se portarem com dignidade por meio da lei.”
O trecho em questão já havia sido publicado aqui no site em 2014 e publicado várias vezes no Facebook em outras ocasiões. Entretanto, desta vez o post causou, digamos, fortes emoções. Tornou-se o post mais comentado da página no instagram e muitas pessoas ficaram confusas quanto à publicação. Algumas até xingaram a página. Mas por quê? Afinal o Dalai Lama faz uma crítica ao capitalismo e ao comunismo.
Pelo que li e ouvi, sempre me pareceu que o Dalai Lama tem a posição de um social democrata reformista — e, obviamente, de esquerda. Ocorre que, para algumas pessoas, por ele se dizer simpático aos ideais morais do marxismo, isso talvez significasse que ele mantivesse posições marxistas revolucionárias, ou que defendesse um regime de comando e controle baseado no planejamento central da atividade econômica. Não sei se é este o caso. Por isso, quero reunir neste post citações diretas de três livros, um artigo e uma entrevista em que o Dalai Lama fala sobre o assunto e que podem ajudar a clarificar qual é a sua visão política e econômica. O post não tem como objetivo interpretar de alguma forma as falas do Dalai Lama e sim apresentar diversos e extensos trechos de seus livros sobre o assunto para que possamos perceber melhor a visão dele. Ao final e durante algumas citações, farei algumas considerações sobre o que podemos entender por capitalismo e livre-mercado, e sobre esquerda e direita pois foram pontos que me vieram a mente enquanto lia os trechos e também enquanto lia os comentários dos posts sobre o assunto.
Em seu recente livro “Uma força para o bem”, Daniel Goleman expõe a posição do Dalai Lama de forma bem direta:
“A economia compassiva que o Dalai Lama visualiza mistura o espírito empreendedor a um sistema de assistência social sólido e impostos sobre a riqueza — a Suécia é o país que lhe vem à mente como modelo bem-sucedido. Os sinais de uma combinação saudável, complementa, aparecem na menor disparidade na distribuição da riqueza e na menor quantidade de ultramilionários em tais países.”
O índice de Gini, que mede distribuição e concentração de renda, mostra que os países menos desiguais do mundo são economias de mercado com densas redes de proteção social. Suécia — tomada como exemplo pelo Dalai Lama —, Noruega e Dinamarca, são alguns dos países considerados menos desiguais do mundo, e também se encontram no topo dos rankings que avaliam a liberdade econômica das nações. A Dinamarca é o 3º país onde é mais fácil fazer negócios no mundo, muito à frente dos Estados Unidos. É o 1º em abertura ao comércio internacional, 6º em facilidade para obter alvarás de construção e 7º com os impostos mais simples de pagar.
Muitos especialistas concordam que a melhor forma de combater a desigualdade é por meio da redistribuição do gasto público. Não por menos, o Bolsa Família, programa de transferência de renda focalizado nos mais pobres, foi a peça chave para redução do Gini brasileiro verificada ao longo do século XXI.
O Bolsa Família é um programa de transferência condicional de renda que tem como objetivo ajudar indivíduos que vivem abaixo da linha da miséria e inseri-los socialmente ao permitir que eles ajam como consumidores no mercado. A grande vantagem do programa é que ele não dá poder discricionário aos governantes para que estes decidam pelo povo. E por ser um programa mais alinhado com uma política social liberal e descentralizada — onde a decisão sobre como o benefício será gasto é tomada pelos beneficiários, no mercado — foi vilipendiado por nomes mais “conservadores” como Maria da Conceição Tavares na época de sua criação pois eles defendiam uma política social centralizadora, onde o governo decide o que os pobres precisam e quando eles vão receber.
Talvez a confusão do debate público que mais cause debates acalorados é a contraposição simplista entre “Estado grande” e “Estado pequeno”. Uma economia pode ter um mercado livre, com pouca regulação e burocracia, mas também possuir altos impostos. Defender que o Estado ofereça serviços públicos não é igual, de forma alguma, a achar que a economia de mercado não funciona.
Para muitos militantes, a diferença entre esquerda e direita está apenas na aceitação ou não da economia de mercado, com propriedade privada dos meios de produção, como o mecanismo regulador da produção e distribuição dos bens e serviços. Mas isso está longe de ser um consenso. Se empregarmos o critério de demarcação do cientista político Norberto Bobbio, para quem estar à esquerda do espectro ideológico significa abrir mão de crescimento para reduzir a desigualdade, é evidente que um social democrata que 1) reconhece os mecanismos de operação de uma economia de mercado, e 2) entende que a correção das injustiças e da desigualdade se faz com Estado e políticas públicas em geral — como medidas que elevem a qualidade do sistema público de ensino básico, aumento de gasto social e medidas que defendam agendas de elevação da progressividade dos impostos (que os ricos paguem proporcionalmente mais do que os mais pobres)… é evidente que trata-se de alguém de esquerda.
Vale notar que, à esquerda do espectro político, podem existir discordâncias quanto ao funcionamento da economia. E são justamente modelos que propõem a centralização de toda a atividade econômica que são, de alguma forma, questionados pelo Dalai Lama em diversas ocasiões. Em seu relato a respeito do socialismo chinês, ele explica que, após conversar com Mao Tsé-Tung, não percebeu de “imediato que se tratava de um regime de comando e controle baseado no planejamento central da atividade econômica”, mas notar este aspecto o fez refletir.
Um regime de comando e controle, baseado no planejamento central da atividade econômica, exige uma ampla regulação da vida individual. Se os planejadores acreditam que o país precisa de mais comida, mais pessoas terão que trabalhar nos campos, seja esta sua vontade ou não, seja esta a necessidade da população ou não. Na experiência socialista da Tanzânia, o governo popular realocou mais de 10 milhões de pessoas para as fazendas coletivas comandadas pelo partido comunista local.
O Dalai Lama também aponta como falha dos regimes comunistas o autoritarismo e controle, exercido com violência, sobre a vida de indivíduos que, até então, apenas desejavam viver suas próprias vidas de acordo com seus planos e sonhos.
No texto “Buddhism and Democracy”, publicado em 1993 em seu site oficial, ele diz:
“Embora o comunismo tenha abraçado muitos nobres ideais, incluindo o altruísmo, a tentativa de suas elites governantes de ditar suas visões provou ser desastrosa. Esses governos foram muito longe para controlar suas sociedades e induzir os cidadãos a trabalharem pelo bem comum. Uma organização rígida foi necessária no início para superar regimes anteriormente opressivos. Uma vez que a meta foi alcançada, porém, essa rigidez tinha muito pouco a contribuir para construir uma sociedade verdadeiramente cooperativa. O comunismo falhou totalmente porque se baseou na força para promover suas crenças. Em última instância, a natureza humana não foi capaz de sustentar o sofrimento que produziu.
A força bruta, não importa com quanta intensidade seja aplicada, nunca pode subjugar o desejo básico humano de liberdade. As centenas de milhares de pessoas que marcharam nas cidades da Europa Oriental provaram isso. Elas simplesmente expressaram a necessidade humana de liberdade e democracia. Suas demandas não estavam nada relacionadas a alguma nova ideologia; elas simplesmente estavam expressando seu desejo genuíno de liberdade. Não é suficiente, como os sistemas comunistas pressupuseram, simplesmente fornecer às pessoas alimento, abrigo e vestimentas. Nossa natureza mais profunda requer que respiremos o precioso ar da liberdade.”
Em uma entrevista para o WELT, de 2009, ele é ainda mais enfático em diversos tópicos:
WELT ONLINE: Essas atitudes liberais não parecem encaixar em alguém que alguma vez se proclamou um monge marxista. O senhor ainda se vê assim?
Dalai Lama: Sim, ainda acredito ser um monge marxista. Não vejo aqui uma contradição. Na teoria marxista, o foco se encontra na alocação justa das riquezas. De uma perspectiva moral, essa é uma reivindicação correta. O capitalismo, por outro lado, valoriza o acúmulo de riquezas: a alocação delas não é relevante aqui inicialmente. No pior cenário, o rico continuará ficando cada vez mais rico enquanto o pobre continua cada vez mais pobre.
WELT ONLINE: Por que, então, o senhor é tão contrário ao comunismo e ao socialismo?
Dalai Lama: Comunismo? O que é comunismo? A China é um país comunista? (Ele ri alto.) Estou confuso. Os comunistas chineses são comunistas sem uma ideologia comunista. Mas se você se refere a socialismo, como existiu inicialmente no Bloco de Leste e agora na Coréia do Norte e em Cuba, acredito que vai contra a natureza humana; ele destrói a criatividade. Não é suficiente que as pessoas tenham o suficiente para comer, roupas e um teto sobre suas cabeças. Precisamos nos atualizar. Buda incentivou os empreendedores a que se tornassem bem-sucedidos através da confiabilidade e das capacidades de vendas. Aqueles que são bem-sucedidos podem ajudar os outros.
WELT ONLINE: Entretanto, o senhor foi durante muito tempo um admirador de Mao Zedong. Como pode se enganar tanto?
Dalai Lama: Ainda estou convencido de que Mao Zedong era um marxista, que queria ajudar os trabalhadores e camponeses, nos seus anos iniciais, até meados de 1950. Nessa época, eu passei seis meses em Beijing e outros quatro meses em muitas outras partes da China. Os líderes do partido me pareceram realmente dedicados à sua causa.
WELT ONLINE: O que impressionou o senhor em Mao?
Dalai Lama: Ele parecia um camponês – suas roupas eram velhas e arruinadas. E quando ele falava, falava muito lentamente, então cada palavra tinha importância. Ele nunca fazia rodeios, nem dizia amenidades; ele sempre ia direto ao ponto. Todos os membros do seu partido que eu encontrei naquela época eram assim, o que me impressionou.
WELT ONLINE: E como Mao falhou, em sua opinião?
Dalai Lama: Mao uma vez disse que o partido comunista tinha que suportar as críticas, e que a autocrítica era muito importante. Sem crítica, qualquer sistema de poder é como um peixe sem água. Porém, em 1957, de repente todos os oficiais do partido que ousaram criticar foram eliminados. Esse foi o fim do Maoísmo. O sistema falhou por causa de sua própria arrogância e falta de autodisciplina. A abolição da propriedade privada levou a que muitos pertences terminassem nas mãos de um estado que recaiu em uma elite partidária que exerceu um reinado autoritário, muito parecido com os aristocratas do passado.
WELT ONLINE: Que papel o estado desempenha na economia, em sua opinião?
Dalai Lama: Essa é uma pergunta muito difícil. Não creio que a igualdade pode ser estabelecida em um nível nacional. As nações podem causar muitos danos. É por isso que sou contra esperar demais dos governos quando se trata da redistribuição ou regulação dos mercados financeiros. As pessoas sempre encontram formas de contornar as regras e as leis, mesmo se forem as melhores regras e leis. Ou você pensa que foi a falta de regulações que levou a esta crise financeira? As regras nos Estados Unidos eram boas; mas ação responsável demanda mais do que obediência às leis.
WELT ONLINE: Em sua opinião, o livre mercado não está funcionando bem, e o senhor também não acredita em regulação. Então de que é que precisamos?
Dalai Lama: Eu chamo de uma “economia de livre mercado responsável”. No fim, se trata de cada indivíduo em particular; depende do senso de responsabilidade moral, autodisciplina e valores de cada indivíduo. Essa crise financeira não é puramente uma crise da economia de mercado, é muito mais uma crise de valores.
Outro livro em que o Dalai Lama fala sobre sua visão político-econômica é o “Caring Economics”. Leia o prefácio escrito por ele:
“Vivemos em um mundo verdadeiramente interconectado. Na economia global de hoje, os destinos dos povos entre as nações, e mesmo entre continentes, tornaram-se profundamente interligados. Esse nível de integração econômica sem precedentes trouxe prosperidade a muitos e elevou o padrão de vida das pessoas. Entretanto, não há como negar que também exacerbou a lacuna de crescimento entre ricos e pobres, não apenas entre nações, mas também dentro de cada nação.
A preocupação de como fazer pontes nessa lacuna entre ricos e pobres suscita várias questões. Será que algo pode ser feito para tornar nossos sistemas econômicos mais justos? Será que a premissa básica de nosso sistema capitalista moderno – de que a mão invisível do mercado garantirá a eficiência autossustentável – continua sendo válida no mundo globalizado de hoje? Será que existe um lugar para a poderosa motivação humana positiva, tal como o altruísmo, em nossos sistemas econômicos, ou é o pressuposto comum de que o comportamento egoísta colhe recompensas maiores? Será que o crescimento medido em termos de PIB (Produto Interno Bruto) realmente é o melhor indicador do progresso econômico de uma nação? Finalmente, e talvez o mais importante, precisamos examinar a conexão entre sistemas econômicos e nossa busca pela felicidade.
Em abril de 2010, um grupo de pessoas se reuniu em Zurique, na Suíça, com o apoio do Mind and Life Institute para discutir essas e outras questões durante dois dias. A principal pergunta, “Qual é a relevância da motivação e o altruísmo pró-sociais em sistemas competitivos tais como o sistema econômico ocidental dominante?”, recebeu uma relevância adicional à luz da crise financeira global de 2008. Entre os participantes, encontravam-se psicólogos, cientistas contemplativos e neurocientistas que trabalhavam com bases em tomadas de decisões econômicas, cooperação, comportamento pró-social, empatia e compaixão, e outros que trabalhavam em sistemas econômicos inovadores. Tive a boa sorte de fazer parte dessa estimulante conversa.
Torna-se cada vez mais claro que é preciso ocorrer uma reforma no pensamento fundamental no campo da economia. A economia precisa ampliar seus horizontes. É preciso considerar questões de justiça e distribuição mais equitativa, assim como impactos sociais e ambientais maiores. Há uma percepção crescente de que a ética e a compaixão na economia são igualmente importantes; afinal, economia envolve tanto a atividade humana quanto a meta básica de promover maior felicidade e aliviar o sofrimento.
Estou feliz de saber que a publicação deste livro, Caring Economics, com as trocas tão ricas e que provocaram tantas ideias durante o encontro de Zurique, pode ser compartilhada com muitos outros indivíduos interessados. Sou grato a todos cujas contribuições tornaram possível o encontro e o livro. O tipo de sistema econômico que deveríamos ter é uma questão relevante não apenas para os especialistas, mas também para cada um de nós. Aguardo esperançoso o surgimento de um novo tipo de sistema econômico que combine o dinamismo do mercado com uma preocupação explícita quanto a uma distribuição mais equitativa de seus frutos. Espero que as discussões reveladas nestas páginas sirvam como um catalisador para que isso aconteça.
27 de junho de 2014”
No mais recente “Uma força para o bem”, o posicionamento também é similar. O trecho a seguir fala sobre uma visão de economia que leva as pessoas em consideração. Dalai Lama também explica novamente por que se considera marxista por haver uma proposta de dimensão moral que não está presente no capitalismo, mas frisa que “o problema não é necessariamente o sistema econômico”, seja o capitalismo ou o socialismo, mas “a falta de princípios morais das pessoas envolvidas nesse sistema”:
“Sempre que tem a oportunidade de falar a empresários, o Dalai Lama menciona a necessidade de valores éticos no mundo dos negócios. Sua maior objeção ao capitalismo é a falta de perspectiva moral compassiva — o foco na aquisição de riqueza leva à falta de preocupação com o bem-estar da população. O capitalismo precisa de compaixão.
“Sou marxista”, declarou o Dalai Lama mais de uma vez, pelo menos no que tange à teoria socioeconômica. Com a ênfase em uma distribuição de riqueza mais equânime, ele esclarece, o pensamento econômico marxista atrai o Dalai Lama porque “há uma dimensão moral”.
O capitalismo, na visão do Dalai Lama, assume que os indivíduos só pensam em si e se concentram em “ganhar dinheiro — só lucro, lucro, lucro”, nas palavras dele. Nossos motivos determinam o valor moral do que fazemos e nosso sistema financeiro premia a ganância em detrimento do custo a ser pago pela população e pelo planeta.
Ele aponta o fato de ser comum encontrar pobreza escancarada lado a lado com o consumo desenfreado. Isso basta para mostrar a ele que existem problemas graves no sistema econômico atual. A riqueza, diz, é para o bem da sociedade, não de um único indivíduo. Ele se incomoda com o espírito mercenário do capitalismo, que pode ser indiferente e cruel com os pobres. “A ênfase no ‘eu, eu, eu’ — essa é a raiz do problema”, disse ele a um grupo de empresários.
O Dalai Lama nos pergunta se nossa maneira de pensar a economia gera efeitos satisfatórios em nível global. Os negócios se tornaram talvez a força mais poderosa a moldar nosso mundo, transcendendo governos e religiões, observa.
E, ainda assim, os resultados — como o abismo cada vez maior entre ricos e pobres e o constante ataque à vitalidade da terra — mostram claramente que o mundo dos negócios precisa encontrar novas formas de pensamento. “Não se trata de curto prazo versus longo prazo”, aponta o Dalai Lama. “Precisamos de ambos, mas há um foco obsessivo demais no curto prazo, que não leva em conta as consequências no longo prazo.”
Mesmo assim, ele alerta para as armadilhas da estagnação e da ditadura de experimentos socialistas que “deveriam estar preocupados com a classe trabalhadora”, e na prática não estão. E acrescenta: embora o nome “socialismo” possa soar bem, se, no fim das contas, o dinheiro acaba indo parar nas mãos de particulares, o termo não passa de um véu para a corrupção.
“O problema não é necessariamente o sistema econômico”, seja o capitalismo ou o socialismo, mas “a falta de princípios morais das pessoas envolvidas nesse sistema”. Ambos os “ismos” podem ser corrompidos por atitudes de egoísmo e exploração.
Após a queda do Muro de Berlim, o Dalai Lama disse a seu amigo Václav Havel, que se tornara presidente da Tchecoslováquia recém-independente, que esperava que os países do Leste Europeu, graças à forte história socialista, sugerissem uma nova síntese do socialismo e do capitalismo. Em vez disso, como sabemos, essas nações abraçaram os modelos de livre mercado do capitalismo.
Um sistema como o socialismo, que promove uma distribuição de bens de forma mais igualitária, deveria, teoricamente, se pautar por um ativo moral que não existe no capitalismo — e por isso é o preferido do Dalai Lama. Ele acrescenta, porém, com uma risada, que a proposta original do marxismo não é adotada em lugar nenhum.
Ele reconhece que a estrita regulação do Estado enfraquece o dinamismo do mercado e que o modelo econômico coletivista tem uma abordagem muito vertical. O Dalai Lama também enxerga a necessidade da liberdade de empreendimento. Idealmente, um sistema deveria equilibrar liberdade e altruísmo.
A economia compassiva que o Dalai Lama visualiza mistura o espírito empreendedor a um sistema de assistência social sólido e impostos sobre a riqueza — a Suécia é o país que lhe vem à mente como modelo bem-sucedido. Os sinais de uma combinação saudável, complementa, aparecem na menor disparidade na distribuição da riqueza e na menor quantidade de ultramilionários em tais países.
(…)
Alguns anos atrás, quando soube do número crescente de bilionários, o Dalai Lama ficou intrigado. Por que, perguntou a seu intérprete Thupten Jinpa, alguém iria querer tanto dinheiro? Afinal, “nós só temos um estômago”, acrescentou.
O Dalai Lama argumenta que uma economia deveria ser considerada rica em termos do bem-estar de todos, não por quantos se tornam bilionários. O capitalismo só poderá ser uma força para o bem se incorporar a preocupação genuína com todos.
Como não faz segredo de sua simpatia por uma versão mais compassiva da economia, foi exatamente isso que ele disse ao grupo que encontrou em um think tank conservador em Washington. Para a surpresa de muitos, a conversa fluiu bem, na opinião do Dalai Lama.
Uma ou duas semanas depois, o presidente do think tank escreveu um artigo no New York Times sobre a visita do Dalai Lama: “Como ocorre com qualquer ferramenta, usar o capitalismo para o bem exige uma profunda consciência moral. Somente atividades motivadas pela preocupação com o bem-estar do outro, declarou ele, podem ser realmente ‘construtivas’”.
E acrescenta: “Para o Dalai Lama, a questão principal é se ‘usamos nossas circunstâncias favoráveis, como a saúde e a riqueza, de maneira positiva, ajudando outras pessoas’. […] Defensores da livre iniciativa não devem esquecer que o cerne moral do sistema não está nos lucros ou na eficiência. Está em criar oportunidades para quem mais precisa”.
Embora a expressão “criar oportunidades” possa ter interpretações diferentes nas distintas esferas políticas, para o Dalai Lama tudo é muito claro: uma das chaves para o florescimento do ser humano são ações justas e compassivas em nome de todos. Para uma economia, isso significa, conforme o artigo, “políticas práticas baseadas em empatia moral”, como uma rede de segurança para os mais pobres. “Washington”, conclui o artigo, “precisa ser mais parecida com o Dalai Lama.” Eu acrescentaria Londres, Beijing, Moscou e Nova Délhi à lista, para começar.”
Livre mercado?
Talvez o que cause confusão seja que, para muitas pessoas, quando se fala em livre mercado elas acham que isto é sinônimo de capitalismo. O cientista político Adriano Gianturco aponta que capitalismo é um conceito marxista, que não distingue entre livre mercado e capitalismo de Estado. Os liberais, por exemplo, não falavam de capitalismo e socialismo, mas de intervencionismo e livre mercado. Weber fala de Capitalismo de mercado e de Estado. Roepke, de Capitalismo histórico e Economia de mercado. Hess fala de Capitalismo corporativo, enquanto Kirzner fala de Sistema de mercado e Capitalismo histórico. B. Tucker usava o termo Capitalismo para se referir ao Estado. Hoje se fala de Crony Capitalism, Capitalismo de laços, de compadrios, de amizade ou de Livre Mercado.
Uma vez um amigo relatou que, em sua cidade, São Carlos, existe um grupo chamado “Onde / Aonde NÃO ir em São Carlos” que, como o nome sugere, basicamente se trata de um lugar em que as pessoas fazem comentários positivos e negativos geralmente sobre lanchonetes e o comércio.
Lá é colocado em pauta se funcionários que atendem mal “não querem trabalhar” ou se eles trabalham dessa forma porque são mal pagos ou têm patrões ruins; é denunciado que donos de certos estabelecimentos são abusadores ou algo do tipo, entre outras coisas. Ele disse que, certa vez, postou lá porque chamou um eletricista em casa que deu a solução para o problema dele e não fez cobrança alguma. Meu amigo achou que deveria pagá-lo de alguma forma e resolveu divulgar sua eficiência no grupo.
Quando é pautada uma economia de mercados libertos é sobre isso que se fala, sobre agentes espontaneamente agindo em comunidade para decidirem se vale ou não a pena consumir em determinado lugar, seja porque o preço é alto ou porque os funcionários são mal pagos. Tem a ver com poder tomar decisões e estar a par de como funciona o estabelecimento que você frequenta, seja a par das condições de higiene, da índole dos comerciantes ou qualquer outra coisa. A regulação espontânea não é um artefato mágico como é costume alardear, é ação individual e comunitária. Penso que neste tipo de modelo ocorra uma maior responsabilização moral dos agentes econômicos se comparado a proposta socialista de controle sobre o que os agentes econômicos produzirão e consumirão.
Isso tem a ver com o comportamento humano, já que socializar por meio de trocas voluntárias — sejam trocas de serviços, produtos ou informações — é algo próprio da nossa espécie. Além disso, as pessoas aprendem o que pode ser melhor e o que pode ser pior para elas sem necessariamente haver a intervenção de um líder. Mercados, nessa perspectiva, não são uma expressão do capitalismo vigente, são uma forma prática e eficiente de expressar um trato da nossa espécie de cooperar em torno de um objetivo comum. Por isso muitos falam que essa “libertação” é um passo fundamental para garantir que ninguém escolha por nós, o que seria justamente uma postura anti-capitalista. Alguns falam até em livre mercado como comunismo pleno. E outros explicam que, em um livre mercado, as corporações não seriam capazes de depender do Estado para sua própria existência.
Economia e Felicidade
Em 1974, o professor Richard Easterlin observou que o crescimento da renda dos Estados Unidos nas décadas anteriores não alterou a felicidade dos seus cidadãos. O achado ficou conhecido como Paradoxo de Easterlin e inaugurou o campo denominado economia da felicidade, que busca responder questões universais como “o dinheiro traz felicidade?”
O Paradoxo de Easterlin é disputado: diversas pesquisas posteriores identificaram correlação e mesmo relação de causalidade entre renda e bem-estar. Dois prêmios Nobel em Economia, Daniel Kahneman (2002) e Angus Deaton (2015), estimaram um teto em uma renda anual de US$ 75 mil: acima desse nível, mais dinheiro não traria mais felicidade. Os autores parecem concluir que não importa ser rico, mas importa não ser pobre: “As dores dos infortúnios da vida – como doenças, separações e solidão – são significativamente exacerbadas pela pobreza”.
No livro “Caring Economics”, há um capítulo intitulado de “Economia e Feliciade” em que o Dalai Lama dialoga com Richard Layard, um dos fundadores da Ação para Felicidade e professor emérito de economia na London School of Economics, onde foi diretor-fundador do Centre for Economic Performance até 2003. Ele agora lidera o Programme on Well-Being desse departamento. Desde 2000, é membro da Câmara dos Lordes, sendo um árduo defensor da ideia de tornar o bem-estar subjetivo das pessoas o objetivo central dos governos.
Em certo momento Richard comenta esse gráfico que mostra os indivíduos mais ricos, em média, são mais felizes do que os indivíduos mais pobres. Os dados de um ano em particular nos Estados Unidos mostram como os grupos de maior renda têm, de fato, uma média mais alta de felicidade, embora, claro, esta se estabilize na parte superior. Mas ele faz um porém:
“Porém, sempre que o nível de renda relativa de alguém sobe, a de alguém mais precisa diminuir. Esse é um ponto muito profundo e importante, porque mostra que a luta para aumentar rendas é, numa dimensão bastante importante, infrutífera. Não pode produzir felicidade maior. Em linguagem técnica, chamamos isso de um jogo de soma-zero. O total que pode ser alcançado é fixo; tudo o que pode acontecer é que reacomodemos quem recebe o quê desse total. Elevar rendas, portanto, não é uma meta geral significativa para uma sociedade. Muitos cientistas sociais agora pensam que o crescimento econômico não pode mais ser a principal meta para as sociedades ocidentais. Isso começou a ser uma questão até mesmo em nível político, com o [ex] presidente francês Nicolas Sarkozy, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e outros levantando questões sobre o verdadeiro significado de “progresso”.
Se quisermos que nossas sociedades não estejam na linha plana da felicidade, mas que subam para um nível mais elevado, temos que focar em fontes de felicidade que possam ser aumentadas. Essas fontes provêm de atividades de soma-positiva em que cada parte ganha com a interação. Isso significa que temos que dar muito mais atenção a relacionamentos humanos e menos a crescimento econômico.
Acredito fortemente que crescimento econômico simplesmente significa fazer as coisas de uma forma melhor, e que o comprometimento com o progresso nunca terminará. Eu não concordo com a abordagem de crescimento zero. Claro que temos que limitar imensamente nosso uso dos recursos naturais, mas vamos ficar cada vez mais inteligentes ao fazer as coisas, e isso levará ao crescimento econômico. Assim, a continuação do crescimento econômico virá da força criativa do espírito humano. Não é algo ruim, mas também não é a coisa mais importante. A coisa mais importante é a qualidade de nossas relações humanas, e não devemos sacrificar essas relações para ajudar a aumentar o índice de crescimento econômico, que é o que vem acontecendo nos últimos anos.”
Considero importante ele ter ressaltado que não concorda com a abordagem de crescimento zero e sim em uma abordagem conjunta. Afinal a maior parte da população mundial ainda se encontra abaixo do limite calculado por Kahneman, principalmente em países como o Brasil. Ou seja, em face ao grande número de pessoas ainda vivendo na linha de pobreza precisamos pensar em crescimento sustentável e políticas de redução da desigualdade (melhoria na educação básica dos mais pobres, algo que tem papel central na redução de desigualdade, melhoria da saúde, políticas de saneamento básico por exemplo) e políticas de redistribuição de renda.
Em trabalhos realizados por Andrew Clark e Andrew Oswald, o desemprego era a variável que mais afetava negativamente o bem-estar individual, sendo pior que um divórcio. Em anos recentes, têm se apontado que os efeitos da economia sobre o psicológico são muito mais significativos quando negativos do que quando positivos. Deaton lembra que o efeito do desemprego é pronunciado mesmo quando considerado isoladamente do efeito da perda de renda.
Apesar da melhora nos padrões de vida, mais de 700 milhões de pessoas ainda subsistem com rendas extremamente baixas. A cada ano, cerca de cinco milhões de crianças menores de cinco anos morrem por doenças que poderiam frequentemente ser prevenidas ou curadas com tratamentos que não são caros. Metade das crianças do mundo ainda abandona a escola com capacidades apenas básicas de leitura e aritmética. Esther Duflo, a pessoa mais jovem a receber o prêmio Nobel de economia na história foi premiada ano passado juntamente com Abhijit Banerjee e Michael Kremer por introduzirem uma nova forma de dar respostas factíveis a problemas relacionados a extrema pobreza. Basicamente eles se fazem perguntas sobre questões concretas, que podem responder com experimentos de campo. E desta maneira chegam a conclusões que servem, por exemplo, para melhorar os resultados educacionais e a saúde infantil.
Esther defende que os estudos econômicos devem ser usados como forma de transformação social e proteção dos mais pobres. “Os economistas têm uma péssima reputação e parte dessa má reputação provavelmente se justifica pela maneira como a disciplina funciona. Quando você é economista, as pessoas pensam que você está interessado em finanças ou que trabalha para os ricos, mas não é necessariamente o caso”. Os experimentos de tutoria em escolas, por exemplo, selecionam 200 instituições de forma aleatória em que metade é utilizada como grupo controle e a outra metade como grupo tratamento. O progresso dos alunos é comparado e avaliado em ambos os casos, e os resultados são transmitidos a autoridades públicas e instituições de caridade, como a Fundação Bill e Melinda Gates. Mais de 5 milhões de crianças indianas foram beneficiadas pelo método de Duflo.
O livro “Repensando a pobreza: uma virada radical na luta contra a desigualdade global”, de Duflo e Banerjee foi eleito pelo Financial Times como livro económico do ano de 2011. Ela destaca que se queremos entender os problemas associados a pobreza, devemos ir além dos clichês e entender por que o fato de ser pobre muda algumas coisas no comportamento e outras não. Outros livros interessantes que podem ajudar a desmistificar visões que temos sobre economistas e economia é o “Economia do Bem Comum” de Jean Tirole e “A Economia das Desigualdades” de Thomas Piketty.
Em “Uma força para o bem”, no capítulo “Prosperar e fazer o bem”, podemos ler também sobre questões de prosperidade, redução de desigualdade e pobreza e a importância da educação:
“As cavernosas fábricas de paredes de tijolos de Easthampton, em Massachusetts, nos Estados Unidos, prosperaram no século XIX, mas se transformaram em ruínas abandonadas no século XXI, com janelas quebradas e muros cobertos de pichações. Recentemente, um desses prédios, hoje conhecido como Eastworks, foi restaurado para uso, abrigando empreendimentos como a Prosperity Candle, que ocupa um loft espaçoso, bem iluminado por enormes janelas. Ali, Moo Kho Paw, imigrante de Mianmar, aprendeu a sustentar a família com uma nova habilidade: a confecção de velas artesanais.
Paw, mãe de três crianças, saiu da dependência abjeta em campos de refugiados na fronteira entre a Tailândia e Mianmar e hoje recebe salário como fabricante de velas, o que lhe permite sustentar os filhos, pagar o aluguel e contratar uma babá. Ela trabalha com outros dez refugiados na Prosperity Candle, que também emprega doze vítimas do terremoto no Haiti e cerca de seiscentas mulheres (muitas viúvas em razão da guerra) no Iraque. Todas encontraram uma forma de viver que as tirou da pobreza.
E o plano era exatamente esse. A Prosperity Candle não é uma empresa comum. Ela foi fundada como “empreendimento social”. Juridicamente falando, está a meio caminho entre uma instituição de caridade e um negócio. “Somos uma empresa que visa ao lucro, porém com o coração de um empreendimento sem fins lucrativos”, explica o fundador, Ted Barber. “Nosso objetivo é fazer do mundo um lugar melhor.”
A afirmação não é palavra vazia, mas sim um objetivo explícito, que consta no contrato social da empresa. Essa é uma das maneiras que algumas companhias encontraram para chamar a atenção para decisões empresariais que incorporam uma ética de justiça e compaixão e buscam elevar o patamar ético do mercado.
Tomemos como exemplo outra “for-benefit corporation” [empresa de interesse para a sociedade], a Greyston Bakery, uma padaria localizada na cidade de Yonkers, estado de Nova York, que contrata, treina e abriga desabrigados, ex-presidiários, viciados em drogas, desempregados que dependiam da previdência social, mulheres vítimas de violência doméstica e analfabetos — todos em situações que levam ao desespero.
Ao aprender ofícios como a confeitaria, os funcionários conquistam um meio de vida estável. A empresa fornece grande quantidade diária de brownies à fábrica de sorvetes Ben & Jerry’s, de Vermont, que os transforma em sabores como o Chocolate Fudge Brownie. O lema da Greyston é: “Nós não contratamos pessoas para fazer brownies, nós fazemos brownies para contratar pessoas”.
O Dalai Lama ficou deliciado ao ouvir falar da confeitaria e da classe de negócios que ela representa. As “B Corporations” [ou for-benefit corporations, conforme citado anteriormente], como são conhecidas nos Estados Unidos, têm a missão explícita de beneficiar a sociedade ou o meio ambiente, além de obter lucro — prosperar e fazer o bem. Essa missão dupla estimula a empresa a cumprir objetivos voltados para o bem geral, e não apenas fazer dinheiro.
Além das B Corporations, outra forma ainda mais significativa de prosperar e fazer o bem pode ser vista no resultado líquido no “tripé da sustentabilidade”: proventos, pessoas e planeta. Ter objetivos além do mero lucro redefine a maneira como uma empresa faz negócios.
A Patagonia, fabricante norte-americana de roupas esportivas, por exemplo, se tornou uma B Corporation em 2012, o que permite que a empresa busque benefícios ambientais e sociais tanto quanto o retorno financeiro de suas operações (ou até mais). Assim, por exemplo, a empresa pôde apoiar pesquisas de longo prazo, que gerariam retorno apenas anos depois, para produzir a borracha de seus trajes de mergulho a partir de um arbusto do deserto, em vez de petróleo.
Outro exemplo é a Warby Parker, empresa que produz armações de óculos — e doa um par de óculos a um morador de país em desenvolvimento para cada armação vendida. E a Jonathan Rose Companies, uma empresa de construção sustentável que faz casas para pobres e também cumpre com os mais altos padrões ambientais da certificação LEED [sistema internacional de certificação e orientação ambiental para edificações].
Empresas como essas recriam o capitalismo para ser significativo, não apenas lucrativo. Um dos primeiros empreendimentos sociais do tipo foi o Banco Grameen, de Bangladesh, cujo fundador, Muhammad Yunus, um notório pioneiro na concessão de microempréstimos para indivíduos que vivem na pobreza, ajudando-os a começar o próprio negócio de pequeno porte. Ao retornar ao banco, o pagamento das prestações do empréstimo pode ser novamente emprestado a outros indivíduos de baixa renda.
O Grameen representa um movimento nascente que atende por vários nomes, como “capitalismo consciente”, “negócios voltados para um objetivo” e “investimento de impacto”. Todos compartilham a mesma meta: transformar os negócios em uma força para o bem. Hoje, muitas corporações de grande porte valorizam, em alguma medida, a adoção de responsabilidade social corporativa, ou RSC. No mínimo, a adoção de RSC significa simplesmente seguir práticas de negócios éticas, mas muitas empresas vão além das próprias necessidades para promover o bem-estar social.
A cultura de engenharia da Cisco Systems, por exemplo, está voltada para a produção e instalação de sistemas de redes digitais e o fornecimento dessa expertise a outras empresas. O que a maioria dos que conhecem a empresa não faz ideia, entretanto, é o quanto a empresa leva a RSC a sério.
Um terço dos 60 mil funcionários da Cisco, por exemplo, mora e trabalha na Índia. Quando 1 milhão de pessoas ficou sem teto no sul do país depois da maior enchente dos últimos cem anos, os funcionários da empresa ajudaram a reconstruir 3223 casas inundadas, bem como um centro de saúde. Nesse meio tempo, os especialistas da Cisco forneceram conexão a quatro escolas para ensino remoto à distância.
Em resposta à crise de falta de atendimento médico para as crianças mais pobres do mundo, o braço de RSC da Cisco aplicou a expertise da empresa para projetar uma tecnologia de atendimento à distância. O sistema da Cisco permite, por exemplo, que pediatras de qualquer parte do mundo prestem consultoria a médicos de locais remotos, até mesmo para casos raros ou difíceis de tratar. Alguns foram implementados em hospitais dos Estados Unidos, mas outros estão no Brasil, na China, em Uganda — e naquela região inundada da Índia.
Contei ao Dalai Lama como algumas empresas estão se remodelando para se tornar uma força para o bem, implementando valores compassivos em operações já existentes. O conglomerado global Unilever, por exemplo, anunciou, como parte de seu objetivo maior de sustentabilidade, o plano de adquirir matérias-primas de meio milhão de pequenas fazendas do Terceiro Mundo, todas recém-incorporadas à cadeia de fornecedores da companhia — fornecendo-lhes ajuda técnica para que possam se tornar fornecedores confiáveis e passem a ter uma renda fixa.
Especialistas em desenvolvimento dizem que ajudar pequenos fazendeiros a aprimorar os negócios é a melhor maneira de melhorar a saúde, a educação e a economia das áreas rurais mais pobres do mundo.
Ao ouvir isso, o Dalai Lama exclamou mais uma vez: “Realmente maravilhoso!”.
“O problema é o lucro à custa da humanidade”, nas palavras de Marc Benioff, CEO da empresa de computação na nuvem Salesforce, que conversou comigo poucas semanas antes de meu encontro com o Dalai Lama. “As corporações têm recursos vastos — que o peguem e usem para o bem. Com o capitalismo compassivo, é possível ter sucesso e fazer o bem.”
A empresa de Benioff segue o princípio “1:1:1”, e doa 1% dos lucros, 1% dos produtos e 1% da hora de trabalho dos empregados a causas significativas — um modelo que, segundo ele, deveria ser adotado por outras empresas do ramo da tecnologia.
Seguindo a mesma linha, Warren Buffett e Bill Gates desafiaram outros bilionários a doar mais da metade de sua riqueza para caridade, como eles fizeram. Mais de duas centenas deles aderiram à campanha Giving Pledge, organizada por Buffett e Gates.
Existem muitos exemplos de capitalistas compassivos — embora o número ainda esteja longe de ser o suficiente. O próprio Dalai Lama, para mim, oferece um modelo de generosidade que todos podemos seguir, em alguma medida. Todos podemos, da maneira que for possível, “ajudar os outros”, como ele disse a um grupo de empresários.
Se é a temperatura emocional dos dias de hoje que torna os capitalistas bons ou ruins, até mesmo o local de trabalho oferece uma oportunidade para maior calor humano. Fiquei um tanto surpreso ao ouvir o Dalai Lama dar a um grupo de microempresários conselhos práticos sobre administração. Embora pudesse ter saído de um manual de recursos humanos, o aconselhamento foi baseado em seu modelo caseiro de compaixão.
Um empresário lhe disse que estava preocupado com o estresse e a desorientação de seus jovens empregados em início de carreira. O Dalai Lama respondeu o seguinte: “Para que tenham paz de espírito, deixe os funcionários mais jovens terem uma conversa interna — semanal ou mensal — sobre como se sentem, suas emoções, e não sobre o negócio”. Eles podem compartilhar ideias sobre como ser mais resilientes, mais eficazes, e sobre os desafios a enfrentar, acrescentou.
Além disso, o Dalai Lama elogiou o clima emocional de algumas empresas japonesas, que estimulam um sentimento de lealdade e segurança, como se o trabalho fosse um tipo de “família”. Melhorar o bem-estar dos funcionários é outra atitude benéfica que pode ser adotada pelas empresas.
Ao conversar com um grupo de CEOs, o Dalai Lama falou de um “capitalismo positivo”, em que “é possível seguir adiante, mas também permitir que outros façam o mesmo”.
Ele vislumbra as empresas trabalhando juntas para o benefício de todas, uma alternativa ao cruel pensamento de que o vencedor leva tudo. “As empresas precisam de senso de responsabilidade para trabalhar juntas de forma mais cooperativa — com menos ênfase no sigilo, no medo e na concorrência negativa. O fator-chave é a confiança. Precisamos de concorrência positiva: se eu progrido, eles também devem progredir para não ficar para trás. “A economia global”, diz, “é como um teto sobre todos nós, mas depende de pilares de sustentação individuais.”
Isso está de acordo com os conselhos de carreira que o Dalai Lama deu a um grande grupo de estudantes universitários: “Primeiro busque sua independência financeira. Depois, passo a passo, ande com as próprias pernas para poder ajudar outras pessoas”.”
Cuide de quem precisa
“Meus amigos, venham ajudar […] Uma mulher morreu congelada às três da madrugada no chão do Sebastopol Boulevard, agarrada à ordem de despejo que a deixara sem teto no dia anterior […] Todas as noites, mais de 2 mil pessoas enfrentam o frio sem comida, sem pão, muitas quase nuas.
“Ouçam-me, nas últimas três horas, dois centros de ajuda foram criados […] Já estão praticamente lotados, precisamos abrir outros por todas as partes. Hoje, em todas as cidades da França, em todos os bairros de Paris, precisamos erguer cartazes sobre uma fonte de luz na escuridão, à porta de lugares onde haja cobertores, beliches, sopa, onde seja possível ler, sob o título ‘Centro de Ajuda Fraternal’, estas palavras simples: ‘Se você está sofrendo, seja quem for, entre, coma, durma, recupere a esperança, aqui você é amado’.”
Este apelo emocionado foi ao ar na Radio Luxembourg, ouvida em grande parte da França,1 durante o duro inverno de 1954.
A voz no rádio era do abade Pierre, mais conhecido pelo título em francês, Abbé, defensor dos sem-teto da França e figura proeminente como combatente da Resistência Francesa durante a Segunda Guerra Mundial. O sacerdote era o autor do texto, que também foi reproduzido no maior jornal do país.
A reação foi avassaladora em todo o país, com a doação de centenas de milhões de francos, bem como de montanhas de cobertores e suprimentos. O Abbé Pierre imediatamente fundou as casas Emaús para os desabrigados.
As casas eram parcialmente sustentadas por um vinhedo doado ao projeto, e que o Dalai Lama visitaria anos depois. O abade impressionou profundamente o Dalai Lama: “Ele era maravilhoso, um grande amigo”.
Da mesma forma, quando se trata de praticar o amor e a compaixão, não é surpresa que a Madre Teresa imediatamente venha à lembrança do Dalai Lama. Os dois tiveram um breve contato, e, após a morte dela, o Dalai Lama visitou sua sucessora, a Irmã Nirmala, nas Missionárias da Caridade em Calcutá. Ele ficou emocionado com a dedicação das irmãs em ajudar os doentes e os pobres sem pensar em si mesmas. Eram exemplos vibrantes do ideal cristão.
Ele admira esses grupos de religiosos que, por exemplo, vão morar em áreas ruais remotas de lugares como a Índia e a África, sacrificando o próprio conforto para contribuir para a saúde e o bem estar dos necessitados, montando escolas e clínicas. Missões assim são “maravilhosas”, nas palavras do Dalai Lama, “uma comunidade a serviço da criação de Deus”.
Ele acrescenta, porém, que é muito melhor quando o objetivo do grupo é simplesmente aliviar o sofrimento, e não atender a um projeto de conversão. Mas esses projetos raramente, se tanto, se envolvem com o trabalho de incontáveis ONGs a serviço dos pobres. As “organizações não governamentais” buscam uma ampla gama de objetivos para melhoria social. São elas que estão nas primeiras fileiras da força mundial para o bem.
Uma frase tibetana define esse tipo de compaixão em ação: men la lhakpar tsewa. Ela pode ser traduzida como “ter especial preocupação pelos despossuídos”, defendendo os que não podem se defender, ajudando pobres, doentes, deficientes e outros que precisem de atenção.
“Mentalmente”, disse-me o Dalai Lama, “às vezes os ricos olham para os que passam necessidade e de vez em quando os ajudam. Não há, porém, respeito genuíno nesse ato. Essas pessoas também são seres humanos, com as mesmas capacidades. Todos temos o mesmo potencial, mas não as mesmas oportunidades”, acrescentou, observando que, nesse caso, o progresso depende de como a sociedade muda.
Isso me trouxe à mente um conjunto de dados sobre QI colhidos em todo o mundo e analisados pelo psicólogo James Flynn. Ele descobriu que, em nações com grupos de privilegiados e despossuídos, as crianças de famílias mais prósperas têm grande vantagem em termos de QI.
Quando, porém, as crianças mais pobres são mais bem nutridas e recebem educação sem discriminação de grupo — por exemplo, quando a família migra para outro país —, a disparidade no QI desaparece em apenas uma geração.
Tanto os privilegiados quanto os despossuídos têm a responsabilidade de trabalhar pela mudança, diz o Dalai Lama. Os privilegiados devem, de início, entrar em sintonia com o que é necessário para ajudar os despossuídos e depois oferecer recursos para ajudar na educação, no treinamento profissional e em outros aspectos semelhantes. A meta é “ajudá-los a andar com as próprias pernas”.
Os que passam necessidade, por sua vez, podem assumir a responsabilidade de ajudar a si mesmos. “Não importam as dificuldades”, aconselha, “não se sinta inútil ou desesperado. Você tem o mesmo direito de todos a uma vida mais feliz.”
Com esses esforços, diz ele, “as circunstâncias podem mudar para melhor”.
Se adotarmos a atitude da unidade de toda a humanidade, naturalmente veremos que “todos temos o mesmo direito a nos tornarmos pessoas felizes”. Não podemos simplesmente fazer pouco dos problemas dos necessitados, dizendo: “Ah, você não teve sorte”, e não fazer algo para ajudar.
“Quando traduzimos a compaixão em ação”, disse o Dalai Lama a um grupo de universitários envolvidos em projetos de ajuda, “é preciso ter uma motivação sincera – e também alguma percepção sobre a dinâmica que criou a situação. Vá na raiz do problema.” Por exemplo, o abismo de renda entre ricos e pobres. Além disso, acrescentou, é preciso ter visão clara e compaixão.
Para quem não tem religião, a abordagem é outra: “Somos animais sociais, e até mesmo os animais praticam atos de generosidade — compartilhando comida, cuidando do grupo ou, às vezes, simplesmente lambendo um ao outro. Se você é feliz e tem comida à vontade, mas seu vizinho está passando por dificuldades, é absolutamente natural ser generoso.
“Então, seja de que forma for, precisamos ajudar e servir quem está passando necessidade. Precisamos desenvolver a generosidade.”
AJUDANDO PESSOAS A SE AJUDAREM
Se você der uma boa caminhada pelas poeirentas ruas da Índia, é provável que acabe encontrando um leproso encolhido à beira do caminho, tendo ao lado uma pequena lata para receber moedas. O leproso pode não ter alguns dedos das mãos ou dos pés, ou até mesmo um dos membros — uma triste consequência da progressão da doença à medida que compromete os nervos.
O Dalai Lama costuma fazer doações a abrigos para portadores da doença. Um dos que mais o inspirou foi a comunidade Anandwan, fundada por seu amigo Baba Amte, que, quando jovem, era um devotado seguidor de Gandhi. Baba Amte acreditava que os leprosos precisavam de trabalho digno, não de caridade.
O próprio Baba Amte sofria de uma doença degenerativa medular progressiva que o relegou a uma cama a maior parte do tempo, mas, apesar do sofrimento, nunca deixou de ser um líder ativo. Baba Amte causou grande impressão ao Dalai Lama, que visitou uma comunidade Anandwan no oeste da Índia — uma vila com casas, oficinas, escolas, hospital e jardins verdejantes onde antes só havia terra improdutiva, toda construída por pessoas com hanseníase e outros deficiências.
O Dalai Lama se lembra de sentar na cama do Baba Amte e segurar-lhe a mão. “Eu disse a ele que, enquanto minha compaixão era muita falação, a dele brilhava por tudo que tinha feito. Ali estava alguém que era um exemplo vivo de compaixão em ação, uma inspiração para todos nós.”
Hoje, Anandwan cuida de mais de 2 mil vítimas da hanseníase e de mais de cem filhos desses doentes, centenas de crianças deficientes visuais e auditivas, além de órfãos e filhos de mães solteiras.
As normas sociais vigentes teriam tratado os residentes em Anandwan como párias, relegando-os à mendicância na crueldade das ruas. Mas não Baba Amte, que morava com eles na vila que construiu.
“Quando visitei o lugar”, conta o Dalai Lama, “todos tinham muito amor próprio e dignidade, todos eram iguais. Todos tinham um trabalho, um meio de vida. Quando envelheciam e se aposentavam, sempre havia alguém que cuidasse deles. Eram deficientes, mas tinham a cabeça erguida. Fiquei muito impressionado.”
Os moradores de Anandwan se sustentam com a produção de artigos que vão desde tapetes, cadernos escolares e cartões de visita de papel reciclado até armações de metal para camas, muletas e sapatos especiais que protegem os pés de portadores de hanseníase.
Baba Amte faleceu em 2008, mas seus dois filhos, ambos médicos, continuam o trabalho. De acordo com o relato mais recente, Anandwan e duas comunidades irmãs empregavam mais de 5 mil residentes.
“A atitude mental faz toda a diferença”, afirma o Dalai Lama ao rememorar a visita a Anandwan. “O trabalho lhes dá autoconfiança e amor-próprio, então todos têm muito entusiasmo.”
Quando o assunto é ajudar a quem precisa, o Dalai Lama — como Baba Amte — enfatiza a importância de alguém ajudar a si mesmo. Aqui, a atitude é crucial. “Muitas vezes, os pobres acham que não podem fazer muita coisa para ajudar a si mesmos.”
Ele acrescenta, porém, que são as causas primárias das dificuldades que precisam mudar. Eles têm o mesmo potencial de qualquer outra pessoa, mas precisam acreditar na própria capacidade e se esforçar. Assim, recebendo as mesmas oportunidades, podem ser iguais.
Ele me contou que representantes linha-dura do governo comunista da China divulgaram material de propaganda afirmando que o cérebro tibetano era “inferior”, e alguns tibetanos passaram a ter uma visão derrotista de si mesmos. Mas, quando recebiam a mesma educação e tinham as mesmas oportunidades na vida, os tibetanos iam tão bem quanto qualquer outro povo — e isso convenceu muitos deles de que nada tinham de inferior.
Ele usou esse exemplo com o morador de uma favela de Soweto, cuja casa visitou após o fim do apartheid. O homem disse que o cérebro dos africanos era inferior, por isso eles jamais seriam tão inteligentes quanto os brancos.
O Dalai Lama ficou chocado e triste. “Argumentei que é totalmente equivocado. Se você perguntar a cientistas se há quaisquer diferenças devido à cor, dirão definitivamente que não. A questão é igualdade. Agora que você tem a oportunidade, deve trabalhar duro. Você pode ser igual em qualquer caminho.”
Assim, ele argumentou com convicção para convencer o homem do grande potencial da África e que o longo período de dominação colonial roubara a autoconfiança dos africanos, mas ela podia ser recuperada — como ocorrera com os tibetanos — com igualdade social, oportunidade e educação. Depois de muito discutir, o homem suspirou e disse, em voz baixa: “Agora estou convencido. Somos iguais. Acredito nisso”. “Senti um tremendo alívio”, lembra o Dalai Lama. “Pelo menos uma pessoa tinha mudado a maneira de pensar.”
AUTOCONTROLE
É claro que os ricos – como moradores de países desenvolvidos que buscam ajudar áreas empobrecidas como as regiões ruais da Índia e da África – devem ajudar com “educação, treinamento e equipamentos”, diz o Dalai Lama. Ele acrescenta, porém, que essa é apenas metade da solução. Os oprimidos também precisam ajudar a si mesmos. Qualquer grupo que se veja em desvantagem economica ou sofra discriminação precisa lutar contra atitudes derrotistas, afirma, e encontrar a energia para conquistar uma vida melhor.
“A única maneira de reduzir o abismo entre ricos e pobres”, seja na África, nos Estados Unidos ou em qualquer outro lugar, diz ele, não é por reclamação e raiva, frustração e violência, mas “pela construção da autoconfiança, pelo trabalho duro e pela educação”.
Vejamos o exemplo de Mellody Hobson, a caçula de seis filhos (o primogênito é quase vinte anos mais velho) de uma mãe negra e solteira de Chicago. Hobson só viu o pai duas vezes, e dinheiro sempre foi um problema em casa.
Ao relembrar como era crescer sem uma renda estável e consistente, Hobson diz: “Havia essa sufocante sensação de insegurança financeira. Às vezes éramos despejados do apartamento onde morávamos e tínhamos que levar todos os nossos móveis e pertences para o quarto e sala de um de meus irmãos mais velhos. E, durante algum tempo, quatro ou cinco pessoas se apertavam por lá.
“Vivendo nessa insegurança financeira, não era surpresa quando nosso carro era confiscado. Às vezes, quando íamos ao mercado comprar comida, víamos nossos cheques sem fundo exibidos no balcão, para que o caixa não aceitasse outros. Outras vezes, minha mãe precisava pedir cinco dólares de gasolina fiados ao dono do posto para poder me levar à escola.”
Embora a família nunca tenha morado em um abrigo para sem-tetos ou dormido no carro, a falta de segurança financeira era assustadora.
Ainda assim, sua mãe era ambiciosa e esforçada e comprava apartamentos baratos e dilapidados para depois reformar. Hobson diz que herdou o espírito de “eu posso fazer” da mãe, que sempre dizia à filha que ela poderia conquistar qualquer coisa se trabalhasse duro.
“Ela sempre me dizia: ‘você pode ser qualquer coisa’”, lembra Hobson.
A incerteza e a vida caótica serviram de impulso para ela, que aos cinco anos de idade já dizia à mãe que nunca seria pobre.
“Eu olhava ao meu redor e dizia, isso nunca vai acontecer comigo. Eu odiava aquilo.” Ela estava, como admite, “obcecada”. Estudava horas a fio, trancada no banheiro e sentada no chão enquanto deixava a água correndo para diminuir o barulho da casa e conseguir se concentrar melhor nos deveres da escola. Ela sempre esteve entre os melhores alunos da turma.
Hobson estudou na Ogden Elementary School, uma das principais instituições públicas de Chicago, localizada em um bairro de classe alta. Mas a mãe não podia realmente se dar ao luxo de alugar um imóvel na região: “Eu me mudei muitas vezes — fomos despejados muitas e muitas vezes. Aquilo me deixava irritadíssima, principalmente por causa de todo o esforço que eu fazia para esconder minha situação dos amigos e de outras pessoas”.
A Ogden, uma das primeiras dos Estados Unidos a oferecer altos padrões academicos do programa International Baccalaureate, era o único elemento estável de uma vida caótica. “A escola era tudo para mim naquele momento – tudo. Ela me dava a ordem e a estrutura por que eu tanto ansiava e era confiável. Eu sempre ia para a mesma escola, mas nem sempre voltava para a mesma casa”, contou Hobson.
Esforçada como a mãe, desde cedo Hobson adquiriu a concentração e a agarra que lhe permitiam estudar horas a fio e que até hoje comandam sua rotina. Ela se levanta às quatro da manhã para intensa rotina de exercícios – corrida, natação e spinning – e as seis já esta pronta para começar o dia de trabalho.
“Sempre fui muito disciplinada”, conta, “mas essa disciplina deriva de certa paranoia, eu acho. Sempre tive a sensação de que precisava ser assim para poder progredir.”
Essa determinação deixou a garota independente para conseguir o que os demais alunos da Ogden School tinham de graça. Se queria ir a uma festa de aniversário, tinha que dar um jeito de comprar um presente, chegar ao local e voltar por conta própria, porque a mãe geralmente estava trabalhando. Como a maioria dos colegas vinha de famílias ricas, Hobson “sabia como era o outro lado e queria chegar lá”.
Após concluir os estudos na Ogden, Hobson foi para uma escola católica preparatória para a universidade, com uma bolsa parcial. Ela lembra que, certa vez, a tiraram da sala de aula e lhe disseram para só voltar quando a mãe pudesse pagar a mensalidade. “Fiquei apoplética”, lembra. “Fui impedida de frequentar a escola por alguns dias, até que minha mãe conseguisse juntar algumas centenas de dólares.”
Hobson frequentou a Universidade Princeton graças a uma combinação de empréstimos e bolsas escolares. Sua monografia de conclusão de curso na Woodrow Wilson School of Public and International Affairs tratava de crianças sul-africanas vivendo sob o apartheid, cuja luta a comovia profundamente e colocava sua vida e seus desafios em perspectiva. Os pais dessas crianças trabalhavam longe, nas cidades ou nas minas de carvão, e elas ficavam por conta própria. Muitas se tornaram adultos altamente politizados, criando parte da força política que acabou por derrubar o regime do apartheid.
Após se formar em Princeton, Hobson foi trabalhar na Ariel Investments, onde está até hoje — o que faz dela uma raridade entre os outros 1100 formados em sua turma. “Esse fato faz sentido se você levar em consideração meu desejo de estabilidade”, explica. “Morei quatro anos em meu primeiro apartamento, e catorze no segundo, embora os dois fossem muito, muito pequenos. Financeiramente, eu poderia ter me mudado muito antes, mas acabei me deixando ficar, porque odeio mudança.”
Ela começou a carreira no setor de atendimento ao cliente e marketing da Ariel, e rapidamente galgou posições na empresa. Com apenas 31 anos de idade, Hobson se tornou presidente da empresa, cargo que ainda ocupa. Além disso, presta serviços a vários conselhos de empresas, tais como Starbucks e Estée Lauder, e é presidente do conselho administrativo da DreamWorks.
“Que maravilha!”, exclamou o Dalai Lama ao ouvir a história de Mellody Hobson.
Ele gostou ainda mais quando contei que ela trabalhou para estabelecer programas para crianças de poucos recursos financeiros que estudam em escolas públicas de Chicago, com o objetivo de dar lhes a educação e a confiança necessárias para colocar suas vidas em um círculo positivo.
O programa After School Matters oferece a 22 mil adolescentes da região central da cidade uma ampla gama de atividades, desde aulas com profissionais da Ópera Lírica de Chicago ou do Joffrey Ballet até cursos sobre manutenção de computadores, robótica, animação, belas artes, hip hop – cerca de mil opções no total. No verão, fornecem emprego para 8 mil jovens e é o maior empregador de adolescentes de Chicago.
Mais de 95% dos jovens pertencem a minorias e a maior parte vive abaixo da linha de pobreza. “Damos aos adolescentes a oportunidade de dar significado a suas vidas e, assim, lançamos as bases para um futuro bem-sucedido”, diz Hobson, presidente da organização.
A Ariel Community Academy, uma escola pública patrocinada pela empresa de Hobson, fica em uma região que estava entre as mais violentas de Chicago e que só agora passa por um processo de revalorização. Do corpo de alunos, 98% são afro-americanos e 85% são tão pobres que recebem alimentação gratuita ou subsidiada. Ainda assim, da pré-escola ao oitavo ano, o currículo dos alunos segue os mais altos padrões acadêmicos e privilegia a educação financeira.
Em um novo projeto, a empresa de Hobson doa 20 mil dólares a cada turma para serem investidos ao longo do ensino fundamental e médio. Na formatura, os estudantes devolvem os 20 mil para a turma que vai começar o primeiro ano do ensino fundamental, para que o programa se autoperpetue.
Metade do lucro obtido é dividida entre a turma toda. Para cada criança que colocar a parte que lhe cabe em um plano de investimento para a faculdade, a Ariel Investments doa mais mil dólares.
Hobson explica: “Queremos prepará-los” para investir em fundos de aposentadoria e ensinar-lhes o valor dos fundos adicionais oferecidos pelas suas empresas, “que são dinheiro grátis”. Assim, eles começam a pensar na aposentadoria desde crianças — muito antes de começar a carreira.
Quaisquer fundos remanescentes vão para uma instituição de caridade indicada pelo estudante. Expressando um sentimento que o Dalai Lama certamente aplaudiria, Hobson me contou: “Não queremos que as crianças pobres sempre pensem em si como recebedoras de filantropia. Queremos ensinar-lhes a filantropia também”.
Algo nessa mistura vale a pena. Ano após ano, em provas de matemática aplicadas em nível estadual, os alunos ficam entre os primeiros, e a escola já conquistou vários prêmios por diminuir a disparidade no desempenho acadêmico entre as crianças que vivem na pobreza e as de classes mais altas.
Esses resultados mostram, de maneira veemente, que os alunos da academia estão, entre outros benefícios, trabalhando uma faculdade mental inestimável para o sucesso: controle cognitivo, o poder de manter o foco e ignorar as distrações, adiar a gratificação imediata em prol de uma meta futura e amortecer as emoções destrutivas.
Essa capacidade foi medida em crianças de apenas quatro anos em um dos mais famosos experimentos dos anais da psicologia, o “Teste do Marshmallow”. Realizado em Stanford, o teste deu a crianças de quatro anos a opção de comer um marshmallow imediatamente ou esperar vários minutos para ganhar dois. As crianças participantes foram rastreadas no final do ensino médio e, surpreendentemente, as que conseguiram esperar tiveram resultados muito melhores nas provas de admisssão à universidade do que as que comeram o doce na hora.
Outro estudo de controle cognitivo com duração de trinta anos descobriu que essa habilidade singular era um melhor indicativo do sucesso financeiro e da riqueza das crianças do que o QI ou classe social a que pertenciam. Citando pesquisas econômicas que mostram que aprender essas habilidades na infância fomenta ganhos financeiros por toda a vida, os cientistas que conduziram o estudo defenderam o ensino do controle cognitivo — uma habilidade que pode ser aprendida — a todas as crianças, principalmente às que vivem uma situação de desvantagem.
“É muito importante”, disse o Dalai Lama quando lhe contei sobre os estudos, “ajudar as crianças a melhorar nisso — ensinar-lhes como fazer.”
Essa habilidade importantíssima se resume a uma única atitude, que pode ser ensinada, embora os psicólogos tenham usado diversos termos para descrevê-la. Carol Dweck, psicóloga de Stanford, usa a expressão “mindset” — a simples crença de que é possível conseguir. Se você está enfrentando um problema muito difícil, a questão é achar que “não dá para fazer” ou pensar que a solução simplesmente ainda não veio. Com a segunda atitude, você continua tentando — e tem muito mais possibilidade de conseguir. A crença de que é possível ser melhor em matemática, por exemplo, conseguiu prever com bastante precisão quais estudantes não desistiriam de um curso difícil e conseguiriam se sair bem.9
Na Universidade da Pensilvânia, a psicóloga Angela Duckworth estudou essa atitude de confiança como “determinação” — perseverar em metas de longo prazo apesar dos reveses e obstáculos. Combinadas com o controle cognitivo, descobriu ela, essas habilidades eram um indicativo de sucesso. A determinação, por exemplo, previu com mais precisão do que o QI os estudantes que se destacariam na média de notas em universidades da Ivy League e no concurso nacional de soletração.
Ambos os conceitos são atualizações de um antigo construto da psicologia: a distinção entre sentir-se um “peão” ou uma “origem”. Com a atitude de peão, o indivíduo se sente impotente diante de forças maiores. Quem se sente uma origem, no entnanto, acredita que pode se esforçar para mudar as circustâncias para melhor.
Gandhi defendia algo bastante semelhante, usando o conceito hindu de swaraj: autocontrole ou autodeterminação. Sobre a maneira como ajudamos alguém que precisa, ele fez as pessoas se perguntarem: “Isso vai devolver a essa pessoa o controle sobre a própria vida e o próprio destino? Em outras palavras, isso vai devolver o swaraj aos milhões de pessoas físicas e espiritualmente famintas?”
Esquerda x Direita
Esquerda e direita são classificações políticas mais dinâmicas do que parecem ser. Foram forjadas ao longo do tempo por meio de acontecimentos históricos nem sempre plenamente conhecidos. Em seu “Direita e Esquerda: Razões e significados de uma distinção política“, o filósofo italiano Norberto Bobbio defende que a classificação, mesmo que difusa, poderia continuar servindo de referência política na contemporaneidade. Segundo ele, é possível distinguir, por exemplo, os indivíduos que priorizam o coletivo por meio da igualdade dos que, pelo contrário, crêem na naturalidade da desigualdade e no fomento da competitividade. Em um contexto diferente, o economista norte-americano Murray Rothbard diz, em seu livro “Esquerda e Direita: Perspectivas para a Liberdade“, que a origem da esquerda estaria na contestação ao Antigo Regime — e o liberalismo puro seria, portanto, seu legítimo representante. Mas, ao permitir que a preocupação com os direitos naturais desse lugar ao utilitarismo, as ideias de liberdade teriam entrado em declínio e sido exploradas por grupos conservadores, criando um vácuo na esquerda que viria a ser logo ocupado pelos socialistas.
Alain Cohen-Dumouchel lembra que a esquerda francesa era composta principalmente por liberais até o fim do século XIX, que defendiam o homem comum e a livre iniciativa, contra os interesses monopolísticos e protecionistas.
Rodrigo Viana fala neste texto que, se a pessoa tende a enxergar a dicotomia esquerda x direita tão somente como uma mera tendência a se posicionar a favor de certas escolhas políticas (a realpolitik) envolvendo governos — como exemplificado em enquetes de perguntas e respostas de internet —, essa pessoa não entendeu a profundidade do que vem a ser esquerda e direita.
Ele diz que tal dicotomia não tem e nunca teve a ver com governos necessariamente, mas principalmente sobre o modo como o ser humano, enquanto ser social e não uma entidade atomizada, enxerga a si e a sociedade e em como essa sociedade responde a esse ser humano. Tal dicotomia tem a ver com o enlace ininterrupto desses efeitos. É o mundo visto em sua forma socio-antropológica e não por essa ou aquela campanha partidária, por exemplo.
Rodrigo também fala na existência de dois tipos de interpretações contrastantes que vivem em um eterno conflito. De um lado, uma tendência mais pessimista, tanto do ser humano quanto da sociedade, e do outro, uma mais otimista. Quando uma pessoa tem tendência ao pessimismo em relação à sociedade e ao ser humano, ela busca se apoiar em ideias de estruturas sólidas consolidadas, como por exemplo a hierarquia social, a tradição, a condição de conformidade, a ordem e normas sociais, unidade orgânica e etc. De forma semelhante, quando uma pessoa tende ao otimismo, sua busca está em ideias de estruturas racionais reformadoras e/ou inovadoras, tais como: igualdade, liberdade, tolerância social, secularismo social, direitos inalienáveis e etc. É nesse momento que as primeiras ideias políticas começam a ser esboçadas.
Enfim, o que vemos até aqui são assuntos complexos que perpassam variadas áreas do conhecimento humano — político, econômico, filosófico, sócio-comportamental, religioso, etc —, mas que, por vezes, são tratados de forma superficial em nossa era de polarização e disputa tribal. Expus aqui considerações que julgo relevantes ter em mente sobre todo esse assunto, com a motivação de tentar desfazer alguns espantalhos que muitas vezes criamos sobre certos temas sensíveis. E creio que, pelos trechos aqui compartilhados, citações diretas de três livros (“Uma força para o bem”, “Caring Economics” e “Liderança para um mundo melhor”), um artigo e uma entrevista, todos podemos ter uma ideia melhor da visão político-econômica do Dalai Lama.