Atenção e sabedoria co-emergentes Lama Jigme Lhawang

Lama Jigme Lhawang (Gabriel Jaeger)
Meditação e Rituais Budistas, trabalho de pesquisa
Universidade de Kathmandu, Centro de Estudos Budistas
April 9, 2012

Todo o caminho budista pode ser compreendido por meio de uma estrutura chamada de os três treinamentos – os treinamentos da disciplina, da concentração e da sabedoria. Diz-se que a sabedoria não surge sem a concentração, e a concentração, por sua vez, não é alcançada na ausência de disciplina. No caminho budista, há duas qualidades mentais essenciais para que se possa empreender esses treinamentos: atenção plena e sabedoria. Sem sabedoria, não se pode discernir entre o quê evitar e o quê adotar no caminho espiritual. Sem atenção plena, não se tem consciência e vigilância necessárias para se observar a mente e cultivar o que é virtuoso e abandonar a não-virtude. No entanto, ainda que sejam consideradas qualidades mentais de um caminho gradual – atenção plena e sabedoria – são também um resultado do caminho, quando tomadas como as qualidades naturais em que um Buda repousa, descrita nas três aplicações da atenção plena do Buda. Uma vez que a mente do Buda não reside na dualidade e “vê” a realidade como ela é, por meio da atenção plena e da sabedoria, essas qualidades originais, em termos absolutos, são inseparáveis. No âmbito relativo, através de lentes convencionais, elas são apreendidas como possuindo diferentes aspectos. No entanto, no âmbito absoluto, são coemergentes. Onde há sabedoria, há atenção plena. Uma vez que a atenção plena esteja presente, a qualidade essencial da sabedoria está inseparavelmente presente. A relação entre atenção plena e sabedoria é o que será investigado neste artigo.

O caminho budista apresenta diferentes abordagens, de acordo com as diferentes capacidades e pré-disposições dos seres sencientes. De acordo com essas diferentes capacidades, são ensinados dois caminhos espirituais distintos – o gradual (tib. rim bzhin pa) e o súbito (tib. cig car ba). Para os que seguem o caminho gradual, “o caminho envolve a eliminação das obstruções, mas também requer cuidadosa aquisição ou construção das qualidades que, ao final, resultarão no estado de buda”. Para os seguidores do caminho súbito, “progredir no caminho envolve principalmente, eliminar os obscurecimentos que impedem que o nosso estado de buda inato emerja”. Aqui, a atenção plena e a sabedoria serão apresentadas principalmente conforme a tradição Abhidharma gradual e a tradição Mahamudra súbita, juntamente com suas interconexões.

No contexto do Abhiddharma, a palavra em inglês mindfulness (port. atenção plena), é em geral a tradução de smṛtiḥ em sânscrito, (tib. dran pa). É considerada um evento mental e definida como um aspecto da mente que permite manter a mente conectada a seu objeto, não deixando que o esqueça ou escape dele engajando-se a distrações. Além disso, George Dreyfus ressaltou que na tradição Abhidharma, “a atenção plena deve distinguir estados mentais saudáveis de não saudáveis”. Deste modo, tem um sentido cognitivo e avaliativo, que implica a “retenção da informação e também uma prospecção com respeito a metas espirituais”. Quanto à sabedoria, há dois aspectos – o dual e o não-dual. O aspecto dual da sabedoria é a tradução da palavra em sânscrito prajñā (tib. shes rab). É considerado um evento mental e definido como “a discriminação completa e perfeita de todos os fenômenos”. Assim, como um evento mental discriminativo, é permeado pela dualidade sujeito-objeto. O aspecto não dual da sabedoria é a tradução do termo em sânscrito jñāna (tib. ye shes). É o modo de repouso natural não-dual da mente e é definido como uma qualidade de conhecimento, que está originalmente presente, livre de todas as elaborações conceituais.

Convencionalmente falando, dentro da estrutura da tradição gradual, a atenção plena e a sabedoria podem ser cultivadas de formas aparentemente distintas, embora ao final estejam inter-relacionadas. No ‘Anapanasati Sutta’ (O Discurso sobre a Atenção Plena à Respiração), é apresentada uma conhecida meditação na qual o Buda utilizou o cultivo da atenção plena. Quando se dirige a atenção calmamente à respiração, surge uma familiaridade cada vez maior com os movimentos da respiração presentes. O praticante começa a se familiarizar com a própria mente, onde as distrações e a divagação já não são atrativas. Este é o aspecto de “familiaridade” da atenção plena. Cultivando a atenção plena à respiração, o praticante se torna estável e permanece constantemente consciente do que está fazendo no momento presente, recordando-se de manter a mente conectada à respiração. Este é o aspecto “recordatório” da atenção plena. Familiarizando-se com a respiração, recordando de retornar a ela quando se distrai, atinge-se finalmente o estado contínuo de não esquecer. Quando se estabiliza esse estado, um continuum de atenção plena se torna a base para desenvolver uma não distração ininterrupta da mente. Posiciona-se a mente na respiração e ela permanece ali, naturalmente e sem esforço. Isso é “força”, o terceiro aspecto da atenção plena. Uma vez que a qualidade natural de equilíbrio e imobilidade da mente esteja presente, surge a clareza da mente. Esta clareza percebe e discerne todos e cada um dos fenômenos dos quais tem consciência completamente e de forma direta. Este é o aspecto de sabedoria discernente dual (skt. prajñā) da atenção plena. “Uma vez que tenhamos desenvolvido os elementos de familiaridade, recordatório e de não distração, podemos dizer que realmente estamos plenamente atentos. Vasubandhu, em seu Abhidharmakoṣa, explica que a “atenção plena à respiração é prajñā, um conhecimento relacionado à inspiração e à expiração. Este prajñā é chamado atenção plena (skt. smṛtiḥ), porque este conhecimento da inspiração e da expiração surge em  coemergência com a força da atenção plena. Portanto, a atenção plena dual (skt. smṛtiḥ) surge inseparável da sabedoria discriminativa dual (skt. prajñā).

Na tradição Mahāmudrā, o grande siddha indiano Maitripa, radicalmente propôs que a meditação correta implica a não-atenção plena (skt. asmṛtiḥ). Aqui, Maitripa estava dirigindo sua crítica à concepção de atenção plena do Abhidharma, segundo a qual, da perspectiva de quem segue o caminho súbito, se o praticante está cultivando a atenção plena de acordo com o Abhidharma, estaria fortalecendo a dualidade sujeito-objeto, a estrutura básica da própria ignorância. Nesta tradição súbita, a partir do foco dual na respiração proposto na tradição Abhidharma prossegue-se para um estado sem foco. A atenção plena não dual deve ir mais além do simples julgamento ético, do recordar o passado e da prospecção. Nesse estágio, o senso de separação entre a mente e a respiração é naturalmente dissipado. Em vez de se conhecer a respiração, tem-se a experiência de ser a respiração. Conforme a mente dualista dissolve, transcende-se o próprio ponto de referência, onde nada mais há para se segurar. Não é mais necessário um objeto sobre o qual se posiciona a mente, com plena atenção. A qualidade natural deste continuum de atenção plena se baseia em espaço e clareza desimpedidos e ilimitados. Este é o aspecto de “sabedoria primordial não dual” (skt. jñāna) da atenção plena. Neste estado, não se busca pelo passado ou se antecipa o futuro. O passado cessou. Por essa razão, não há nada para se pensar a respeito. O futuro ainda não chegou. Portanto, não pode existir como objeto. Nessa presença não dual, a mente é liberada em seu estado natural de atenção plena, clara e não conceitual.

No entanto, para um principiante, nas fases iniciais da prática, até que estabilize essa atenção plena não fabricada, é necessária a capacidade de examinar a própria meditação, como ela está ocorrendo, e relembrar as instruções e sinais de realização, para que se possa progredir em tal prática. Esta capacidade de monitorar o próprio estado mental é chamada de “Espião da Atenção Plena” (tib. dran pa’i so pa). Nesta fase, por exemplo, volta-se a focar a respiração como sendo o objeto, seguindo o princípio de que “na dependência da prática com foco em um objeto, surge a prática sem objeto”. Aqui, as abordagens graduais referem-se a este “Espião da Atenção Plena” como a qualidade da “vigilância” (skt. samprajanya; tib. shes bzhin). No entanto, este não ocorre quando a mente é liberada em sua natureza clara e não conceitual, pela simples razão de que se requer esforço mental dual. “Porém, por se basear na capacidade de estar consciente da própria consciência, é apropriado utilizar o mesmo termo que designa a atenção plena presente no estado natural da mente, ou seja, ‘atenção plena da simples não distração’ (tib. ma yengs tsam gyi dran pa).” Esta atenção plena da simples não distração é uma característica que está sempre presente no estado natural claro e não-conceitual da mente. Portanto, mesmo quando se utiliza um tipo dual de atenção plena, como proposto no caminho gradual, se está utilizando a capacidade inata e fundamental da consciência de conhecer a si mesma, que se manifesta em sua forma não artificial de simples não distração. Esses dois tipos de atenção plena, dual e não dual, são chamadas ‘Atenção Plena com Esforço’ (tib. rtsol bcas kyi dran pa) e ‘Atenção Plena sem Esforço’ (tib. rtsol med kyi dran pa). Aqui, a atenção plena, naturalmente clara e não dual, é equivalente à sabedoria não fabricada e não dual (skt. jñāna; tib. ye shes). Assim, neste contexto, a atenção plena não dual e a sabedoria não dual são estabelecidas como presentes de forma inseparável. É interessante notar que a tradição Abhidharma destaca este nível de co-emergência não dual de atenção plena & sabedoria, afirmando que quando os discípulos do Buda ouvem, aceitam e praticam seu ensinamento, ou não ouvem, não aceitam e não praticam seu ensinamento ou quando alguns o fazem e outros não, o Buda permanece sempre indiferente, em atenção plena (skt. smṛtiḥ) e sabedoria (skt. prajñā) completas.

Em conclusão, em ambas as abordagens – gradual e súbita – atenção plena (skt. smṛtiḥ) e sabedoria (skt. prajñā/jñāna), embora convencionalmente apresentem aspectos e qualidades distintas, em termos absolutos, são estabelecidas como sendo aspectos inatos, coemergentes e inseparáveis da mente. No contexto gradual do Abhidharma, são entendidas como atenção plena & sabedoria coemergentes e duais (skt. smṛtiḥ-prajñā), consciente do objeto de meditação. De forma semelhante, da perspectiva súbita do Mahāmudrā, são vistas como a unidade atenção plena & sabedoria (skt. smṛtiḥ-jñāna) sem esforço e não dual, na ausência de qualquer objeto de meditação.

Tradução para o português do original em inglês “Co-emergent Mindfulness-Wisdom”

por Jeanne Pilli e Lama Jigme Lhawang

Bibliografia

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Gampopa. The Jewel Ornamento of Liberation: The Wish-fulfilling Gem of the Noble Teachings. Transl. by Khenpo Konchog Gyaltsen Rinpoche. New York: Snow Lion Publications, 1998.

Mipham, Sakyong. Turning the Mind into an Ally. New York: The Berkley Publishing Group, 2003.

Ngawang Pelzang, Khenpo. A Guide to the Words of My Perfect Teacher. Transl. under the auspices of Dipamkara in collaboration with the Padmaka Translation Group. Boston: Shambhala Publications, 2004.

Vasubandhu. Abhidharma Kosa Bhasyam. Transl. by Leo M. Pruden. Berkeley: Asian Humanities Press, 1990.

 

Lama Jigme Lhawang

Lama Jigme Lhawang (Gabriel Jaeger) é professor, tradutor, terapeuta e mestre de meditação na tradição budista dos himalaias. Iniciou seu treinamento no Budismo em 1995, no Brasil. Em 2003 muda-se para o oriente onde treina por 10 anos nos himalaias, especializando-se em história, lógica, psicologia e filosofia budista pela Universidade Dzongsar, na Índia e, posteriormente, forma-se como tradutor e intérprete da Língua Tibetana pelo Center for Buddhist Studies of Kathmandu University, no Nepal.

É também o fundador e diretor da Comunidade Budista Drukpa Brasil e presidente de honra da filial brasileira da Fundação Humanitária Live to Love Internacional. Atualmente vem desenvolvendo seu trabalho da Ciência Contemplativa oferecendo cursos de formação em psicologia contemplativa e meditação terapêutica, psicoterapia mindfulness, equilíbrio emocional, e no cultivo da atenção plena sendo instrutor internacional certificado pelo pelo Santa Barbara Institute of Consciousness Studies (California) em Cultivating Emotional Balance, um programa de formação baseado em evidências científicas originado através de encontros de S.S. Dalai Lama com renomados cientistas ocidentais e fundado pelos professores Dr. Paul Ekman e Dr. Alan Wallace.

Sites:

www.cienciacontemplativa.org

www.drukpabrasil.org

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