O grande veículo ensina que o Buda não precisava ter morrido, mas que manifestou a impermanência de seu corpo para dar um ensinamento àqueles fixados na perspectiva inferior. O Buda, “Aquele que Despertou” é impermanente? E caso não seja, não estaríamos divinizando a figura de nosso professor, o transformando numa espécie de deus com superpoderes?
Segundo o mahayana ensinado na maioria dos países asiáticos, o Buda ensinou em “três giros da roda do darma”, cada giro lidava com seres com diferentes graus de acúmen e receptividade.
O primeiro giro, focado nas “Quatro Nobres Verdades” e nos “Doze Elos da Originação Dependente”, foi ensinado de maneira mais ampla e pública, sendo o ensinamento mais benéfico para a maior parte das pessoas, e sem grande potencial de distorção.
O segundo giro, enfocado em vacuidade, a ausência de uma essência inerente aos fenômenos e pessoas, foi ensinado de forma mais restrita. Por ser de mais difícil compreensão, pode ser facilmente distorcido e transformado em niilismo, a noção de que causa e efeito não importam.
O terceiro giro, enfocado na natureza de buda, o potencial inato de cada ser senciente atingir a mesma realização de um buda, foi ensinado de forma ainda mais restrita; além de compreensão, requeria experiência meditativa. Ele também é um ensinamento facilmente distorcido, e pode ser transformado em eternalismo, a crença em algum tipo de “cheque em branco” espiritual, ou garantia de salvação.
O príncipe protegido perante a realidade
O ensinamento sobre a impermanência surge no primeiro giro. De fato, antes de ser um dos ensinamentos do Buda, foi algo que ele mesmo reconheceu agudamente e que o colocou no caminho espiritual.
A história de Sidarta relata que, devido a haver recebido uma profecia quando de seu nascimento, o pai do príncipe temia que o jovem viesse a ser um líder espiritual. Ele desejava que seu filho se tornasse, como ele, um rei, e levasse adiante os negócios do reino, protegendo os súditos como ele próprio fazia. A perspectiva de ver o filho como um líder espiritual não o agradava, e então, reza o cânone, ele protegeu a criança de todo tipo de contexto que o pudesse levar para a espiritualidade.
Assim Sidarta vivia no luxo e em grande felicidade, rodeado por boas condições, sem estar ciente de qualquer sofrimento ou problema em qualquer parte do mundo. Porém, conta a história, o jovem príncipe viu uma flor murcha.
“O que é isso?” ele perguntou ao assistente.
“Isso é assim mesmo, depois de um tempo as flores murcham. Acontece com todas as coisas.”
Essa revelação deixou Sidarta muito curioso, e ele então insistiu para ver as coisas do mundo como elas eram. No entanto seu pai prosseguiu na empreitada de protegê-lo do conhecimento de qualquer sofrimento. O rei então limpou e renovou um longo caminho especialmente preparado dentro do reino, de forma que a comitiva do príncipe só visse coisas belas.
Ainda assim, o príncipe teve as “Quatro Visões”. Nada sobrenaturais, as quatro visões foram avistar um morto, um doente, um velho e um renunciante usando os mantos de uma tradição religiosa. O assistente explicou ao príncipe tudo o que viram, e o príncipe entendeu que aquelas condições aconteciam com todos (ou pelo menos as primeiras três), e reconheceu na busca espiritual a única possível saída para aquele problema.
Foi então que Sidarta fugiu do palácio, se tornou um asceta, e começou o caminho que o levaria à realização da solução definitiva desses problemas e a ensinar sobre isso por 45 anos, por uma vasta região na Índia.
Três níveis de entendimento da impermanência
Portanto, foi o reconhecimento da impermanência e da imperfeição das coisas, em particular do corpo de cada ser humano, ou cada ser vivo, que o levou o próprio Buda a se colocar na direção do caminho espiritual.
A impermanência é um ensinamento do primeiro giro da roda, e é efetivamente a condição real das coisas. Quando se diz que o Buda é acordado, ele é acordado quanto a que? Quanto a verdadeira natureza das coisas.
Embora superficialmente concordemos com isso, e saibamos desse fato, na prática operamos como se as coisas fossem permanentes. Por esse motivo, ainda nos surpreendemos quando alguém jovem morre, ou quando algum eletrodoméstico em nossa casa para de funcionar. Se há surpresa nessas ocorrências, ainda não integramos o conhecimento da impermanência.
Ainda assim, a verdadeira natureza das coisas é que elas não duram, se transformam e não tem sustentação ou continuidade. Esse é o motivo pelo qual elas são, cada uma delas, inerentemente insatisfatórias.
Estes três níveis de reconhecimento podem ser detalhados da seguinte forma:
1. as coisas não duram: isto é, elas surgem e desaparecem. As coisas boas acabam, as coisas ruins acabam, as coisas neutras acabam. Nada dura para sempre.
2. as coisas se transformam: mesmo enquanto elas duram, elas nunca são as mesmas, elas estão em constante alteração. Toda matéria sólida que vemos é na verdade composta de partículas em constante movimento. As reações ali nunca cessam, e podem levar muito tempo, mas a cada instante, algo está diferente. Dentro de nossa mente também os pensamentos e percepções se sucedem uns aos outros e estão em constante mutação. As coisas mudam para melhor, mudam para pior, e mudam sem uma valoração específica.
3. as coisas não tem sustentação ou continuidade: embora as coisas pareçam surgir e se transformar, em verdade esse surgimento e essa transformação se dá por causas e condições que também estão sujeitos a transformações e surgimentos-desaparecimentos, de forma que não há uma substância subjacente que perdure por trás de qualquer ocorrência. Nada pode garantir que qualquer coisa que hoje nos agrada, no futuro não nos vá ser indiferente, ou nos desagrade. E mutatis mutandis.
O terceiro ponto é a noção de vacuidade, que dá origem ao segundo giro da roda do darma. O Buda é desperto porque reconhece a realidade de que todas as ocorrências, sem exceção, estão sujeitas a todos os três níveis de impermanência. Ele tem não só um reconhecimento intelectual disso, mas isso é integrado em sua natureza como uma ausência de hábito de crenças e expectativas errôneas quanto às coisas.
O que há de vitorioso em realizar a impermanência?
Porém, isso não nos parece uma grande vitória. A impermanência é, no fundo, relativamente neutra quanto ao que entendemos como “bom” ou “ruim”. Isto é, se temos uma dor, ficamos felizes quando ela acaba, se temos uma experiência prazerosa, ficamos tristes quando ela cessa, ou deixa de ser prazerosa.
O que o Buda realmente “ganhou” com esse reconhecimento, que podemos entender como uma vitória?
Este reconhecimento é uma vitória porque é a expectativa usual que promove a fixação às aparências como sendo algo que elas não são, isto é permanentes. Essa expectativa usual é que leva ao sofrimento. Há uma grande liberdade na coragem de reconhecer as coisas como elas são, e, de fato, se falamos do terceiro giro, há uma experiência de bem-aventurança ligada a esse reconhecimento.
Esse reconhecimento bem-aventurado e vitorioso sobre as expectativas – pleno de potencialidade e regozijo – estava presente na curiosidade inicial do Buda, quando ele viu a flor. E também estava presente na atitude que o Buda tomou quando ele se deu conta dos sofrimentos inerentes a ter um corpo – pelos quais não só ele passaria, mas também seu filho e sua mulher, o que justificava ele os abandonar em busca de uma solução a um problema que também os afligia.
O fato de ele acreditar e buscar uma solução para isso, e não fazer como a maioria de nós, apenas tomar uma cerveja e esquecer, e jogar conversa fora a respeito vez que outra, e então esquecer de novo – basicamente não sermos despertos – isso é o que chamamos de “refúgio na natureza de buda”. Confiança na possibilidade do despertar.
E não é que nós, entre uma cerveja e um cochilo e outro, entre um funeral e uma festa, não tenhamos nossos momentos. Todos olhamos ocasionalmente com seriedade para a condição humana, e não só humana, mas de todos os seres sensíveis. Podemos tentar fornecer a nós mesmos justificativas e desculpas, podemos espernear ou ficar deprimidos, aceitar ou não aceitar, mas ocasionalmente essa sensação de desespero básico surge. Esse desespero é uma combinação de nossa natureza de buda com as causas e condições que a estão impedindo de se manifestar ou ser reconhecida. Com nossa falta de confiança nesse potencial inerente.
A natureza de buda inata
Independente de a reconhecermos ou não, a natureza de buda segue presente em todos nós.
Então não é em absoluto o caso do mahayana transformar o Buda num “ser divino”, como se cada um de nós tenha um pequeno Buda contente no coração – essa é uma analogia artística, uma ideia mitopoética, e também um treinamento da mente. Estamos falando da noção bastante real de que o potencial de acordar é inato, e em si não depende de causas e condições. O que depende de causas e condições é o quanto vamos usufruir dessa realidade.
O próprio Buda nos sutras do Cânone Páli afirma que não é um ser humano, um deus, um demônio ou um gandharva, seja lá o que for isso (é um ser que se alimenta de cheiros, ao que parece).
Apenas que aquela curiosidade inata, e também o senso de urgência e atitude de “posso fazer algo a respeito” do príncipe Sidarta, se uniram a causas e condições e produziram o Buda Sakyamuni. Essas causas e condições gerais do Buda e do budismo também nos afetam. O Buda Sakyamuni não ensinou por 45 anos em vão, e os ensinamentos dele não perduraram por 2600 anos em vão, e eu não estou aqui escrevendo isso e você aí lendo isso por menos do que uma reunião de causas e condições que passa por todos os mestres da linhagem até o Buda Sakyamuni.
Toda essa multidão de seres despertos se resume a esse seu potencial inato tentando desabrochar em meio a outras causas e condições que o obscurecem. Nossa capacidade de ver valor no darma é a reunião de causas e condições que nos permite reconhecer nosso potencial inato de despertar.
O fato de alguém levar isso a sério, o fato de alguém tomar isso e fazer mudanças na vida, e começar a, ou renovar e fortalecer a motivação para, estudar e praticar o darma, isso é uma reunião de causas e condições com essa mesma curiosidade básica, e esse mesmo sentido de urgência e “preciso fazer algo a respeito” que o próprio Buda teve.
É claro, algumas pessoas, mesmo possuindo essa disposição iluminada, por várias causas e condições – tais como se distraírem, ou não conseguirem ler um texto de tamanho comparável com esse, ou não terem interesse nisso, ou levarem uma pedrada na cabeça antes do próximo parágrafo – vão sem dúvida seguir com essa potencialidade, mas não a vão fazer desabrochar. Faltam causas e condições, mas o potencial inato está sempre presente.
Essa potencialidade é muito controversa dentro do budismo. Embora aqui estejamos falando de algo que caracteriza o Buda, mesmo quando o Buda ainda não era o Buda, e que nos caracteriza como budas potenciais, e isso seja fácil de entender como uma qualidade inata, muitas pessoas confundem isso com algum aspecto divino, ou atman. Elas confundem isso com uma essência eterna. (Ufa, que bom que a pedra não nos pegou!)
Evidentemente, algumas pessoas até adoram considerar assim, já que a maioria das religiões do mundo gosta de colocar qualquer coisa desse tipo no foco de sua devoção. No entanto, se realmente fosse assim, pareceria haver uma contradição basal entre natureza de buda e vacuidade, e no entanto, a natureza das coisas não é essencialmente diferente de nossa própria natureza.
O problema começa quando a natureza de buda é colocada como algo permanente. Ora, se tudo é impermanente, fazer uma exceção é justamente o passe de mágicas, o tirar o coelho de uma cartola, que chamamos de “divinizar”. No budismo não caímos nessa, não tiramos coelhos eternos de cartolas furadas.
Como se resolve isso?
Vacuidade
Voltemos então aos três níveis de entendimento da impermanência. Por que há três níveis? Esses níveis dependem da ignorância do ser reconhecendo a impermanência.
O conceito de impermanência é mais facilmente compreendido através de surgimentos e cessações. Somos que nem um bebê com o pai brincando de esconde-esconde, ou cucu. Nossa, que surpresa. Sumiu. Apareceu de novo. Sumiu de novo. Que divertido. Acontece com galáxias e universos também. E também com reinos sutis, e com todas as pessoas que já existiram na terra, e que existirão no futuro. Aconteceu com o Buda, aconteceu com o Elvis, vai acontecer com cada um de nós, e com cada um de nossos descendentes.
Fácil de reconhecer. Real o bastante. Ainda assim, não totalmente real. Essas coisas vão de um lado para o outro, desaparecem aqui, surgem ali como alguma outra coisa. E num sentido budista, ainda tem essa coisa do renascimento… Cessar assim, “tipo morte”, não adianta muito. O problema segue.
Então temos esse reconhecimento mais aguçado, que é quando fazemos aquele experimento de fazer um broto de feijão germinar. Puxa, algumas crianças chegam naquela idade sem nunca imaginar um processo que leva dias. E então temos toda essa maior sofisticação de uma continuidade que nunca é a mesma.
Renascemos, mas lá diz o Nagasena ao Rei Milinda, não somos os mesmos, nem somos diferentes. Ah, esses budistas e suas contradições! Mas é como o broto de feijão, ou para os mais filosóficos, o Navio de Teseu e assemelhados (os budistas gostam de fazer a mesma analogia com uma carruagem).
Basicamente o que ocorre nesses experimentos de pensamento gregos e asiáticos, com navios ou carruagens, é o mesmo que ocorre quando se pega um computador desses de mesa, dá um nome para ele na rede, coloca um software, usa um tempo. Então se começa a trocar peças – porque estragam, ou para fazer melhorias. Um belo dia você troca o sistema operacional, muda o nome na rede – mas claro, é o mesmo computador. Você está olhando para a mesma tela, usando o mesmo mouse, mesmo teclado. Então você troca a placa mãe. Troca tudo, menos o monitor, o teclado e o mouse. Só que aos poucos. E começa a aquela dúvida: “bom, será que é o mesmo computador ou não?” E enfim você troca o mouse, o teclado e a tela, mas daí será que é o mesmo computador ainda? O segundo? O primeiro? Ou quando você trocou aquela placa de vídeo, você chama de computador 1.2? A cada peça, o computador é ainda o mesmo, com algo diferente. Em que momento passa a ser outro computador?
Normalmente, na minha experiência, enquanto o gabinete é o mesmo, ou pelo menos a placa mãe, eu não digo que é um computador diferente. Mas esse é um critério arbitrário.
Em certo sentido, é o mesmo computador, em outro sentido, não é. Nada contraditório, nada fantástico, simples fato.
Da mesma forma, o budismo vai dizer que o computador é livre de uma base de designação, isto é, a designação existe, mas é totalmente arbitrária. É por isso também que eu tenho essas células, e depois outras, tenho esses pensamentos, depois aqueles, mudo totalmente de vida, e ainda assim me chamo Eduardo. Ou eu faço cirurgia de redesignação de gênero e passo a me chamar Amanda. Sou o mesmo? Mais ou menos. Sou outra? Também é o caso.
Não é tão difícil entender o Nagasena. Não é contraditório. Parece contraditório porque não entendemos o terceiro nível, que é a total ausência de uma base, mesmo de designação.
Na verdade, não dá para negar a base. O que negamos é a não arbitrariedade da base, ou uma base definida ou definível, ou estabelecível, ou definitiva. A base de designação é arbitrária, o que quer dizer que não existe, mas “funciona”. Você pode estar usando dois computadores, mas se eles tiverem a mesma configuração, a experiência vai ser a mesma. Você pode estar usando um computador ‘dentro’ de outro computador, isto é, um computador virtual. A coisa toda é uma orgia conceitual sem fim. Mas, o que importa é que, para certas causas e condições, certas designações operam. Elas não definem ou explicam os fenômenos incertos sendo designados, mas, como meros rótulos, elas operam suas funções de rótulo.
E não há um modelo subjacente, ou uma formulação ou explicação, ou “fenômeno preferido” (criador, explicador, substancial, que opera como substrato). Isso é a tal vacuidade. Tudo funciona assim.
Então, o que parece surgir e cessar, e o que parece se transformar, na verdade não tem base sólida alguma. Há uma base que não pode ser afirmada ou negada, ou tanto afirmada quanto negada, ou nem afirmada nem negada. Então dizer “há uma base” é contraditório por si só. Reconhecemos que há alguma coisa porque alguma coisa se apresenta, e toda conclusão subjacente a isso é exagerada.
Surgir e cessar, e transformar, são só formas de ver a impermanência quando ainda existe alguma expectativa de base. Nagarjuna disse “Nada, em lugar algum, sequer surge”. Papo contraditório de budista? Acho até bem razoável!
Natureza de buda
Essa ausência absoluta de base parece uma qualidade assombrosa, e talvez um pouco negativa, mal humorada. De forma alguma. O terceiro giro vai introduzir essa noção de “luminosidade”. Então esse espaço livre de referências é receptivo, criativo e conhecedor. Há um gozo na não referencialidade.
Essa natureza das coisas é virtualmente idêntica a nossa própria natureza. Como ela não tem um aspecto definido, mas uma liberdade ou potencial absolutos, ela é igual àquela curiosidade e coragem do Buda perante o reconhecimento de certas realidades prosaicas da vida, tais como a morte a doença. Essa abertura destemida vem da ausência de base, e é idêntica a ausência de base.
Então ela não é impermanente, uma vez que não é surgida, é não nascida (que é um sentido ainda mais profundo que “inata”). É a própria realidade. Tatata, como as coisas são. Tatágata é um título do Buda, que quer dizer “aquele que vê as coisas como elas são”. As coisas como elas são e aquele que vê as coisas como elas são não são sujeito e objeto, e não são um objeto pairando no nada, ou um sujeito pairando no nada – conosco olhando de fora, agora que falamos sobre “essas coisas”. Como é não nascido, é um não objeto. É um não sujeito também. É o simples potencial pleno da realidade atualizado sem nenhuma arbitrariedade, totalmente sem referências.
Esses termos “simples”, ou “básico” também se aplicam. Não porque ela seja uma base, no sentido de um chão ou apoio para outras causas e condições, mas porque ela não é composta nem fragmentada ou dividida. A minha realidade não nascida não é diferente da do Buda ou da sua. E ela também não é um objeto que “existe” dentro das coisas, fora das coisas, em contato com as coisas, ou fora de contato com as coisas.
O que nós chamamos de “coisas” são reflexos parciais e arbitrários, se diz, “adventícios” dessa natureza.
Sanidade básica
Sim, até parece teologia. Pode soar misticismo, porque a não compreensão – se é o caso – leva à mistificação. Mas a noção de um mistério ou de uma coisa especial e divina só surge porque damos um passo atrás e nos alienamos perante essa realidade. Isso realmente acontece e pode acontecer, mas não é culpa do Buda e dos seus ensinamentos, mas de nossa tendência teísta, isto é, ignorante. Faz parte de nossas causas e condições que obscurecem essa natureza, e que nos fazem não a usufruímos ou reconhecermos (e por isso existe o caminho e a prática budista).
No fundo, ajuda muito pensar que é só o que Trungpa Rinpoche chamava de “sanidade básica”. Como o Buda foi um príncipe com certas causas e condições propícias, ele revelou sua sanidade básica. Mas essa é uma sanidade que todos temos.
Ela é simples, inata (não nascida) e além dos extremos – existir, não existir, ambos e nenhum. Ela se manifesta como nosso impulso na direção de um caminho espiritual, e também como as qualidades que nos permitem ajudar os outros, exatamente como o Buda fez por 45 anos.
Então, é o contrário de uma teologia, ou de uma noção divina, como algo mágico, especial ou separado. É nossa condição mais simples, e é o motivo essencial pelo qual damos valor ao Buda, e podemos reconhecer seu exemplo como algo válido.
Quantas pessoas não estão nem aí para o Buda? Por que isso acontece? Por causas e condições, elas estão em menos contato com a natureza das coisas como de fato ela é, e assim o Buda não parece uma figura que se ressalta, ou que surge como relevante ou importante. Outras têm o Buda como um elemento estético, ou tem alguma curiosidade ou simpatia. Estas, então, têm algumas causas e condições positivas, e outras neutras e negativas. E assim vai.
Quando nós nos decidimos a revelar essas qualidades ao máximo, é aí que nos comprometemos com o caminho budista. Isso é uma expressão dessa natureza não nascida, a verdadeira condição das coisas, em conjunto com causas e condições positivas, tais como aspirações que fizemos, e treinamentos a que nos dedicamos, porque colocamos esforço nessa direção, ao perceber que oscilávamos em lidar com o que realmente importa.
A tragédia é que causas e condições propícias precisam ser aproveitadas, porque causas e condições, ao contrário da sanidade básica, são impermanentes. Na verdade, particularmente impermanentes, particularmente fugidias. Bem mais do que coisas como o espaço ou a configuração atual dos astros no espaço.
Caso alguém não aproveite o momentum de causas e condições que o levaram ao caminho budista, sabe-se lá quando e se isso vai acontecer de novo. A hora é agora.
E enfim, quando completamos as acumulações de causas e condições propícias, manifestamos perfeitamente as qualidades do Buda no mundo, como ele mesmo fez. Essas qualidades estão presentes de forma inerente nessa simplicidade da sanidade não nascida, e desabrocham naturalmente quando nos desvinculamos dos hábitos que nos obstaculizaram por vidas incontáveis.
Assim, o Buda se manifesta como impermanente para quem precisa do ensinamento sobre impermanência, e ele é livre de referenciais para quem consegue ver a realidade. Uma coisa não impede em nada a outra.
Que com esse mérito todos os seres possam se tornar oniscientes e revelar plenamente a natureza de buda, ao eliminar todas as causas e condições inauspiciosas. Que todos os seres possam ser libertados do oceano da existência condicionada, agitado pelas ondas de nascimento, velhice, doença e morte.
Que a preciosa mente voltada à iluminação surja onde quer que não tenha surgido. E, sem enfraquecer onde já surgiu, que ela se expanda cada vez mais.
Padma Dorje é praticante budista e autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos. Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org.