A Não-Dicotomização
Duas vezes por ano, celebramos o O-Higan. Em termos da astronomia, é o dia do O-Higan que o Sol se ergue diretamente no leste e se põe diretamente no oeste. Desse modo, a duração do dia e da noite são iguais. O O-Higan também representa uma estação nem demasiado quente nem demasiado fria, assim simbolizando o Caminho do Meio do budismo. Durante muitos séculos, a semana do equinócio (igual duração do dia e da noite) foi escolhida como a Semana do O-Higan, dando-nos a oportunidade de nos reunir no templo, ouvir palestras, prestar algum serviço social, expressar-lhes nossa gratidão, e, em suma, dar-nos tempo para a auto-reflexão – quem sou eu, qual é a verdade das coisas. Penso que essa é a importância da época do O-Higan e de seus rituais.
O O-Higan é uma palavra japonesa: O é um título honorífico, e Higan significa “a outra margem”.
Mas, na verdade, Higan é uma abreviação de Tohigan. To significa “atravessar” e, como Higan quer dizer “a outra margem”, Tohigan quer dizer “atravessar para a outra margem”. To é a parte mais significativa da palavra Tohigan. Higan, a menos que sejamos muito cautelosos, torna-se um conceito. Mas To (atravessar, ir) não é um conceito; é a experiência, é a vivência. Desse modo, o importante é atravessar para a outra margem, e eu gostaria de enfatizar mais o To que o Higan. Ele quer dizer viver o dia-a-dia. O destino, a meta, o fim, o Higan, acaba por ser alcançado se você dá cada passo no caminho perfeito. Se os meios são perfeitos, é natural que alcancemos o objetivo perfeito. Assim, os meios são mais importantes que o objetivo. Eu não deveria dizer “mais importantes”, pois isso divide os meios e os fins em duas coisas, enquanto que os meios são fins e os fins são meios Sabendo-se isso, a palavra Higan torna-se perfeitamente compreensível sem o acréscimo do verbo To. Atravessar é a outra margem.
Já que a época do Higan é um momento para auto-reflexão, eu gostaria de falar sobre o ego. Parece que no chamado “mundo livre”, os países do Ocidente, nossa civilização e cultura são o auge do desenvolvimento do ego. Nossa ciência política, educação, economia, etc. estão todas voltadas para o desenvolvimento do ego, da personalidade individual. Parece-nos lógico e legítimo respeitar o indivíduo, reconhecer a dignidade do indivíduo. Mas temos uma forte inclinação a apoiar, desenvolver, expandir e afirmar o eu (A palavra “eu” – o self , o si-mesmo – parece indicar o indivíduo sem dar-lhe a conotação de egoísmo, enquanto que “ego” conota o egoísmo; no entanto, em essência, “eu, “ego” ou identidade individual talvez sejam a mesma coisa). Afirmamos nosso ego. “Eu tenho o direito, você não tem o direito de pôr-se em meu caminho”. Nosso conceito de liberdade significa esse desenvolvimento do ego. Nós, os norte-americanos, falamos em liberdade. Ao declarar liberdade, oprimimos os outros. O mesmo acontece com os russos. Ao declarar seu ideal, o comunismo, eles oprimem os outros. Seja a América livre ou a U.R.S.S. comunista, ambas estão desenvolvendo ou promovendo o ego. Toda a nossa civilização é essa promoção do ego, a expansão e desenvolvimento do ego.
O pensamento de Hegel, o filósofo alemão, consistia no reconhecimento de tudo, na aceitação de tudo; isto está certo, aquilo está certo, aceite isso, aceite aquilo. Os componentes da dialética de Hegel são: a tese, a antítese e a síntese. A tese é a realidade da situação presente. O elemento novo, que vem se opor à tese é a antítese. Unidas, a tese e a antítese formam a síntese. Este seria o processo da vida. Este seria o processo do estado da sociedade. Este seria o processo do progresso. O pensamento de Hegel não nega coisa alguma. Tudo é aceito e tudo se desenvolve por si mesmo no processo dialético de tese, antítese e síntese.
Já o pensamento do dinamarquês Kierkegaard, por outro lado, consistia em selecionar uma coisa e negar todas as outras. Esta é a base de seu existencialismo: tomar certa coisa afirmá-la e negar as outras. Hegel e Kierkegaard representam dois sistemas de vida. Kierkegaard negava tudo, mas afirmava a existência de Deus. O mesmo ocorria com Kant. Immanuel Kant, o mais importante filósofo da Alemanha, nega todas as coisas em sua “Crítica da Razão Pura”. No entanto, ao afirmar a razão prática, acaba afirmando Deus.
Carlyle, filósofo inglês conhecido por seu característico modo de vida, disse que a completa negação é a completa afirmação. Isto parece muito próximo do caminho ensinado por Buda. E também Kitaro Nishida, o notável filósofo do Japão moderno apresentou a mesma perspectiva de compreensão: a completa negação é a completa afirmação.
No budismo, especialmente no Prajnaparamita-sutra, ensina-se o não-ego. Com muita freqüência, o termo sunyata – o vazio, o nada, o suchness (a coisa tal como ela é)* – indica a completa negação, a essência do nada. No Prajnaparamita-sutra, a própria negação também é negada. Se existe alguma coisa afirmativa além da negação, não há negação. Assim, no Prajnaparamita-sutra, a negação também é negada. No meu entender, essa atitude da negação é muito importante. No Ocidente todas as coisas seguem o caminho da afirmação, enquanto que, no Oriente, o modo geral de expressão e compreensão é através da negação. A afirmação limita a si mesma. Só através da negação poderá a verdade absoluta ou total ser expressa.
Estamos muito habituados a isso no Ocidente: não queremos ser negativos, não queremos ser passivos; queremos sempre ser agressivos, positivos, ativos e dinâmicos. No Oriente, a atitude é mais passiva, mais negativa e mais estática; porém, essa qualidade estática, ou negatividade, não está relacionada com a positividade ou a afirmação. A negação oriental ou budista é que a própria negação é negada.
Kierkegaard e Kant negaram todas as coisas com a única exceção de terem afirmado Deus. Negar todas as coisas e afirmar uma coisa, não é negação no sentido budista. O caminho budista é que a negação também é negada. Nada é afirmado, mas tudo é negado. A verdadeira afirmação é que não existe nenhuma afirmação. A transformação contínua é a permanência. Samsara é nirvana; nirvana é samsara. O fluxo contínuo de água é o rio. Dizer que a completa negação é a completa afirmação é dizer que a própria transformação contínua é a permanência.
O shinshu ensina o “outro-poder”, negando o eu e confiando no outro-poder. Este é um modo muito perigoso de compreensão: negar o eu e procurar o outro-poder. Não, não se trata de duas coisas. Não existe nenhum outro poder além deste eu. A própria negação do eu é o outro poder.
Muitas pessoas compreendem isto como negar ou rejeitar o eu e então procurar o outro poder. Negar o eu e depender do outro poder, isto é dualístico. Não é este tipo de negação, mas sim a própria negação que é afirmação. Quando o eu se extingue, existe o outro poder. Sem extinguir o eu, não existe o outro poder. A extinção é o outro poder. A negação não é comparada com a afirmação, nem oposta a ela. O não-ego, o não-eu ou o “nada” não é comparado ou oposto a alguma coisa que existe. Higan – a outra margem – não está do lado de lá em comparação com o lado de cá; Higan está aqui. Quando esse eu se extingue, existe o verdadeiro eu. Higan, para mim, é esse não-eu; é a vida do não-ego e do não-egoísmo. Higan é claro, não é um lugar geográfico específico, um ali, uma outra margem; Higan tampouco é um mundo conceitual contraposto a este mundo. Nesta vida, quando transcendemos o ego, o próprio transcender é o não-eu.
Falamos sobre a unidade, a unidade de duas coisas. Essa não é a verdadeira unidade. Por exemplo, considera-se que marido e esposa estão unidos em uma única vida harmoniosa. Este é o conceito geral de unidade no Ocidente – a esposa enquanto indivíduo e o marido enquanto indivíduo estão unidos numa unidade, num ser único. Mas a unicidade budista não é este tipo de unicidade. Quando o marido extingue seu ego (o próprio marido) ou quando a esposa extingue seu ego (a própria esposa), quando tudo se extingue, existe unicidade. Unicidade não é unir em um só. Mas quando tudo se extingue no nada, isso é unicidade. Não unir, mas extinguir . A completa negação é a completa afirmação.
Nossa tendência é dicotomizar todas as coisas, e então tentar construir unidade e harmonia entre as duas metades. Não existe harmonia quando você põe duas coisas juntas. Somente quando extinguir a si mesmo é que você se encontrará. Esta é a compreensão básica do budismo: sunyata , o “nada”, a “coisa como ela é”. Há uma expressão japonesa “Jiriki wo suteru”: lance fora todo poder do eu. O próprio ato de extinguir o poder do eu é o outro poder.
Na expressão budista, também há dois modos de olharmos as coisas. (É claro que vivemos neste mundo espacial; vivemos no mundo temporal; e, assim, temos de ver as coisas de um modo relativo. Mas essa relação não é a verdade.) Como eu dizia, o budismo tem dois modos de compreender as coisas. Um deles é o modo de Hegel – aceitar tudo, todas as coisas são certas. A isto chamamos shoju, querendo dizer que nada é lançado fora, tudo é bom, tudo é belo e valioso, tudo tem seu lugar e por isso aceitamos todas as coisas e não negamos nada. Isto também é chamado de shoju-mon – o portal de shoju –, que significa deixar entrar todas as coisas.
O segundo modo que os budistas têm para compreender as coisas é o shaku buku. O portal do shaku buku é o de escolher uma coisa e negar todas as outras. Honen Shonin, o mestre de Shinran, afirmou “Senjaku hongan”, o que significa aceitar o hongan e rejeitar todas as outras coisas. Esse “senjaku hongan” – ou escolher o hongan (hongan é geralmente traduzido como “voto original”, o que talvez não transmita seu real sentido) – significa escolher a verdadeira vida e negar as demais. Dizer isso parece dualístico. Mas, escolher apenas o verdadeiro é, em si, negar o falso; trata-se de uma coisa, não de duas. A escolha do verdadeiro é a negação do falso. Honestidade quer dizer que não existe mentira. Você não abandona a mentira e estabelece a verdade. Não, não é isso. É uma unicidade simultânea.
É por isso que um é muitos e muitos são um, como se diz no budismo. Eu sou todos e todos são eu. No meu entender, esse mundo indiviso, não-dualístico, não-egóico, é Higan. Quando examino a mim mesmo, vejo que estou cheio de ego. Todos os problemas, misérias, infelicidade, inquietação, são ego; nada além do ego. Se você tem problemas em sua vida, preocupações em sua vida, isto nada mais é que o ego. O ego cria problemas, misérias e sofrimentos. O ego cia apego e fixações.
Numa recente reunião de grupo Asoka, um dos membros me disse:
— Sabe, Reverendo, há algum tempo o senhor escreveu um artigo sobre o desapego no Boletim. Eu sempre carrego esse artigo comigo e ele já me salvou várias vezes. Tenho muitos problemas e, quando penso nisso, vejo que eles são causados pelo meu apego aos amigos, ao dinheiro, a certas palavras que os amigos dizem… todas as misérias que experimento são causadas pelo meu apego, pela minha ignorância. E o seu artigo sobre o desapego… já nem sei quantas vezes ele me ajudou, está todo amarfanhado no fundo da minha pasta, mas ainda o carrego comigo. Eu só queria que o senhor soubesse o quanto aprecio aquele pequeno artigo.
Não me recordo quando escrevi aquele artigo, nem lembro o que escrevi. Esqueci por completo. Mas, naquela ocasião, devo ter sentido o desapego como algo muito útil para mim e, desse modo, minha expressão, minha experiência do desapego, colocada no papel, ajudou outras pessoas. Eu não tivera a intenção de ensinar os outros. O modo como eu sofro é o mesmo modo como você sofre e o mesmo modo como Buda Shakyamuni sofreu; e ele resolveu isso, assim como o fez Shinran, assim como o fez meu mestre Akegarasu. Eles viveram a vida. A vida deles é, em si mesma, ensinamento. Quando o sol brilha, todos nós nos beneficiamos. O Sol, o astro, não está consciente de estar sendo benéfico. O Sol nunca percebeu quaisquer motivos altruístas, nunca pensou, “Eu estou brilhando”. Ele apenas brilha. A vida também é assim. No meu entender, O-Higan é esse não-eu. Quanto mais ego encontro em mim, mais significado encontro no Higan. Não se trata do não-eu enquanto separado do ego, mas sim de, no próprio fato de perceber meu ego, eu alcançar o não-eu, o Higan.
Desse modo, para mim, o Higan é muito valioso para minhas próprias reflexões sobre os ensinamentos. E, este ano, o Higan significa para mim o não-eu, a vida do não-eu. Mas, é claro, o Higan, como geralmente é ensinado, consiste nos seisparamitas: compartilhamento, observância dos preceitos, paciência, esforço, meditação e sabedoria. Estas são as seis virtudes ou seis perfeições. Se você as levar a sério, cada uma delas conduzirá ao não-eu, à ausência do eu. A ausência do eu é o Higan, o mundo de Buda, o mundo do nembutsu, o mundo da unicidade – a completa negação que é completa afirmação. Essa é a verdadeira vida, a vida tal como ela é, o O-Higan.
* Não existe em português uma tradução perfeita para o inglês suchness. A expressão que escolhemos para traduzi-la terá a conotação de qualidade essencial, de qüididade, da essência de uma coisa, do conjunto das condições que determinam um ser particular. Ou, nas palavras de William Gilbert, presidente da Associação Budista Americana, em seu prefácio à edição original deste livro, “O que é Suchness? É a coisa tal como ela é e a vida tal como ela é. É a verdade tal como ela é. Suchness é o mundo, vazio de artificialidades ou maquiagens. É sonomama em japonês e tathata em sânscrito. Uma rosa é uma rosa; um lírio é um lírio; e eu sou eu. Este é o mundo do suchness!”
Trecho retirado do livro ”Budismo Essencial”
Saikawa Roshi: – “Quando sentados em “shikantaza”, que é a técnica do zazen, qualquer coisa que surja em suas mentes vocês devem deixá-las ir da mesma forma que vieram, sem tocá-las, compará-las ou julgá-las como boas ou ruins, certas ou erradas. Não toquem em nada. Com essa técnica estamos criando em nossa mente a não dualidade.
Na vida diária temos 100% de dualismo, bom ou ruim, eu e os outros, ganho ou perda, grande ou pequeno, vida ou morte e iluminação e delusão. Em todo o tempo, nessa dualidade, estamos checando e continuando com nossos pensamentos, mas a dualidade é um excelente instrumento para resolver problemas e nos comunicarmos com outras pessoas, assim, nossa mente cria a dualidade.
Toda a ciência e filosofia estão baseadas no dualismo, por isso a dualidade é uma grande ferramenta, mas também é capaz de criar grande sofrimento para a humanidade. Se vocês vão realmente fundo dentro de vocês, conseguirão ver que nós mesmos e todo o mundo não somos duais. Se vocês realmente virem esta verdade, poderão perceber que também a verdade é não dual. A base do mundo é não dual. Vendo essa verdade vocês poderão salvar a si mesmos e ir além de bem ou mal, poderão ir além de ganho ou perda, poderão ir além de vida ou morte, poderão ir além de iluminação e delusão.”
http://opicodamontanha.blogspot.com.br/2008/03/dualidade.html
A consciência não é alguém
Tenzin Palmo (Inglaterra, 1943 ~):
Há o pensamento, e então a consciência sobre o pensamento. E a diferença entre estar consciente do pensamento e apenas pensar é imensa. É enorme … Normalmente ficamos tão identificados com nossos pensamentos e emoções, que somos eles. Somos a felicidade, somos a raiva, somos o medo. Precisamos aprender a dar um passo para trás e saber que nossos pensamentos e emoções são apenas pensamentos e emoções. Eles são apenas estados mentais. Não são sólidos, são transparentes.
É preciso conhecer isso e então não se identificar com o conhecedor. É preciso saber que o conhecedor não é um alguém. […]
Você pensa que entendeu quando compreende que você não é o pensamento ou sentimento — no entanto, ir mais adiante e saber que você não é o conhecedor… isso te traz a pergunta: “Quem sou eu?”.
E essa foi a grande compreensão do Buda — entender que quanto mais recuamos, mais aberta e vazia se torna a qualidade de nossa consciência. Em vez de encontrar alguma pequena e sólida entidade eterna — ou seja, o “eu” — recuamos para essa vasta mente espaçosa que está interconectada com todos os seres vivos. Nesse espaço, você precisa perguntar: “onde está o ‘eu’?” e “onde está o ‘outro’?”.
Enquanto estamos no reino da dualidade, há “eu” e “outro”. Essa é nossa ilusão básica — é o que causa todos nossos problemas. Por causa disso temos o sentimento de ser bem separados. Essa é nossa ignorância básica. […]
Ao compreendermos que a natureza de nossa existência está além de pensamentos e emoções, que é incrivelmente vasta e interconectada com todos os outros seres, então o sentimento de isolamento, separação, medos e esperanças desmorona. É um alívio espantoso!
“Cave in the Snow”, loc. 3176
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