Trecho do Capítulo 2, do livro “TRANSFORMANDO CONFUSÃO EM CLAREZA” de Yongey Mingyur Rinpoche.
Tradução de Gabriel M. Falcão
Revisão de Luís Fernando Machado e Waldemar Falcão
MEDITAÇÃO: A ferramenta essencial
Antes de prosseguir, quero falar sobre meditação. Isso porque ela fornece a principal ferramenta para todas as nossas práticas, inclusive as de ngondro – e também porque hoje em dia ela significa diferentes coisas para diferentes pessoas. A fim de estabelecer um entendimento comum, quero contar como foi uma das minhas primeiras introduções à meditação.
Meu pai comparava os efeitos da meditação ao comportamento de um bom pastor. Da janela de seu pequeno quarto em Nagi Gompa nós podíamos enxergar uma grande extensão do céu, além da movimentada cidade de Kathmandu logo abaixo. Às vezes sentávamos juntos e observávamos os jovens pastoreando seus rebanhos. “Os bons pastores sentam na colina observando seu rebanho, alertas e conscientes”, meu pai explicava. “Se um animal se perde, eles descem para guiá-lo de volta. Eles não ficam correndo de um lado para o outro, conduzindo seu rebanho para lá e para cá, senão os pobres animais não conseguiriam se alimentar direito – e tanto eles quanto os pastores ficariam exaustos.”
“Os bons pastores meditam?”, eu perguntei.
“Eles não estão trabalhando diretamente com a mente”, ele disse. “Portanto eles não estão meditando, mas estão relaxados e atentos. Eles observam externamente seu rebanho enquanto mantêm uma estabilidade interna. Eles não estão perseguindo as ovelhas. Quando meditamos, tampouco perseguimos os nossos pensamentos. Um mau pastor possui uma visão limitada. Ele pode até perseguir uma ovelha que se desgarrou para o lado esquerdo, mas perde a ovelha que fugiu pelo lado direito, e acaba correndo em círculos, como um cão perseguindo a própria cauda. Quando meditamos, não tentamos controlar todos os nossos pensamentos e sentimentos. Apenas repousamos naturalmente, como o bom pastor, observantes e atentos.”
Uma vez meu pai apontou para um rapaz sentado sob o sol, recostado em uma pedra plana, observando seu rebanho mais abaixo. O rapaz desembrulhou o pano em que guardava seu almoço e comeu vagarosamente, levantando os olhos para checar as cabras. Quando ele terminou de comer, pegou uma flauta de madeira e meu pai abriu as janelas para ouvir. Todos pareciam tão felizes: o rapaz, meu pai, as cabras… “Esse rapaz medita?”, eu perguntei. Ele balançou a cabeça negativamente. “E ainda assim ele é tão feliz?”, indaguei.
“O bom pastor é livre para escolher seu próprio comportamento”, meu pai explicou. “Ele possui uma mente calma, o que deixa seu rebanho calmo. Como ele não faz os animais ficarem nervosos, eles não fogem. Isso lhe dá tempo de sentar, comer seu almoço e tocar sua flauta.
“Mas não confunda o comportamento relaxado com a mente. Hoje o sol está brilhando. Não está muito frio, nem há um vento forte. As circunstâncias deste pastor não poderiam ser melhores. Mas o que acontece se elas mudam? O que acontece à mente se o fazendeiro vende essas cabras? Para experimentar a verdadeira liberdade, devemos meditar a fim de reconhecer a natureza da mente em si. Então não seremos carregados por pensamentos, emoções e circunstâncias. Faça chuva ou faça sol, a mente permanece estável.”
Para cultivar uma mente estável independente das circunstâncias, devemos trabalhar com a própria mente. O trabalho direto com a mente revela a qualidade inerente da consciência meditativa. Cada prática do ngondro difere em conteúdo e abordagem. Mas em cada uma delas estamos trabalhando com a mente de forma deliberada.
CONSCIÊNCIA
Consciência é a qualidade natural, inata e cognoscente da mente – que está conosco o tempo todo. Não podemos funcionar sem consciência; sem ela não teríamos experiência de nada. Entretanto, nem sempre a reconhecemos. Na verdade, a maior parte do tempo nós não a reconhecemos. A meditação nos ensina a reconhecer a consciência que já possuímos.
Existem três tipos de consciência: a consciência normal, que experimentamos antes de aprender a meditar; a consciência meditativa, que surge com o reconhecimento da própria consciência; e a consciência pura, que ocorre quando nosso reconhecimento se aprofunda e nós experimentamos diretamente a natureza da consciência.
Consciência Normal
A qualidade mais fundamental da consciência normal é que a própria consciência não é reconhecida. Permanecemos tão preocupados e identificados com cada ideia e imagem em nossa mente, que não reconhecemos a própria consciência. A consciência está sempre presente. Não podemos funcionar sem ela, mas podemos funcionar sem reconhecê-la.
Há dois tipos de consciência normal. Um é atento e presente – características associadas com a meditação e demonstradas pelo bom pastor. O outro se caracteriza pela distração, sem qualquer semelhança ao comportamento meditativo. No entanto, nenhum dos dois tipos reconhece a própria consciência.
Por exemplo: nós olhamos para uma flor. Com a consciência normal distraída, nossos olhos se voltam para a flor, enquanto talvez estejamos pensando em pizza, parceiros ou filmes. Ou dirigimos até um restaurante com nossos amigos e na volta discordamos sobre o caminho a ser seguido. Não é que esqueçamos o caminho porque a consciência desapareceu – não podemos existir sem consciência, assim como não podemos existir sem respirar – mas nossa consciência estava coberta por distrações, diálogos mentais internos, fantasias e divagações. Permanecemos conscientes o suficiente para chegar ao restaurante, mas não para lembrar como chegamos. A consciência pode ser deturpada e obscurecida – mas não eliminada. Nesse estado distraído nós somos como o mau pastor. Tomamos café da manhã perseguindo pensamentos sobre o jantar, e no jantar não conseguimos lembrar o que comemos pela manhã.
Quando prestamos atenção ao ato de lavar os pratos, dirigir, ou resolver uma equação matemática, estamos focados na tarefa. Quando dizemos que uma pessoa executa seu trabalho bem, geralmente isso é reflexo de sua capacidade de prestar atenção. Para um sapateiro, o campo de atenção pode ser os detalhes de costura, a cola e a maleabilidade do couro. Médicos precisam prestar atenção aos sinais físicos e emocionais de seus pacientes. Para desempenhar bem qualquer função, a consciência normal não-distraída deve predominar. Em cada caso a atenção – e portanto a própria mente – está no objeto da consciência: ovelhas, sapatos, pacientes ou a estrada. A mente não está perdida em uma tagarelice distraída; ela está consciente de seu objeto – embora a própria consciência não seja reconhecida.
Consciência Meditativa
A meditação requer algum grau de consciência da própria consciência. Começamos a perceber a qualidade da mente, e não apenas dos fenômenos percebidos por ela. Quando começamos a meditar, pode ser útil usar suportes como imagens dos budas, a nossa respiração ou uma flor. Nós repousamos nossa atenção no suporte. Mas apenas prestar atenção ainda não é meditação. Os dois ingredientes cruciais para a meditação são a intenção e o reconhecimento. Começamos propositadamente repousando no suporte – aí entra a intenção. Mas também permanecemos conscientes do que está acontecendo, enquanto acontece – isso é reconhecimento. Em outras palavras, quando repousamos nossa atenção na respiração, não somos tão completamente absorvidos pela experiência a ponto de perder contato com tudo o mais. Estamos plenamente conscientes da nossa respiração, mas também sabemos que estamos conscientes.
Digamos que utilizemos uma flor como suporte da consciência. Nós levamos nossa atenção ao objeto e o utilizamos como suporte para o reconhecimento da consciência. Isso é o que queremos dizer com a palavra “suporte”. O Buda Sakiamuni disse: “Um monge, quando caminha, sabe que caminha; quando levanta, sabe que levanta; quando senta, sabe que senta; quando deita, sabe que deita.” Esse saber, esse reconhecimento de cada momento e de cada atividade, é meditação.
Uma vez que tenhamos reconhecido a consciência, podemos continuar usando o suporte se ele for nos auxiliar, mas não devemos usá-lo de maneira focada e limitada. A utilização de um suporte para a meditação, como por exemplo a respiração ou alguma forma visual, se torna um meio para um estado de mente mais espaçoso e relaxado, que permanece estável mesmo em meio às atividades da mente. Se você começar usando uma flor como suporte, não se preocupe se está tendo consciência ou não. Se você tiver a intenção de que a flor seja um suporte para o reconhecimento da consciência, isso ocorrerá. A intenção e a motivação ocasionarão o reconhecimento.
Dentro das práticas de ngondro, os suportes podem variar: desde animais – como vacas ou cachorros – a reinos divinos, deidades, gurus, e até mesmo universos inteiros. O som de um mantra pode ser um suporte. Porém o processo é o mesmo de quando utilizamos uma flor ou a respiração. O suporte serve como uma maneira de desvelar e reconhecer as qualidades da mente.
Consciência Pura
Conforme a consciência meditativa se aprofunda, podemos começar a experimentar o que chamamos de consciência pura. Isso não é algum estado de consciência extraordinário. Na verdade, uma de suas principais características é ser completamente ordinário. É simplesmente a extensão natural do primeiro vislumbre de consciência que surge quando começamos a meditar. Entretanto, o processo meditativo em si nos conecta não apenas com a presença da consciência, mas com a própria natureza da consciência. Uma vez que tenhamos reconhecido essa consciência pura, o caminho inteiro do despertar – incluindo todas as práticas de ngondro – nos ajuda a nutrir e estabilizar esse reconhecimento, e a integrá-lo com cada aspecto de nossa vida.
Yongey Mingyur Rinpoche é uma estrela em ascensão entre a nova geração de mestres budistas tibetanos. Sua rara capacidade de apresentar a milenar sabedoria tibetana de uma maneira inovadora, envolvente e profunda, aliada a seu contagiante bom humor, transformaram Mingyur Rinpoche num mestre querido e admirado por pessoas do mundo todo. Seu 1º livro, A Alegria de Viver – Descobrindo o Segredo da Felicidade estreou na lista dos mais vendidos do prestigiado jornal New York Times e foi traduzido para mais de vinte idiomas.
Em junho de 2011, Mingyur Rinpoche deixou seu monástério em Bodhgaya, Índia, para iniciar um prolongado período de retiro solitário que durou mais de quatro anos. Seguindo uma tradição antiga dos yogis andarilhos, não mais comum nos dias atuais, Rinpoche peregrinou de lugar em lugar entre Índia e Nepal, permanecendo em cavernas remotas e locais sagrados, sem planos ou agenda fixa; apenas com o compromisso inabalável com o caminho do despertar.
Mingyur Rinpoche regressou de seu retiro em novembro de 2015 e atualmente está em turnê mundial divulgando seus ensinamentos e compartilhando suas recentes experiências com seus alunos ao redor do mundo.
Na última semana de julho de 2016, Mingyur retornará ao Brasil pela terceira vez para palestras e ensinamentos sobre meditação e como ser mais feliz em nossa vida quotidiana. Nesta oportunidade, ele também lançará (Rio de Janeiro e São Paulo) a edição brasileira de seu 2º livro: Alegre Sabedoria – Abraçando a Mudança e Encontrando Liberdade. Trata-se de uma oportunidade única e imperdível de assistir ao vivo a este renomado mestre budista. Fique atento no site da Tergar para mais informações e data das inscrições.
Links
- Reportagem sobre Mingyur Rinpoche e seu retiro
- Carta de Mingyur Rinpoche ao entrar em retiro
- Prece para longa vida de Mingyur Rinpoche
- Site de eventos no Brasil da comunidade Tergar, de Mingyur Rinpoche
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