Como as pessoas podem ser intrinsecamente boas se tentam ativamente nos prejudicar?

Por Geshe Tenzin Wangyal Rinpoche, Blanche Hartman e Narayan Helen Liebenson

Pergunta: o budismo enfatiza ter compaixão pelos outros, tentando alcançar o “ponto macio” em seus corações, para se comunicar com eles. No entanto, recentemente, na minha vida, percebi que há pessoas que não me desejam bem e, de fato, procuram ativamente me prejudicar de alguma maneira. Pessoas desleais e manipuladoras existem e estar em sua presença pode ser verdadeiramente tóxico. Na verdade, experimentei sintomas físicos reais de doença e fraqueza quando estive na presença dessas pessoas por muito tempo. É permitido, de alguma forma, parar de tentar se conectar com esse tipo de pessoa e apenas se distanciar o máximo possível da influência negativa?

Geshe Tenzin Wangyal Rinpoche: Ao responder a sua pergunta, é importante abordar a tendência humana de pensar que algumas pessoas são inerentemente ruins. Há casos na história em que muitas pessoas concordaram que uma determinada pessoa era má. Através do nosso acordo, reforçamos a visão de que há pessoas malignas, mas é importante perceber que uma pessoa e suas ações estão sempre relacionadas a causas e condições relativas e que nenhuma pessoa é inerentemente ruim.

Uma visão fundamental do budismo é que todos os seres são inerentemente um Buda. Então, temos que manter essa possibilidade em nossas mentes, esse espaço para reconhecer o outro como um Buda. Precisamos perceber que, enquanto que para nós, uma pessoa pode parecer má ou enganadora, em outra circunstância, ou para outra pessoa, essa pessoa pode ser amorosa ou engraçada ou solidária. Sempre há a possibilidade da bondade. Saber que a bondade é possível em todos os seres mantém um coração aberto em nós.

Sendo essa a visão, é então necessário examinar suas circunstâncias específicas. Você pode reconhecer que, para você, um certo relacionamento não está indo bem, e então você se pergunta: “Devo evitar essa pessoa ou devo trabalhar esta relação?”

Considere a analogia da chama e do vento. Se você é uma chama, uma luz, e você é mais forte do que o vento, o vento pode ajudá-lo a crescer. Se você é mais fraco do que o vento, esse vento irá extinguir sua luz. A força desse vento não é uma condição favorável para você, então você precisa de proteção contra esse vento, ou deve evitar esse vento completamente.

Quando você toma a decisão de evitar outra pessoa, é importante perceber que esta é uma questão sobre sua força e não do mal inerente no outro. Se você diz: “Bem, eu percebo que seria possível que este relacionamento pudesse seguir de outra maneira, mas dadas nossas histórias ou a força das emoções que surgem, isso não está acontecendo”, você ainda está deixando espaço em você mesmo para a bondade daquele pessoa existir, mesmo que agora não ache possível encontrar essa outra pessoa nesse espaço de bondade.

No final, é importante perceber que nunca estamos realmente falando sobre os outros; estamos sempre falando sobre nós mesmos. Se você pensa em termos de preto e branco, bem e mal, você não está trabalhando bem consigo mesmo; você está fechando algo em você. Então, enquanto você deve ser honesto e lidar com cada situação de acordo com a sua capacidade (o que inclui evitar situações que fazem mal), sempre reconheça o espaço dentro de si mesmo que reconhece a possibilidade de que a bondade exista em todos, que todos os seres são inerentemente um buda. Esse espaço dentro de você nunca pode ser destruído, e se cultivado, amadurecerá como sua mente desperta. No entanto, esse espaço dentro de você pode ser obscurecido pelo medo e pelo pensamento preto-e-branco. Esse é o inimigo a ser evitado.

 

Zenkei Blanche Hartman: De fato, o ensinamento do Buda enfatiza a compaixão por todos os seres, bem como a sabedoria do não-eu, como atributos de um ser desperto. No entanto, nunca vi a compaixão descrita como “tentando alcançar o ‘ponto macio’ nos corações dos outros para se comunicar com eles”.

O mestre Sheng Yen disse: “A compaixão não é simpatia, a compaixão não tem destinatários fixos e a compaixão não tem objetivo. A compaixão beneficia de forma imparcial todos os seres conscientes do jeito certo “.

Como eu entendo este ensinamento, se não estamos apegados a um “eu”, e se somos imparcialmente compassivos (literalmente “com sofrimento”), intuiremos “o jeito certo” necessário nesta circunstância particular para beneficiar esse ser particular. Isso pode acontecer porque, na verdade, somos um com todos os seres e, se experimentamos essa não separação quando estamos em contato com o sofrimento desse ser, saberemos o que oferecer que realmente poderá ser benéfico. A compaixão pode ser descrita como encontrar cada ser, em cada momento, com a pergunta: “Como posso ajudar?”

Nós, praticantes budistas, trabalhamos constantemente com os limites do nosso ego ou idéia de si no mundo. O grande professor Dogen Zenji disse: “Estudar o budismo é estudar o eu”. Este trabalho é como conhecemos a natureza do ego, que é essencialmente um fenômeno reativo. A reatividade é apenas isso – um resultado nosso ao sentir algum tipo de impacto, seja internamente ou externamente. Em casos extremos, quando nos sentimos sobrecarregados e não sabemos como agir, é bom dar um passo para trás, remover-se e deixar que os sentimentos, os pensamentos e o corpo se acalmem. Todo o processo pode então ser cuidadosamente examinado. Não é necessário que você se conecte com todos que encontrar , nem sinta que esta é uma condição para a sua prática. Você é completamente livre para escolher com quem deseja passar seu tempo. O que você está descrevendo, porém, é uma situação particularmente dolorosa. Um amigo espiritual pode ser de grande benefício para ajudá-lo a explorar ainda mais essas questões.

 

Narayan Helen Liebenson: O que é necessário na situação que você descreve é a compaixão genuína combinada com a sabedoria. Permanecer em uma situação insalubre não é sabedoria. Um exemplo disso seria um casamento abusivo: usar o dharma como uma razão para permanecer em tal situação é equivocado. Isso é uma falsa equanimidade. Cooperar com as ações inábeis do outro não irá beneficiar você e nem a outra pessoa.

Todo mundo tem a natureza de buda, mas para alguns, a natureza de buda está bastante obscurecida. As qualidades desleais e manipuladoras certamente existem. Fingir que não é ingenuidade. Nossa intenção é despertar, não ser ingênuo ou tolo. O autoconhecimento inclui ser capaz de discernir quando algo ou alguém pode ser prejudicial para nós. No entanto, devido ao nosso condicionamento, isso pode ser difícil; talvez precisemos experimentar um tipo de despertar para aprender a nos proteger.

O Buda, reconhecendo o quão facilmente somos influenciados pelos outros, disse que devemos passar o tempo com aqueles que possuem as qualidades que queremos ter: por isso, se queremos aprender paciência, esteja com pessoas que são pacientes. Se quisermos cultivar a sabedoria, esteja com os sábios.

Claro, isso não significa julgar ou evitar aqueles que percebemos como não tendo as qualidades que admiramos. Nem queremos nos enganar pensando que a nossa felicidade está nas mãos daqueles que possuem essas qualidades admiráveis. Se pensarmos que alguém pode nos fazer felizes ou infelizes, estamos presos numa ilusão.

Evitar habilmente é um dos quatro tipos de esforços sábios. Por exemplo, se a dificuldade estiver no trabalho, podemos querer procurar um novo emprego. Uma vez que nossa escolha de amigos está sob nosso controle, podemos escolher passar tempo com amigos diferentes. Com a família, pode ser melhor fazer uma pausa, com o compromisso de voltar quando nos sentirmos mais fortes.

Por favor, lembre-se, no entanto, de que a intenção com a qual agimos é de extrema importância. Se rompemos o contato com alguém por aversão, o resultado será um maior grau de aversão, sofrimento e fechamento. Se as ações vêm da sabedoria, o resultado é mais sabedoria, clareza e compaixão.

Todo relacionamento prova nossas limitações. É importante conhecer esses limites se quisermos permanecer internamente livres, mesmo em face de provocações. Podemos deixar de lado o contato físico com aqueles que achamos que são tóxicos para nós, mas descobrir  que ainda estamos internamente em contato por causa dos nossos pensamentos e emoções negativos. Então, abandonar o contato externo não nega a necessidade do trabalho interno.

Um dos trabalhos mais difíceis na vida é assumir completa responsabilidade por toda e qualquer reação que temos – sem nos culpar pelo fato de que as reações surgem. O trabalho interno é aprender a amar todos os seres incondicionalmente. Isso é muito difícil!

Como o guru hindu Neem Karoli Baba disse: “Não jogue ninguém fora de seu coração”. Às vezes, a única maneira de continuarmos amorosos é evitando entrar em contato com certos seres. Às vezes, a melhor e mais sábia opção a fazer é enviar bondade amorosa de longe. Mas ainda precisamos fazer o trabalho interno em algum momento de nossas vidas, caso contrário, o custo para nossos corações é muito alto.

Artigo traduzido por Marcos Bauch do original em inglês publicado em Lions Roar. 

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