Como algumas pessoas podem ser bondosas e ativamente fazer o mal?

Pergunta: O budismo enfatiza ter compaixão pelos outros, tentando alcançar o “ponto vulnerável” em seus corações para se comunicar com eles. No entanto, recentemente em minha própria vida, percebi que existem pessoas que não me desejam bem e, de fato, procuram ativamente me prejudicar de alguma forma. Pessoas desonestas e manipuladoras existem e estar em sua presença pode ser verdadeiramente tóxico. De fato, tenho experimentado sintomas físicos reais de doença e fraqueza quando estou na presença de pessoas assim por muito tempo. É sempre permissível parar de tentar se conectar com esse tipo de pessoa e simplesmente retirar-se o máximo possível de sua influência negativa?

Geshe Tenzin Wangyal Rinpoche: Ao responder sua pergunta, é importante abordar a tendência humana de pensar que algumas pessoas são inerentemente ruins. Há casos na história em que muitas pessoas concordaram que uma certa pessoa era má. Por meio de nosso acordo, reforçamos a visão de que realmente existem pessoas más, mas é importante perceber que uma pessoa e suas ações estão sempre relacionadas a causas e condições relativas e que nenhuma pessoa é inerentemente ruim.

Uma visão fundamental do budismo é que todos os seres são inerentemente Buda. Então, temos que manter essa possibilidade em nossas mentes, esse espaço para reconhecer o outro como Buda. Precisamos perceber que enquanto para nós uma pessoa pode parecer má ou falsa, em outra circunstância, ou para outra pessoa, essa pessoa pode ser amorosa, bem-humorada ou solidária. Há sempre uma possibilidade de bondade. Saber que a bondade é possível em todos os seres sustenta um coração aberto em nós mesmos.

Com isso enquanto visão, é então necessário olhar para as suas circunstâncias específicas. Você pode reconhecer que para você um certo relacionamento não está indo bem, e então você se pergunta: “Devo evitar essa pessoa ou devo trabalhar nesse relacionamento?”

Considere a analogia da chama e do vento. Se você é uma chama, uma vela, e você é mais forte que o vento, o vento pode ajudá-lo a crescer. Se você é mais fraco que o vento, esse vento extinguirá sua luz. A força desse vento não é uma condição de ajuda para você e portanto você precisa de proteção contra esse vento ou deve evitar completamente o vento.

Quando você toma a decisão de evitar outra pessoa, é importante perceber que isso é uma questão da sua força e não do mal inerente do outro. Se você diz: “Bem, eu percebo que é possível que esse relacionamento possa ter outro caminho, mas dadas as nossas histórias, ou a nossa história, ou a força das emoções que surgem, isso não está acontecendo”, você ainda está deixando espaço em si mesmo para que a bondade dessa pessoa exista, mesmo que agora você não ache possível encontrar essa outra pessoa naquele espaço de bondade.

No final é importante perceber que nunca estamos realmente falando sobre os outros; estamos sempre falando de nós mesmos. Se você pensa em termos de preto e branco, bem e mal, você não está trabalhando bem consigo mesmo; você está fechando algo em si mesmo. Então, enquanto você deve ser honesto e lidar com cada situação de acordo com sua capacidade (que inclui evitar as situações que lhe causam dano), sempre reconheça o espaço dentro de você que reconhece a possibilidade de que a bondade existe em todos, que todos os seres são inerentemente Buda. Esse espaço dentro de você nunca pode ser destruído, e se nutrido amadurecerá como sua mente desperta. No entanto, esse espaço dentro de você pode ser obscurecido pelo medo e pelo pensamento em preto e branco. Esse é o inimigo a ser evitado.

Zenkei Blanche Hartman: Na verdade, o ensinamento do Buda enfatiza a compaixão por todos os seres, bem como a sabedoria do não-eu, como atributos de um ser desperto. No entanto, nunca vi a compaixão descrita como “tentar alcançar o ‘ponto vulnerável’ no coração dos outros para se comunicar com eles”.

Mestre Sheng Yen disse: “A compaixão não é simpatia, a compaixão não tem destinatários fixos e a compaixão não tem um objetivo. Compaixão é beneficiar imparcialmente todos os seres sencientes da maneira correta ”.

Pelo que entendi este ensinamento, se não estamos nos apegando ao eu, e se somos imparcialmente compassivos (literalmente “com o sofrimento”), intuiremos “o caminho certo”, necessário nesta circunstância particular para beneficiar este ser em particular. Isto pode acontecer porque somos realmente uno com todos os seres, e se nós experimentamos essa não separação quando estamos com o sofrimento deste ser, nós saberemos o que oferecer que realmente pode ser benéfico. A compaixão pode ser descrita como encontrar cada ser em cada momento com a pergunta: “Como posso ajudar?”

Nós praticantes budistas estamos constantemente trabalhando com os limites de nosso ego ou ideia de si mesmo no mundo. O grande professor Dogen Zenji disse: “Estudar o budismo é estudar o eu”. Esse trabalho é como conhecemos a natureza do ego, que é essencialmente um fenômeno reativo. Reatividade é apenas isso – um resultado do nosso sentimento algum tipo de impacto, seja interna ou externamente. No caso extremo, quando estamos nos sentindo sobrecarregados e sem saber como agir, não há problema em dar um passo para trás, para nos retirarmos e deixar os sentimentos, pensamentos e corpo se acomodarem. Todo o processo pode ser analisado em silêncio. Não é necessário que você se conecte com todos que conhece, nem deve sentir que isso é uma condição de sua prática. Você é completamente livre para escolher com quem você deseja passar o seu tempo. O que você está descrevendo, no entanto, é uma situação particularmente dolorosa. Um amigo espiritual pode ser de grande benefício para ajudá-lo a explorar melhor essas questões.

Narayan Helen Liebenson: O que é necessário na situação que você descreve é compaixão genuína combinada com sabedoria. Permanecer em uma situação insalubre não é sabedoria. Um exemplo disso seria um casamento abusivo: usar o dharma como razão para permanecer em tal situação é equivocado. Isso é equanimidade falsa. A cooperação com as ações inábeis de outra pessoa não beneficiará você ou a outra pessoa.

Todo mundo tem uma natureza búdica, mas para alguns, essa natureza é bastante obscura. Qualidades desviantes e manipuladoras certamente existem. Fingir o contrário é ingênuo. Nossa intenção é acordar, não ser ingênuo ou tolo. O autoconhecimento inclui ser capaz de discernir quando algo ou alguém pode ser prejudicial para nós. No entanto, devido ao nosso condicionamento, isso pode ser difícil; talvez precisemos experimentar um tipo de despertar para aprender a nos proteger.

O Buda, reconhecendo a facilidade com que somos influenciados pelos outros, disse que devemos passar mais tempo com aqueles que têm as qualidades que queremos ter: por isso, se procurarmos aprender a ter paciência, esteja com as pessoas que são pacientes. Se quisermos cultivar a sabedoria, esteja com aqueles que são sábios.

Claro, isso não significa julgar ou afastar aqueles que percebemos como não tendo as qualidades que admiramos. Nem queremos nos iludir pensando que nossa felicidade está nas mãos daqueles que possuem essas qualidades admiráveis. Se pensarmos que outra pessoa pode nos fazer feliz ou infeliz, estaremos iludidos.

A evitação hábil é um dos quatro tipos de esforço sábio. Por exemplo, se a dificuldade está no trabalho, podemos procurar um novo emprego. Como nossa escolha de amigos está sob nosso controle, podemos optar por passar tempo com diferentes amigos. Com a família, talvez seja melhor fazer uma pausa, com o compromisso de voltar quando nos sentirmos mais fortes.

Por favor, lembre-se no entanto, que a intenção com a qual tomamos medidas é da maior importância. Se interrompermos o contato com alguém por aversão, o resultado será um grau maior de aversão, sofrimento e contração. Se as ações advêm da sabedoria, o resultado é mais sabedoria, clareza e compaixão.

Todo relacionamento testa nossas limitações. É importante conhecer esses limites se quisermos permanecer interiormente livres mesmo diante da provocação. Podemos deixar o contato físico com aqueles que achamos que são tóxicos para nós, mas descobrir que ainda estamos intimamente em contato por causa de nossos pensamentos e emoções negativas. Então, deixar o contato exterior não nega a necessidade de trabalho interno.

Um dos trabalhos mais difíceis da vida é assumir total responsabilidade por cada reação que temos – sem nos culpar pelo fato de que as reações surgem. O trabalho interior é aprender a amar todos os seres incondicionalmente. Isto é muito difícil!

Como o guru hindu Neem Karoli Baba disse, “Não jogue ninguém para fora do seu coração”. Às vezes, a única maneira de continuarmos amando é deixar o contato com seres particulares. Às vezes, a melhor e mais sábia coisa a fazer é enviar amor bondade de longe. Mas ainda precisamos fazer o trabalho interior em algum momento ou outro em nossas vidas, caso contrário, o custo para os nossos corações é muito alto.

 

Artigo publicado originalmente em Lions Roar e traduzido por Daniele Vargas.

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