“O sofrimento só será um problema quando não reconhecermos nenhuma possibilidade de nos libertarmos dele. Enquanto estamos dispostos a trabalhar com nossa dor, ela se torna uma experiência produtiva. É isso que nos faz querer ser livres. De outra forma, como teríamos sequer a ideia de liberdade — liberdade com relação a quê? O sofrimento faz nossa aspiração ser muito mais poderosa ao torná-la real. Age como um catalizador; reforça nossa decisão de trabalhar com a própria mente.”
“É necessário um forte sentido de resolução para que nos asseguremos de coração que não queremos encarar nosso sofrimento com a mesma velha mente de confusão e ignorância. Que não queremos perpetuar os padrões antigos habituais que de nada servem senão para nos fazer sentir perdidos e garantir que nosso sofrimento reaparecerá, talvez de forma ainda mais intensa. Dizemos para nós mesmos: “De agora em diante, realmente quero ser livre, me libertar desse sofrimento e dessa dor.” Se não for assim, se estivermos contando com um milagre ou alguma forma de intervenção divina, sem esforço da nossa parte, é como contratar um assassino de aluguel sem qualificação. Seguimos esperando que ele faça o trabalho que contratamos, mas nada acontece. Enfim percebemos que a pessoa que contratamos para nos livrar de nossos problemas não vai fazer nada. Temos que nós mesmos atirar em nossa ignorância, à queima-roupa.
O ponto é o seguinte: espiritualmente, somos os únicos responsáveis por nós mesmos. Esse é o princípio básico dessa jornada não teísta. Não conseguimos olhar para cima e dizer com confiança que tem alguém ali, alguém acima, que vai nos salvar, pelo menos se cumprirmos nossa parte — aparecer nos locais e horários corretos e pagar o que é devido. Não há nada determinado que sirva como rede de segurança. Não podemos seguir fazendo negociações mafiosas e achar que, no final, tudo estará bem porque pertencemos à família. Do ponto de vista budista, assumimos a jornada sozinhos, somos a única pessoa que pode nos salvar.
Algumas vezes, de forma a desenvolver bem esse sentido de determinação unifocada, é necessário sofrer muito. Se temos uma dor de cabeça bem leve, por exemplo, tudo bem ser preguiçoso e não fazer nada a respeito. Contudo, se temos uma enxaqueca, faremos o que for preciso para nos libertar dela. Quando temos um sofrimentinho aqui e ali, podemos nos distrair e esquecer deles, mas quando temos um sofrimento real, então certamente começamos a prestar atenção e fazer algo a respeito. Por exemplo, quando uma pessoa tem problemas de abuso de drogas ou outros vícios, muitas vezes ela tem que ir até o “fundo do poço” em seu vício, antes de finalmente se sentir motivada a se comprometer com a recuperação.
Quando nos encontramos em uma situação em que nos sentimos sem esperança nenhuma, é nesse exato momento que começamos a ter um gostinho da verdadeira liberação. Quando estamos desesperados, quando perdemos tudo e não temos controle sobre o que está acontecendo conosco — é nesse momento que os ensinamentos podem nos causar maior impacto. Não se trata mais de ensinamento teórico. Quando estamos no fundo do poço de nossas vidas e estamos sofrendo profundamente, esse é o momento de sermos fortes. Não é hora de desistir, muito pelo contrário, devemos olhar para dentro e dizer: “Chega, não vou mais cair nesse padrão. Isso acaba hoje.” É ali mesmo que nos conectamos com o poder de nosso coração de buda rebelde e com a nossa mente da liberação individual, e assim nos colocamos na rota para a liberdade.”
—Dzogchen Ponlop Rinpoche
Todos os ensinamentos do Buda têm uma mensagem clara: não há nada mais importante do que conhecer a própria mente. A razão é simples – a fonte de nossos sofrimentos se encontram dentro dela. Ao sentirmos ansiedade, estresse e preocupação são produzidos pela mente. Ao ficarmos completamente desesperados, esse sofrimento também vem de nossa mente. Por outro lado, ao ficarmos loucamente apaixonados, flutuando nas nuvens, essa alegria também surge da mente. O prazer e a dor, sejam ambos convencionais ou extremos, são experiencias da mente. É a mente que vive cada momento da nossa vida e tudo o que percebemos, pensamos e sentimos. Portanto, quanto melhor conhecermos a mente e como ela funciona, maior a possibilidade de nos libertamos de estados mentais que nos derrubam, que secretamente nos machucam e que destroem nossa capacidade de sermos felizes. Conhecer a nossa mente não só leva a uma vida feliz, como também transmuta cada traço de confusão e nos desperta completamente.
Vivenciar o estado desperto é conhecer a liberdade no seu sentido mais puro. Esse estado de liberdade não depende de circunstancias externas. Não flutua com os altos e baixo da vida. É sempre o mesmo, não importa se vivemos perda ou ganho, louvor ou crítica, condições agradáveis ou desagradáveis. No início, temos apenas um breve lampejo desse estado, mas os lampejos podem se tornar cada vez mais familiares e estáveis. Ao fim desse processo, o estado de liberdade torna-se o próprio solo de nossa experiência.
A mente como um desconhecido
Imaginemos alguém que você vê todos os dias na vizinhança. Talvez o rosto ou jeito de caminhar e vestir dessa pessoa até nos seja familiar porque passamos muitas vezes por ele na rua. Mas nunca trocamos com ele mais do que um aceno ou um ”olá” por educação. Nunca iniciamos uma conversa, porque temos receio de nos aproximar de um desconhecido. Afinal, não sabemos se essa pessoa é louca ou sã – se é bondoso, amoroso, e potencialmente um bom amigo ou se é uma ameaça a sociedade. Já que estamos sempre ocupados e não há urgência alguma em descobrir qual é a desse cara, esquecemos e seguimos com a nossa vida. Mas, no dia seguinte, vemos essa pessoa outra vez, e no outro dia, também. Em algum momento, uma conexão vai se formar.
Em muitos aspectos, nossa mente é como o desconhecido que vemos na vizinhança. Podemos protestar: ”Como assim? Estou com a minha mente o tempo todo!” Dizer que a nossa mente é comum um desconhecido para nós pode soar absurdo. O problema, para a maioria de nós, é que nossa familiaridade com nossa mente não vai muito além do ”olá”. Temos dito ”olá” tantas vezes que achamos que somos velhos amigos, mas será que realmente a conhecemos? É mais provável que nosso relacionamento com ela seja muito distante – nada semelhante a uma amizade próxima, onde compartilhariamos boa parte dos seus momentos importantes. Estamos sempre cientes da sua presença, de suas características gerais e até de sua mutabilidade. Mas não conhecemos a sua história, não sabemos o que a toca e o que a faz vibrar. Podemos ter percebido que algumas vezes a mente se comporta de forma muito razoável e agradável, e outras vezes parece gritar e chutar. Ficamos atentos, já que não sabemos bem se essa desconhecida, a mente, acabará se revelando uma grande companheira, ou se de uma hora pra outra, ela nos atacará como as sombras em nossos pesadelos. Temos curiosidade, mas por segurança, mantemos distância. […]
Dois aspectos da mente
Como já percebemos, o budismo fala sobre a mente de várias formas diferentes. Há uma mente que é confusa ou adormecida e uma mente que é desperta ou iluminada. Outra forma de descrever a mente é descrever seus aspectos relativos e últimos. O aspecto relativo se refere a mente confusa, o aspecto último é a sua natureza iluminada. A mente relativa é nossa consciência comum, nossa percepção dualística comum do mundo. ”Eu” sou separado de ”você” e ”isso” é separado ”daquilo”. Parece haver uma cisão fundamental em nossas experiências. Tomamos como garantido que o bem existe separado do mal, o certo do errado e assim por diante. Essa forma de ver tende mais a causar incompreensão e conflito do que harmonia. O aspecto último da mente é a verdadeira natureza dela, que está além de todas as polaridades. É nosso ser fundamental, nossa consciência básica, aberta e espaçosa. Visualize um límpido céu azul, cheio de luz.
A mente cotidiana
A mente relativa é a nossa mente cotidiana, de percepções, pensamentos e emoções. Podemos chama-la também de ”mente de momento”, porque ela muda e se transforma muito rapidamente – agora estamos ouvindo, depois vendo, depois pensando, depois sentindo e assim por diante. Na verdade, são três mentes misturadas: mente perceptual, mente conceitual e mente emocional. Juntas, essas três camadas ou aspectos da mente relativa explicam toda nossa atividade mental consciente. É importante compreender como elas trabalham em conjunto e assim criam todos os tipos de experiencias que passamos.
Em primeiro lugar, a mente perceptual se refere a nossas percepções diretas de visão, som, cheiro, gosto e tato. Já que surgem tão rapidamente e, da mesma forma, passam também rapidamente, geralmente não prestamos muita atenção a essas experiências, perdemos todas de vista e seguimos diretamente ao segundo aspecto da mente, a mente conceitual ou dos pensamentos. A única exceção comum ocorre quando estamos tão cansados que sentamos sem nem conseguir pensar, começando aos poucos a perceber as cores das folhas nas árvores, o som dos passaros, e as ondulações em um lago – em outras palavras, quando temos uma percepção simples e direta do mundo. Mas, na maior parte das vezes, nossa mente está ocupada demais para reconhecer diretamente nossas percepções. Elas passam muito rápido.
Por exemplo, se temos uma mesa na nossa frente, logo que a percebemos, o que já estamos vendo é só pensamento: ”Ah, é uma mesa.” Não estamos mais vendo a própria mesa, estamos vendo o rótulo ”mesa” que é uma abstração. Uma abstração é tanto um artefato mental – uma ideia que formamos rapidamente, baseada em uma percepção – quanto uma generalização, uma etapa mais distante de nossa experiência direta. Essa etapa perde a experiência de contato genuíno, que passa mais informação, assim como maior sensação de prazer ou satisfação. Produzimos rótulo após rótulo, continuamente, sem nos dar conta de quanto nos distanciamos da própria experiência. Isso é o que chamamos de mente conceitual. Então, nossos conceitos se tornam gatilhos para o terceiro nível da mente, a mente emocional. Reagimos a esses rótulos e assim ficamos presos a nossos sentimentos habituais de gostar e não gostar, ciúmes, raiva e assim por diante. Acabamos vivendo em um mundo que é quase todo feito completamente de conceitos e emoções.
A mente e as emoções
Quando falamos sobre emoções, geralmente o que vem a mente são estados bem intensos de sentimento. Muitas vezes, olhamos as nossas emoções como ambivalência: elas podem ser desafiadoras, mas também nos são preciosas. Vemo-nas como algo nobre, mas também como algo devastador. Graças a seu poder, as emoções nos levam a superar nosso auto interesse convencional, inspirando atos de coragem e sacrifício pessoal, ou alimentam os nossos desejos a ponto de sermos levados a trair aqueles que amamos e a quem deveríamos proteger. Nas artes, seriam mais semelhantes a poesia e a música do que a documentários, por exemplo. A palavra ”emoção”, porém, não transmite adequadamente o que se quer dizer o termo no escopo budista. A diferença é que, no contexto budista, a palavra ”emoção” sempre se refere a um estado mental agitado, perturbado, aflito, sob a égide da ignorância e, muitas vezes, confuso. A qualidade de agitação ou perturbação implica que a mente emocional é um estado mental sem claridade e, que por isso, também é um estado que nos faz agir sem reflexão, isto é, sem sabedoria. Assim, as emoções são consideradas estados mentais que obscurecem a nossa consciência e que, portanto, interferem na nossa capacidade de ver a verdadeira natureza da mente. Por outro lado, os sentimentos que aumentam a experiência de abertura e claridade, tais como o amor e compaixão e a alegria, não são considerados ”emoções” no sentido budista; pelo contrário, são vistos como fatores mentais positivos, aspectos da sabedoria ou qualidades da mente desperta. Porém, qualquer sentimento muito forte – ainda que receba o rótulo de ”amor” – governado por traços possessivos, de apego mundano, de autogratificação ou por questões de controle é, sem dúvida, uma emoção no sentido convencional.
Valores enrijecidos
Como, muitas vezes, as experiências efetivamente diretas das coisas do mundo não estão presentes na nossa vida comum, acabamos por nos descobrir vivendo apenas em conceitos ou em um mundo emocional ligado ao passado ou ao futuro. Quando nossos conceitos se solidificam, quando se tornam tão profundamente enraizados no tecido de nossa mente que parecem ter se tornado parte de nosso ser, é ai que eles viram o que chamamos de ”valores”. Todas as culturas têm seus valores e princípios, mas se os aceitamos cegamente, sem fazer referência a sua subjetividade pessoal ou cultural, eles podem se tornar uma fonte de confusão, de julgamentos sobre a legitimidade de outras ideias ou mesmo sobre o valor da vida humana. Ainda assim, os valores não são diferentes de nossos outros conceitos, já que eles vêm dessa mesma mente cotidiana e são produzidos da mesma forma. Passamos rapidamente das percepções para os conceitos e, então, para as emoções, e aí é só mais um passo para os julgamentos de valor, conceitos tão solidificados que se tornam impassíveis perante as dúvidas e os questionamentos.
De uma forma geral, a sociedade parece se focar bastante na ideia de valores – valores democráticos, religiosos, familiares. Ela os vê como um poder para o bem e uma proteção contra o caos e a maldade. Algumas vezes, julgamos o que seria ”bom e seguro” e o que seria ”ruim e perigoso” com base em um único detalhe, a cor, por exemplo. […] É importante examinarmos o quão frequentemente os nossos rótulos realmente representam a realidade e o quão frequentemente elas a distorcem. […]
Todos nós sustentamos valores. Atualmente e cada vez mais, tudo parece dizer respeito ao bem e ao mal, ao certo e ao errado. Esses conceitos estão tão solidificados que parecem estar prestes a se tornarem lei. Eu não me surpreenderia se uma legislação de ”bem e mal” fosse apresentada no Congresso. Não temos só rótulos mundanos para definir o bem e o mal, o que é certo e errado, além disso, temos também os rótulos religiosos para ajudar.. ou para piorar. Todas as religiões parecem estar tentando nos assustar, em direção ao que é correto – ou ao que não é.
Presos no mundo conceitual
Se nos distraímos, o mundo conceitual nos toma por inteiro. É uma situação bem triste. Não podemos nem mesmo curtir um dia ensolarado, com as folhas sacudindo ao vento. Temos que rotular e, assim, passamos a viver com conceitos de sol, de vento, de folhas que se movem. Se apenas conseguíssemos deixa-los onde estão, não seria tão ruim, mas isso nunca acontece. A partir deles começa: ”Ah, que legal, é tão bom estar aqui. É tão bonito, mas seria ainda melhor se o Sol estivesse brilhando daquele ângulo.” Quando caminhamos assim, não somos nós caminhando, é um conceito caminhando. Quando estamos comendo, não estamos realmente comendo – é um conceito que come. Quando estamos bebendo, não estamos realmente bebendo – é um conceito que bebe. Em um determinado momento, o todo se dissolve em conceitos.
Quando o mundo externo se reduz a um mundo conceitual, não somente perdemos uma parte importante de nós mesmos, perdemos também todas as coisas belas do mundo natural: as florestas, flores, pássaros e as lagoas. .Nada leva a nenhuma experiêcia genuína. Então, nossas emoções entram em jogo, sobrecarregando os nossos pensamentos com a sua energia. Descobrimos que há coisas ”boas”, que trazem ”boas” emoções, e que há coisas ”ruins”, que trazem emoções ”ruins”. Quando vivemos assim todos os dias, tudo se torna muito cansativo, começamos a nos sentir exaustos e tudo fica pesado. Podemos pensar que o nosso cansaço vem do trabalho ou da família, mas, em muitos casos, não é nem um nem outro – é só a nossa mente. O que está nos deixando exaustos é a forma como nos relacionamos emocionalmente e conceitualmente com a vida. Corremos o risco de ficar tão presos ao reino dos conceitos que nada será inspirador, leve ou natural.
Essas três mentes – a perceptual, a conceitual e a emocional – são aspectos da mente relativa, nossa consciência mundana, que geralmente vivenciamos como um fluxo contínuo. Mas, na verdade, as percepções, pensamentos e emoções duram apenas instantes. São coisas impermanentes. Elas vêm e vão tão rapidamente que nem chegamos a ficar cientes da descontinuidade desse fluxo, do espaço que há entre cada evento mental. É como assistir a um filme de 35mm. Sabemos que é composto por muitos quadros individuais, mas devido a velocidade com que se move, nunca percebemos quando um quadro termina e o outro começa. Nunca vemos o espaço entre os quadros, da mesma forma que nunca vemos o espaço de consciência entre um pensamento e outro.
Acabamos vivendo em um mundo fabricado por esses três aspectos da mente relativa. Camada após camada, construímos uma realidade sólida, que acabou se tornando um fardo, confinando-nos a um espaço diminuto, a um cantinho de nosso ser, e deixando de forma muito o que realmente somos. Geralmente, pensamos em uma prisão como algo constituído por paredes e nos prisioneiros como as pessoas que estão ali dentro, retirados do mundo por causa de seus crimes. Os prisioneiros têm rotinas básicas que os acompanham ao longo do dia, mas as possibilidades de uma experiência plena e de um completo usufruto da vida estão bastante limitadas.
Estamos presos de forma semelhante, dentro dos muros do nosso mundo conceitual. O Buda ensinou que na base de tudo isso está a ignorância, o estado de não saber quem realmente somos, de não reconhecermos nosso estado natural de liberdade e, por isso, não realizarmos o nosso potencial para a felicidade, o contentamento e a fruição de nossa vida.
Nosso estado natural de liberdade
Essa ignorância é um tipo de cegueira que nos leva a acreditar que o filme que estamos assistindo é real. Como mencionei anteriormente, quando acreditamos que essa mente ocupada – esse fluxo de emoções e conceitos – e quem realmente somos, é como se estivéssemos dormindo e sonhando sem saber que estamos dormindo. Quando não sabemos que estamos dormindo em meio ao estado de sonho, não temos controle sobre nossa vida de sonho. O Buda ensinou que a chave para despertar e destravar a porta da nossa prisão é o autoconhecimento, que extingue a ignorância como alguém se alguém tivesse acendido uma luz em uma sala que esteve escura por um longo tempo. A luz imediatamente ilumina a sala toda, não importa quanto tempo tenha estado escurecida, e assim podemos ver o que não viamos antes – nossa verdadeira natureza, nosso estado natural de liberdade.
A liberdade pode ocorrer rapidamente. Em um momento, estamos atados a algo, a soma total de nossas vidas – nossos conceitos sobre quem somos, nossa posição no mundo, a força e o peso de nossos relacionamentos, a pessoas e lugares, estamos presos no tecido de tudo isso. Então, em outro momento, tudo se foi. Não há nada nos obstruindo. Estamos livres para passar pela porta. De fato, nossa prisão se dissolve ao nosso redor e não há nem do que escapar. O que mudou foi nossa mente. O eu que estava aprisionado, preso na armadilha, é liberado no momento em que a mente muda e percebe espaço onde antes percebia uma prisão. Se não há prisão, não pode haver prisioneiro. De fato, nunca houve uma prisão, a não ser em nossa mente, nos conceitos que se tornaram os tijolos e os gritões que nos confinaram.
Isso não quer dizer que não existam prisões verdadeiras – que não haja celas e carcereiros, que não haja forças no mundo que possamos nos confinar, inibir ou restringir. Não estou dizendo que tudo é pesamento e que pode ser simplesmente varrido com a mera vontade. Não devemos ignorar nenhum aspecto de nossa realidade. Mas até essas prisões e forças negativas externas surgem dos pensamentos dos outros – são produtos da mente de alguém, da confusão de alguém. Mesmo que porventura não possamos, hoje, fazer muito frente a essas coisas, temos agora o poder de trabalhar com a nossa mente, e assim, desenvolver a sabedoria para um dia lidar com a mente dos outros.
Mente imutável
Quando Buda ensinou sobre essa natureza impermanente e composta (ou agrupada) da mente relativa, ele o fez com o objetivo de apresentar a seus discípulos a natureza última da mente: a consciência imutável, pura e não fabricada. Aqui, o budismo se separa radicalmente de conceitos teológicos, como pecado original, que veem a humanidade como espiritualmente maculada por alguma violação herdada da lei divina. A visão budista afirma que a natureza de todos os seres é primordialmente pura e plena de qualidades positivas. Quando acordamos o suficiente ao ponto de ver além de nossa confusão, percebemos que mesmo os nossos pensamentos e emoções problemáticos são, no fundo, parte dessa consciência pura.
Reconhecer isso nos leva naturalmente a uma experiência de relaxamento, alegria e humor. Já que tudo o que vivenciamos no nível relativo é ilusório, não precisamos levar nada tão a sério. Do ponto de vista do estado último, é como um sonho lúcido, a vívida brincadeira da própria mente. Quando estamos despertos em meio a um sonho, não levamos nada do que ocorre no sonho muito a sério. É como dar uma volta nas atrações do Disney World. Um brinquedo nos leva até o céu noturno, onde nos vemos rodeados de estrelas, com as luzes de uma cidade lá embaixo. É muito bonito e nos cativa demais, mas nunca tomamos como sendo real. E, quando entramos na casa assombrada, fantasmas, esqueletos e monstros podem nos surpreender por um instante ou um por um pouco mais de tempo, mas eles também são engraçados, porque sabemos que nada disso é de verdade.
Da mesma forma, quando descobrimos a verdadeira natureza da nossa mente, somos liberados de uma ansiedade fundamental, uma sensação básica de medo e preocupação sobre aparências e experiências da vida. A verdadeira natureza da mente diz: “Por que se estressar? Relaxe e se sinta bem consigo mesmo.” A escolha é nossa, a não ser que tenhamos uma tendência extraordinariamente forte de lutar o tempo todo. Desse modo, até mesmo o Disney World se torna um local horrível. E isso também é escolha nossa. Nosso mundo moderno é cheio de opções: onde quer que estejamos, podemos escolher uma forma ou outra.
Muitas pessoas perguntam como é esse tipo de consciência. Seria a experiência dessa natureza verdadeira semelhante à de se tornar um vegetal, entrar em coma ou sofrer de Alzheimer? Não. De fato, não é nada disso. Nossa mente relativa passa a funcionar melhor. Quando damos uma folga para o nosso hábito constante de rotular, o mundo se torna límpido. Ficamos livres para ver com clareza; pensar com clareza e sentir a qualidade viva e desperta de nossas emoções. A abertura, a amplidão e o frescor da experiência fazem com que este seja um local muito bonito de se viver. Imagine-se no pico de uma montanha olhando para o mundo em todas as direções, sem obstruções. É a isso que chamamos de experiência da natureza da mente.
O mito do eu
Imagine que olhamos para a nossa mão, certo dia, e reparamos que ela está fechada, formando um punho. Está segurando algo tão vital que não conseguimos largar. O punho está tão fechado que a mão chega a doer. A dor na mão viaja até o braço e a tensão se espalha pelo corpo. E isso segue por anos a fio. Às vezes, tentamos tomar uma aspirina, assistir à televisão ou saltar de paraquedas. A vida segue, um dia esquecemos o que era tão importante e, então, a mão se abre: não há nada ali. Imagine a surpresa.
O Buda ensinou que a causa raiz de nosso sofrimento — a ignorância — é o que dá surgimento a essa tendência de agarrar. A questão que deveríamos nos colocar é: “A que estou me agarrando?” Deveríamos olhar bem fundo esse processo, para ver se realmente há algo ali. De acordo com Buda, estamos nos agarrando a um mito. É só um pensamento que repete “eu” tantas vezes que cria um eu ilusório, tal como um holograma que tomamos por sólido e real. A cada pensamento, a cada emoção, esse “eu” aparece como o pensador e também como aquele que vivencia, e ainda assim é apenas outra fabricação da mente. É um hábito muito antigo, tão arraigado que esse próprio agarrar se torna também ele próprio parte da nossa identidade. Se não estivéssemos nos agarrando a esse pensamento de eu, poderíamos sentir que algo muito familiar — como um amigo próximo — está faltando e, assim, uma dor crônica repentinamente desapareceria.
Como se segurarássemos um objeto imaginário, nosso agarramento ao eu não nos ajuda muito. Ele apenas nos dá dores de cabeça e úlceras, e logo desenvolvemos muitos outros tipos de sofrimento com base nele. Esse “eu” passa a defender a todo custo os próprios interesses, porque imediatamente percebe um “outro”. E, no instante em que temos o pensamento de “eu” e “outro”, o drama de “nós” e “eles” se desenvolve. Tudo acontece em um piscar de olhos: agarramos o lado do “eu” e decidimos se o “outro” está a nosso favor, contra nós ou se não faz diferença. Enfim, estabelecemos as nossas intenções: com relação a um objeto, sentimos desejo e o queremos atrair; com relação a outro, sentimos medo e hostilidade e o queremos repelir; e com relação a mais um outro objeto, somos indiferentes ou apenas o ignoramos. Dessa forma, o nascimento das nossas emoções e dos nossos julgamentos neuróticos é resultado de nosso agarramento ao “eu” e ao “meu”. No fim, não estamos livres nem mesmo frente aos nossos próprios julgamentos. Admiramos algumas de nossas qualidades e logo nos inflamos todos, desdenhamos outras qualidades e logo criticamos a nós mesmos, e assim ignoramos boa parte da dor que realmente sentimos, totalmente engajados nessa luta interna para sermos felizes com quem somos.
Por que persistimos nisso, quando nos sentiríamos tão melhor e mais relaxados se simplesmente soltássemos? A verdadeira natureza da nossa mente está sempre presente, mas, por não enxergá-la, acabamos nos apegando ao que conseguimos ver e tentando fazer dela algo que não é. Complicações desse tipo parecem ser o único jeito que o ego tem para se manter, isto é, criando um labirinto ou uma sala de espelhos para nos confundir. Nossa mente neurótica se torna tão revolta e enredada que fica difícil para nós rastrearmos o que ela está fazendo. Investimos nesse grande esforço apenas para nos convencer de que encontramos algo sólido dentro da natureza insubstancial de nossa mente: uma entidade separada e permanente — algo que podemos chamar de “eu”. Ainda assim, ao fazer isso, estamos indo na contramão da verdadeira natureza das coisas, da realidade. Estamos tentando congelar a experiência, criar algo sólido, tangível e estável com algo que não tem essa natureza. É como pedir ao espaço que ele se torne terra ou para a água que se torne fogo. Pensamos que abandonar esse pensamento de um “eu” é uma loucura, pensamos que a nossa vida depende desse pensamento. Mas, na verdade, a nossa liberdade depende de nós o abandonarmos.
…
O trecho a cima foi retirado do livro Buda rebelde: na rota da liberdade, lançado pela editora Lúcida Letra, com tradução de Padma Dorje (Eduardo Pinheiro).
”Há um buda rebelde em você. É a parte de você que já sabe como se libertar do medo e da infelicidade. Esse rebelde é a voz de sua própria mente desperta. É seu buda rebelde – a inteligência clara, precisa que resiste ao status quo. Ela te desperta da aceitação passiva da realidade do seu dia a dia e mostra o poder da sua natureza luminosa. É a energia vibrante e inspirada que te move a buscar a verdade. Dzogchen Ponlop guiará você pela revolução que se inicia ao liberar o buda rebelde. Ele explica como, ao treinar sua mente e entender sua verdadeira natureza, você pode se libertar do sofrimento desnecessário. Ele apresenta uma introdução aos ensinamentos essenciais do Buda e argumenta que, se desejamos trazer os ensinamentos à nossa experiência pessoal, devemos ir além das armadilhas culturais do budismo asiático tradicional. “Todos nós queremos encontrar alguma verdade importante sobre quem somos,” ele diz, “mas só a encontraremos quando formos guiados por nossa sabedoria – nosso buda rebelde interior.”
“Embora o budismo possa ser praticado religiosamente, em muitos sentidos, ele não é uma religião. Devido à sua ênfase no questionamento e no trabalho com a mente, ele é de natureza espiritual. Contudo, por confiar na análise lógica e no raciocínio, bem como na meditação, muitos professores budistas consideram o budismo uma ciência da mente e não uma religião. Em cada sessão de meditação, obtemos conhecimentos sobre a mente através da observação, do questionamento e da experimentação. Fazemos isso vez após vez e, gradualmente, desenvolvemos um bom nível de compreensão de nossa mente. (…)
Não importa como rotulemos os ensinamentos do Buda — como religião ou como caminho espiritual —, o corpo de conhecimentos contido nas escrituras budistas não foi planejado para substituir o nosso processo de questionamento. Ele é mais como um laboratório de pesquisa bem equipado, onde podemos encontrar ferramentas de todos os tipos para investigarmos a própria experiência. De fato, algumas visões budistas podem até ser vistas, em alguns contextos, como antirreligiosas.
Para começar, trata-se de uma tradição não teísta. Na perspectiva budista, não há uma entidade sobrenatural que existe fora de nossa mente. Não há um ser ou força que tenha o poder de controlar a nossa experiência ou dela criar um céu ou um inferno. Essa capacidade só existe em nossa mente. Mesmo seres iluminados como o Buda não têm o poder de controlar a mente dos outros. Eles não podem criar um mundo melhor ou pior para nós, ou dissipar a nossa confusão. A nossa confusão é criada pela nossa mente e só ela pode transformar a si própria. Assim, a entidade mais poderosa no caminho espiritual budista é a mente.”
—Dzogchen Ponlop Rinpoche, no livro “Buda Rebelde”. Compre o livro, clicando aqui.