Brincadeira de criança Padma Dorje

Kid building sandcastle on Bridlington Beach, Yorkshire

No budismo de origem pan-tibetana, o Darma do Buda é inexoravelmente apresentado em três “veículos”. Estas são formas completas, ainda que cumulativas, de apresentar os ensinamentos do Buda para seres de diferentes inclinações e capacidades.

Quanto ao reconhecimento da natureza das coisas, falamos em samsara e nirvana. Samsara é a experiência cíclica, causada pela insatisfatoridade inerente de todas as coisas compostas, mesclada a nossa fixação a padrões ou hábitos de ignorância, o que chamamos de “aflições mentais”. Estas aflições nos fazem tomar essas coisas compostas como ameaçadoras, desejáveis, indiferentes, etc., e assim nos envolvemos com as coisas e aos poucos surgimos em e nos sentimos aprisionados a um mundo relativamente sólido que corresponde a esses hábitos.

Nirvana é a experiência além das aflições mentais, além dos extremos de existência e não existência, além dos contínuos surgimentos e desaparecimentos, e além da sensação de aprisionamento naquele mundo criado pelas aflições, que nos impedem de reconhecer a verdadeira natureza das coisas compostas.

Os seres humanos, de forma geral, estão ocupados de suas vicissitudes humanas, em particular doença, velhice, morte e nascimento. Quer dizer, isto não é totalmente verdade! A maioria dos seres humanos se encontra distraída com uma série de coisas cotidianas, tais como carreira, consumo e diversões de todo tipo ou relacionamentos – e vez que outra se depara com algo mais significativo, só para aquilo se mostras um pouco “demais” para lidar no momento particular que a pessoa vive, e ela rapidamente se voltar novamente para a distração.

Infelizmente, esta é a verdade da maioria das pessoas.

As pessoas que focam as grandes questões ficam deprimidas ou, mais raramente, se voltam para o engajamento espiritual, muitas vezes na mescla de desespero e falta de reflexão particular que algumas vezes chamamos de “fé”.

Entre as pouquíssimas pessoas que não se deprimem, e não sucumbem a uma não reflexividade ao se deparar com as grandes questões, há um subgrupo bem pequeno que tem alguma interdependência auspiciosa com a figura do Buda, e usa esse hábito positivo e essa ânsia por sentido para procurar seus ensinamentos.

Dentre esse grupo bastante restrito, há um grupo menor ainda que vai efetivamente se engajar na prática budista. Essas pessoas tomam refúgio no Buda e buscam, em primeiro lugar, superar o samsara e atingir o nirvana. Com este fim elas cultivam ética, estabilidade e sabedoria. Isto quer dizer que elas sistematicamente evitam prejudicar os outros, treinam em vários tipos de cultivos meditativos formais e informais (tais como fazer oferendas, prostrações e sentar em silêncio), e ouvem o darma de preceptores qualificados, que atingiram resultados através dos métodos ensinados pelo Buda. Elas ouvem o darma em pessoa, fazendo reflexões formais, eliminando dúvidas e aprofundando seu entendimento das palavras do Buda e da natureza da realidade diretamente e pessoalmente com esses professores.

Tudo isso, no entanto, se refere ao veículo mais estreito. Embora ele seja chamado de “mais estreito”, porque ele é focado na liberação apenas da pessoa que se engaja nele, ele é mais acessível para um “grande número de pessoas”. Claro, um “grande número” dentro desse grupo reduzido, dentro daquele grupo reduzido, e do outro grupo bem reduzido… Porém, esse caminho efetivamente leva ao nirvana, com engajamento, num número restrito de vidas.

Evidentemente que o Buda não criou o mundo ou causou o estado de coisas em que estamos, então ele não tem responsabilidade nenhuma sobre o número de pessoas que se interessa em efetivamente praticar. Por ele, todo mundo atingiria o mesmo estado que ele atingiu, o mais rápido possível. Mas isso não depende dele, mas sim dos, evidentemente, parcos méritos que nós temos agora como seres sencientes confusos. Por isso tão pouca gente se interessa no darma, e dentre essas, tão poucas chegam a se movimentar para conhecer a comunidade, e dentre essas, tão poucas chegam a praticar. Uma pessoa com uma mentalidade meio teísta pode pensar “puxa, porque o mundo que os budistas descrevem é tão difícil, porque o Buda fez isso ou aquilo ser tão difícil”, mas os budistas não se consideram (e tampouco o Buda) nem um pouco responsáveis pelos estados de coisas no mundo, ou por muita gente não ter capacidade ou interesse em cultivar estabilidade ou entender a natureza da realidade. Isso é explicado por interdependência, um entendimento em que estados de coisas não tem nenhum culpado ou responsável verdadeiro.

A perspectiva mais estreita reconhece os empreendimentos humanos usuais como “brincadeiras de criança”. Aí estão inclusas coisas tais como carros, casa própria, comida na mesa, falta de comida na mesa, ideologias, muitas coisas que chamamos de religião, educação, filosofia, carreira, relacionamentos, problemas de saúde, ciência… isto é, todos os empreendimentos humanos que não sejam o reconhecimento direto da natureza das coisas como elas realmente são. Uma pessoa que, portanto, tenha um senso agudo de que nenhuma dessas atividades vai resolver, por exemplo, o fato de todas as coisas compostas serem inerentemente insatisfatórias, muitas vezes abandona todas as “brincadeiras de criança” e, com muita seriedade, se engaja num caminho como, por exemplo, o caminho monástico – onde ela não perde tempo com mais nada que não seja a dedicação total e completa ao cultivo de ética, estabilidade e sabedoria.

Mesmo que porventura não chegue a adentrar o caminho monástico, uma pessoa que segue os preceitos do veículo estreito tende a ver com mau humor ou certo desprezo todas essas “brincadeiras de criança”. Ela até se engaja, porque não conseguiu totalmente se desvencilhar, mas essa pessoa acaba gerando certa aversão por tudo que não leve diretamente a ética, estabilidade e sabedoria, e até mesmo tenta não gerar apego por essas coisas, de forma a atingir um nirvana livre mesmo das formas mais grosseiras desses engajamentos tão puros.

No limite, a sabedoria, estabilidade e ética absolutas são o próprio estado livre de extremos do nirvana. Não há necessidade nem mesmo da “brincadeira de criança” adicional da aparência de prática espiritual, uma vez que o resultado é totalmente definitivo, e está além de expressão e não expressão.

No entanto, esse método é chamado de “estreito” exatamente porque ele tem certa má vontade com as tais brincadeiras de criança que chamamos de “samsara”. O segundo veículo, dito “grandioso”, abandona mesmo a fixação nessa seriedade ou mau humor.

Ora, o raciocínio grandioso implica, se levamos a sério a “brincadeira de criança” como algo que seja capaz de macular o nirvana, esse nirvana não pode ser dito propriamente infalível. Assim, o nirvana que exclui a brincadeira de criança parece ele mesmo se tornar algo extremo. Disso surge uma nova perspectiva de nirvana, um nirvana que seria além tanto de samsara quanto desse velho nirvana mal-humorado que se contrapõe ao samsara.

Ética aqui começa a incluir não ter nenhum tipo de má vontade com as brincadeiras de criança. Estabilidade aqui significa estabilidade em meio a todo tipo possível de brincadeira de criança. E sabedoria segue sendo não perder o reconhecimento de que tudo se trata de brincadeira de criança.

O grupo de pessoas que é capaz de almejar algo assim e refletir a respeito é ainda menor do que aquele restrito grupo capaz de praticar o veículo estreito. Mas então uma pessoa pode dizer, “não fale besteira, há muito mais praticantes do mahayana que em outras formas de budismo”. (“Mahayana” sendo o nome em sânscrito dessa segunda forma, a forma grandiosa, “maha”).

E, de fato, se nos focamos na religião com uma perspectiva de censo, há mais pessoas envolvidas com ideias mahayana do que de outras formas de budismo. Mesmo considerando que o vajrayana (o terceiro veículo) é também bastante popular.

Porém, é preciso entender que todos os praticantes do terceiro veículo aceitam e praticam completamente todos os ensinamentos do segundo veículo. E todos os praticantes do terceiro e do segundo veículos aceitam e praticam completamente todos os ensinamentos do primeiro veículo. Claro, dentro de contextos de interpretação e ênfase que podem diferir, mas eles não podem dizer de forma alguma que os veículos anteriores não fazem parte de sua prática. Então o grupo maior é sempre o de praticantes do primeiro veículo, que compreende, de uma forma ou de outra, todas as formas e estilos de budismo.

Outro motivo pelo qual o mahayana é mais restrito é exatamente por ser mais vasto. Explico. O mahayana acolhe com mais flexibilidade pessoas envolvidas profundamente na “brincadeira de criança”. Há um entendimento de que esteja você ciente ou não de que está envolvido com brincadeira de criança, o que ela é, de fato, é uma brincadeira naturalmente sem importância para sua verdadeira natureza. Assim, você pode parecer bem envolvido com ela agora, mas no fundo, o que realmente importa não é nem um pouco maculado por esse envolvimento.

Porém, isto faz o mahayanista, ou o bodisatva, o ideal do mahayana, algo extremamente incerto e difícil de caracterizar. Não é possível fazer um censo de bodisatvas.

Ainda, exatamente por essa indeterminação, o mahayana penetra em âmbitos vedados ao veículo estreito. O Buda, nos ensinamentos mahayana, diz para seus alunos renascerem em ambientes degradados, como ladrões e prostitutas. É exatamente nessas brincadeiras de criança em “meio ao lodo” que há mais necessidade de fazer brilhar o sentido supremo.

Por outro lado, os praticantes desenvolvem um olho não julgador, uma vez que os seres em todas as circunstâncias possíveis podem ser praticantes secretos, enviados do Buda para revelar nossas qualidades mais escondidas. Os praticantes nominais e autoproclamados do mahayana são pouquíssimos, os indeterminados, são de um número inconcebível. Assim, abandonando a vastidão numérica, abandonamos a perspectiva de vastidão em contraposição à restrição, e não há mais mau humor algum com o que quer que seja, muito menos números e quantidades.

Como uma flor que nasce branca no lodo, os ensinamentos do Buda florescem no mundo. Os treinamentos em ética, estabilidade e sabedoria, quando engajados com a perspectiva vasta e profunda do veículo grandioso, passam a afetar a tessitura da interdependência entre samsara e nirvana. E então nós podemos falar do Vajra.

Aquele nirvana além dos extremos, atemporavelmente inseparável do samsara em que todos os extremos naturalmente se anulam, é a força vital dos ensinamentos do guru.

O iogue das ilusões é aquele que transforma todas as brincadeiras de criança numa ilustração nítida da profundidade e vastidão do grande veículo, sem nenhum tipo de afetação.

Os dois primeiros veículos ainda possuem algum grau de afetação: isto é, eles ainda estão propondo algo em algum lugar que não seja uma brincadeira de criança, ainda há promessas e negociações. Em certo sentido, ainda há brincadeiras de criança ocultas nos métodos espirituais, que só são escancaradas com a implacabilidade do Vajra. Sem problema algum, há a cooptação de todos os métodos espirituais como brincadeiras. Mesmo quando o veículo grandioso fala em “além de pureza e impureza”, ele está em algum tipo de transação: ele está revelando alguma coisa, nos deixando satisfeitos com algo. Os métodos são abandonados, porque o que importa é o resultado. Para o Vajra, o resultado não implica nenhuma má vontade com os métodos, pelo contrário. Quanto mais brincadeiras possíveis, melhor.

Particularmente métodos espirituais, que o mahayana está sempre tentando usar e descartar, usar e superar, usar e “detonar”. O vajrayana, por outro lado, está sempre fazendo reciclagem de tudo, e nada é desperdiçado.

Ética, estabilidade e sabedoria são expressões fisiológicas e espontâneas no reconhecimento intrínseco da união atemporal de compromisso com a linhagem e a natureza das coisas.

Quando falamos do sentido definitivo, não há mais espaço para espertinhos.

O guru veste os robes monásticos, as roupas de um pai de família e o manto de um rei. A total ausência de afetação permite a integração completa de todos os modos da ilusão no sentido único definitivo. Assim, o compromisso com os três veículos é totalmente consumado, e externamente o praticante se porta como um monge, internamente como um iogue das ilusões, e secretamente como um soberano sobre todas as possibilidades e aparências.

Dentro do tempo, quem não precisa integrar esse entendimento com prática formal? Quem não precisa subjugar as aparências e controlar a própria mente? Quem não precisa usufruir do néctar do ensinamento do Buda na forma das instruções ao pé do ouvido? Caso seja esse nosso nível de prática, excelente.

Caso não isso, a oscilação entre prática no cotidiano e prática formal, e os três treinamentos e as perfeições e qualidades incomensuráveis com a aspiração sublime da iluminação de todos os seres.

E se mesmo isso for difícil, apenas o reconhecimento da natureza inerentemente insatisfatória das coisas compostas, e os três treinamentos de ética, estabilidade e sabedoria, com qualquer tipo de aspiração elevada que consigamos formular.

Caso nem isso seja possível, que pelo menos aspiremos encontrar o darma e o praticar. Caso, é claro, sejamos capazes de ver algum valor nisso.

eduardo-pinheiro-1Padma Dorje é praticante budista e autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos.  Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org.

Comentarios:

comments

  • ~omn~

    “A perspectiva mais estreita reconhece os empreendimentos humanos usuais como “brincadeiras de criança”. Aí estão inclusas coisas tais como carros, casa própria, comida na mesa, falta de comida na mesa(…)”

    Comida na mesa eles não ligam, mas comida na tigela eles pedem todo dia…

    • pdorje

      Os monges esmolam para benefício de quem oferece, não para benefício próprio. Afinal de contas, o Buda não precisava esmolar, ele era um príncipe. Ele podia comer tudo de delicioso e saudável, não precisava pedir restos de todos os tipos para pessoas de todas as classes. Ele fazia isso para beneficiar essas pessoas, não em benefício próprio.

      Seus comentários são sempre desagradáveis, você precisa rever isso. Ser chato é falta de compaixão.

      • ~omn~

        kkkkkkk
        Falou o compassivo que dá patada em todo mundo e se acha mais que tudo, mas que só escreve sobre Darma se alguém pagar e fez um canal no youtube sobre Budismo pra ganhar dinheiro (“Preciso de incritos pra monetizar!”) xD

  • ~omn~

    Que pena que o comentário do Padma Dorje me chamando de chato foi removido ;( ia tirar um print dele e fazer uma camisa…

  • ~omn~

    Olha que lindo, o comentário do pdorje ficou salvo no e-mail 😀
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    PS: Esperava mais desse site do que só apagarem comentários para proteger o autor patrocinado…