Descongelando o outro

Publicaremos abaixo 2 textos de Gustavo Gitti, um publicado no site O Lugar e outro na Revista Vida Simples.

Para descongelar o outro

A maneira como nos relacionamos diz muito sobre quem somos.

 Começamos olhando para aquele nosso amigo tímido. A timidez parece existir lá fora, como parte de sua identidade, certo? Ainda assim, há pelo menos uma outra pessoa que não vê timidez alguma ali e no mínimo um ambiente no qual ela não aparece. Agora expandimos tal contemplação para todas as qualidades que atribuímos aos outros. Alguma característica pode ser apontada como permanente? É verdade que alguns condicionamentos persistem mais, como em alguém que fuma há 30 anos, mas ele não é fumante por natureza: antes não fumava e pode cortar o vício.

Não faz sentido falar em pessoas falsas, malignas, burras, vingativas. Tais negatividades não pertencem a elas, não estão incrustadas na pessoa, não estão entranhadas no âmago. São qualidades relacionais que se manifestam de acordo com a posição em que elas estão na sociedade, na empresa, na família, entre amigos.

Quem aponta “Ele é chato” revela o tipo de relação que foi “co-construída”, o modo como nasceram um ao outro. Não há chatice em ninguém ali. Portanto, se você reclama que vive cercado de pessoas superficiais, isso não diz nada sobre elas, mas diz muito sobre como você se relaciona.
Do mesmo modo, tudo aquilo que você pensa ser, sua “essência”, são apenas formas de relação que estabeleceu consigo diante do espelho e com as pessoas, objetos, locais, com o mundo em geral. Bastaria cortarem todos os meus vínculos atuais, inclusive com o apartamento onde moro, para eu começar a esmolar ou até mesmo roubar para conseguir comida, eu mudaria 100%. O problema é que esquecemos essa mobilidade e congelamos as pessoas como se elas fossem algo independente do contexto e do nosso olhar construtor.

Se não perdemos de vista essa natureza livre de atributos, aquele problema que parecia vir do outro agora se mostra como uma possibilidade (restrita) de conexão. E então naturalmente damos espaço a outros posicionamentos, olhares, gestos. O outro muda quando mudamos a relação.
Para andar num mundo de pessoas abertas e generosas, começo me abrindo. Oferecer o meu melhor é já ativar o melhor dos outros. Por outro lado, se enxergo manifestações transitórias como essências imutáveis, se não considero um criminoso como um potencial parceiro, isso é sinal de que estreitei minha visão, exatamente como aconteceu com o criminoso.

É inútil imaginar um mundo melhor e discursar sobre transformação social se continuamos congelando as pessoas ao nosso lado.

Gustavo Gitti trabalha em espaços de descongelamento www.gustavogitti.com

 O que estou tentando ganhar?

Quais joguinhos estamos constantemente sustentando e como eles distorcem a realidade?

Quando sentamos em silêncio ou fazemos TaKeTiNa (técnica que usa o ritmo para transformar corpo e mente), detectamos com mais contraste diversas vozes internas que sempre nos acompanham: “As pessoas estão se mexendo, você está imóvel, parabéns!” ou “Entre logo no ritmo, eles estão tão alegres, não fique excluída!”.

Algumas dessas vozes nos atrapalham como um ruído, outras começam a se confundir conosco, como se fossem nós mesmos pensando compulsivamente. Ao descrever e maquiar a realidade, elas nos distanciam do que está presente e configuram um jogo sutil pelo qual definimos quem somos, quem são os outros, o que é a vida e qual será nossa estratégia de ação. Em vez de apenas nos encontrarmos com os outros, passamos a competir, controlar, exigir, se irritar, reclamar, se exibir, excluir, culpar, se rebaixar, tentar agradar…

Quando me sinto frustrado com alguém, ou mesmo quando estou aproveitando uma felicidade condicionada com medo de seu fim, às vezes consigo me perguntar: “Qual jogo estou tentando ganhar?”. E toda vez me surpreendo: os sofrimentos e as crises nunca vêm da realidade, mas de meus joguinhos.

À procura de personagens vencedores, seremos sempre insatisfeitos. Toda vitória, por maior que seja, se encerra nos limites do jogo — e é a preparação mais perfeita para a derrota. Enquanto estivermos preocupados com nossos jogos, seremos incapazes de reconhecer outro ser. Por outro lado, se a sensação de fracasso ou sucesso não mais balizar nosso movimento, será fácil criar brincadeiras lúcidas para beneficiar as pessoas, assim como um avô usa o futebol para se aproximar do neto.

Quando relaxamos em alguma prática como TaKeTiNa ou meditação shamatha, aprendemos a soltar o controle dos videogames sutis, deixar cair nossa fixação a identidades e táticas. Quando essa liberdade fica um pouco mais estável, é a partir dela que nos relacionamos: de ser para ser, não tanto de personagem para personagem.

Não estamos acostumados a ser olhados assim, tão diretamente, além dos jogos. Para perceber como convivemos de modo utilitário — enxergando todo mundo a partir de nossos interesses e objetivos — imagine que loucura seria sair na rua e levantar o braço para alguém esperando que ele imediatamente nos atenda e traga comida; depois observe como isso parece normal dentro da dinâmica de um restaurante. É por isso que é raro uma pessoa não se sentir profundamente tocada pelo olhar e pelo sorriso de grandes seres como Sua Santidade o Dalai Lama: eles não jogam, então paramos de jogar.

* Publicado originalmente na coluna “Quarta pessoa”, da revista Vida Simples, em abril de 2013.

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