A história e os ensinamentos de Mingyur Rinpoche: O mestre que venceu a ansiedade e o panico e uniu budismo e ciência.
Nascido em 1975 em Nubri, Nepal, Yongey Mingyur Rinpoche é uma estrela em ascensão da nova geração de mestres do budismo tibetano treinados fora do Tibete. Profundo conhecedor das disciplinas práticas e filosóficas de uma tradição antiga do budismo tibetano, possui vasto conhecimento de questões e detalhes da cultura moderna. Viajou durante quase uma década por todo o mundo, encontrando-se e conversando com diversos cientistas renomados e pessoas comuns que desejam elevar-se ao sofrimento inerente à condição humana e atingir um estado de felicidade duradoura. Seus relatos sinceros e muitas vezes bem-humorados das próprias dificuldades pessoais fazem com que seja amado por milhares de alunos budistas e não-budistas ao redor do mundo. Para mais informações sobre Mingyur Rinpoche, seus ensinamentos e atividades, visite o site da Yongey Foundation Brasil.
ESTAMOS TESTEMUNHANDO UMA ÉPOCA SEM precedentes na história da ciência: um diálogo sério e de mão dupla entre cientistas e religiosos. Do ponto de vista científico, parte desse encontro tem sido revelador. Meu ramo da ciência, a psicologia, sempre pressupôs que suas raízes seriam encontradas na Europa e na América do Norte mais ou menos no início do século XX. Essa visão se mostrou tanto culturalmente preconceituosa quanto historicamente míope: as teorias da mente e de seu funcionamento — isto é, os sistemas psicológicos — foram desenvolvidos pela maioria das grandes religiões do mundo, todas da Ásia.
Na década de 1970, durante uma viagem para a índia quando ainda estava na faculdade, estudei o Abhidharma, um dos mais elegantes exemplos dessa antiga psicologia budista. Fiquei atônito ao descobrir que as questões básicas de uma ciência da mente haviam sido exploradas por milênios, não somente por um mero século. A psicologia clínica, minha área na época, buscava ajudar a aliviar os vários sofrimentos emocionais. Contudo, para a minha surpresa, descobri que esse sistema, de um milênio de idade, articulava um conjunto de métodos não apenas para curar o sofrimento mental, mas também para expandir as capacidades humanas positivas, como a compaixão e a empatia. E, mesmo assim, nunca vira nenhuma referência a essa psicologia em meus estudos.
Hoje, o vigoroso diálogo entre praticantes dessa antiga ciência interior e cientistas modernos floresceu em uma colaboração ativa. Essa parceria de trabalho foi catalisada pelo Dalai Lama e pelo Mind and Life Institute que por vários anos reuniram budistas e acadêmicos em discussões com cientistas modernos. O que começou como conversas exploratórias evoluiu para um esforço conjunto para pesquisas posteriores. Como resultado, especialistas da ciência mental budista têm trabalhado com neurocientistas para elaborar e conduzir pesquisas que documentarão o impacto neural desses vários treinamentos mentais. Yongey Mingyur Rinpoche tem sido um dos praticantes especialistas mais ativamente envolvidos nessa aliança, trabalhando com Richard Davidson, diretor do Waisman Laboratory for Rrain Imaging and Behavior da University of Wis-consin. Essa pesquisa gerou resultados impressionantes que, replicados, mudarão para sempre algumas hipóteses científicas básicas — por exemplo, a de que o treinamento sistemático em meditação, quando feito de forma constante ao longo dos anos, pode aumentar a capacidade humana de gerar alterações positivas na atividade cerebral em uma extensão jamais sonhada pela moderna neurociência cognitiva.
Talvez o resultado mais incrível até agora tenha vindo do estudo de um grupo de adeptos da meditação que incluiu Yongey Mingyur Rinpoche (como ele descreve neste livro). Durante uma sessão de meditação sobre a compaixão, a atividade neural em um centro- chave do sistema cerebral para a felicidade pulou para 700% a 800%! Em pessoas comuns-voluntários que começavam a meditar —, a mesma área aumentou sua atividade em meros 10% a 15%. Esses especialistas em meditação apresentam níveis de prática típicos de atletas olímpicos — entre 10 mil e 55 mil horas ao longo de uma vida inteira —, aprimorando suas habilidades de meditação durante anos de retiro. Yongey Mingyur tem algo de pródigo nesse sentido. Ainda na infância, recebeu instruções para meditação profunda de seu pai, Tulku Urgyen Rinpoche, um dos mais reconhecidos mestres que saíram do Tibete logo antes da invasão comunista. Com apenas 13 anos, Yongey Mingyur foi inspirado a participar de um retiro de meditação de três anos de duração. E, ao fim do período, foi nomeado mestre de meditação de todos os futuros retiros de três anos naquele monastério.
Yongey Mingyur também é excepcional em seu grande interesse pela ciência moderna. É fervoroso espectador de várias reuniões do Mind and Life e aproveitou todas as oportunidades de se encontrar com cientistas que pudessem lhe explicar mais sobre suas especialidades. Muitas dessas conversas revelaram semelhanças extraordinárias entre pontos-chave do budismo e da ciência moderna – não apenas na psicologia, mas também em princípios cosmológicos resultantes dos recentes avanços da teoria quântica. A essência dessas conversas é compartilhada neste livro. (Alegria de Viver – Descobrindo o segredo da felicidade).
A JORNADA COMEÇA: A HISTÓRIA DE Yongey Mingyur Rinpoche
QUANDO VOCÊ É TREINADO como budista, não pensa no budismo como uma religião. Você pensa nele como um tipo de ciência, um método para explorar a própria experiência por meio de técnicas que lhe permitam examinar suas ações e reações sem julgamentos, com o olhar voltado para o reconhecimento: “Ah, é assim que minha mente funciona. E isso que preciso fazer para vivenciar a felicidade. E isso que preciso evitar para evitar a infelicidade.”
Em sua essência, o budismo é muito prático. Trata-se de fazer coisas que encorajem a serenidade, a felicidade e a confiança, e evitar coisas que provoquem a ansiedade, a desesperança e o medo. A essência da prática budista não é tanto um esforço para mudar seus pensamentos ou seu comportamento para que você se torne uma pessoa melhor, mas perceber que, independentemente de sua opinião sobre as circunstâncias que definem sua vida, você já é bom, pleno e completo. Trata-se de reconhecer o potencial inerente de sua mente. Em outras palavras, o budismo não se preocupa tanto em ficar bem, mas em reconhecer que você já é, neste exato local e neste exato momento, tão pleno e tão bom e já está essencialmente tão bem quanto jamais poderia esperar um dia estar.
Você não acredita nisso, certo?
Bem, por muito tempo, também não acreditei.
Eu gostaria de começar com uma confissão, o que pode soar estranho vindo de alguém considerado como um lama ‘renascido’ que supostamente fez todo tipo de coisas maravilhosas em suas emanações passadas. Desde a minha infância, fui assombrado por sentimentos de medo e ansiedade. Meu coração acelerava e muitas vezes eu tinha crises de sudorese na presença de desconhecidos. Não havia nenhuma razão para o desconforto que eu sentia. Eu morava em um belo vale, cercado por uma família carinhosa e vários monges, monjas e outras pessoas que estavam profundamente envolvidas em aprender como despertar a paz e a felicidade interiores. Mesmo assim, a ansiedade me acompanhava como uma sombra.
Eu tinha cerca de 6 anos quando comecei a sentir algum alívio. Inspirado mais pela curiosidade infantil do que por qualquer outra coisa, comecei a subir os morros ao redor do vale onde cresci para explorar as cavernas nas quais gerações de praticantes do budismo haviam passado vidas inteiras em meditação.
Algumas vezes, eu entrava em uma caverna e fingia meditar. É claro que, na verdade, eu não tinha a menor idéia de como meditar. Só me sentava lá repetindo mentalmente Om Mani Peme Hung, um mantra, ou combinações especiais de sílabas antigas, conhecidas por quase todo tibetano, budista ou não. Algumas vezes, eu ficava sentado lá por horas, mentalmente recitando o mantra sem entender o que estava fazendo. Mesmo assim, comecei a sentir certa tranqüilidade.
Entretanto, mesmo depois de três anos me sentando em cavernas e tentando descobrir como se meditava, minha ansiedade aumentou até que se tornou o que provavelmente seria diagnosticado no Ocidente como síndrome do pânico, com todos os seus sintomas. Por algum tempo, recebi orientações informais de meu avô, um grande mestre de meditação que preferia não fazer alarde de suas realizações; mas, finalmente, reuni coragem para pedir à minha mãe que conversasse com meu pai, Tulku Urgyen Rinpoche, levando meu pedido de estudar formalmente com ele. Meu pai concordou e, pelos três anos seguintes, me instruiu nos vários métodos de meditação.
Eu não entendia muito no começo. Tentava repousar minha mente como ele ensinava, mas minha mente não tinha descanso. Na verdade, durante aqueles primeiros anos de treinamento formal, cheguei a me sentir mais distraído do que antes. Todo tipo de coisa me perturbava: desconforto físico, ruídos de fundo, conflitos com outras pessoas. Anos mais tarde, eu viria a perceber que, na verdade, não estava piorando, mas me tornando mais consciente do fluxo constante de pensamentos e sensações que nunca havia percebido antes. Tendo observado outras pessoas passando pelo mesmo processo, percebo agora que se trata de uma experiência comum a pessoas que estão começando a aprender como examinar suas mentes pela meditação.
Apesar de ter começado a vivenciar breves momentos de calma, o temor e o medo continuavam a me assombrar como fantasmas ansiosos — especialmente porque, a cada período de alguns meses, eu era enviado ao mosteiro Sherab Ling, na índia (a principal residência do 12a Tai Situ Rinpoche, um dos maiores mestres do budismo tibetano vivos atualmente e um de meus mais influentes professores, cuja grande sabedoria e gentileza em orientar meu desenvolvimento são dívidas que jamais serei capaz de pagar), para estudar sob as orientações de novos professores, com colegas que não conhecia, e então enviado de volta ao Nepal para continuar o treinamento com meu pai. Passei quase três anos assim, indo de um lado para o outro entre a índia e o Nepal, recebendo orientações formais de meu pai e de meus professores em Sherab Ling.
Um dos momentos mais terríveis veio logo antes de meu aniversário de 12 anos, quando fui enviado a Sherab Ling com um propósito especial, que vinha temendo por muito tempo: a nomeação formal como a encarnação do l2 Yon-gey Mingyur Rinpoche. Centenas de pessoas foram à cerimônia e passei horas recebendo seus presentes e abençoando-os como se eu fosse alguém realmente importante, e não apenas um garoto aterrorizado de 12 anos. A medida que as horas passavam, fiquei tão pálido que meu irmão mais velho, Tsoknyi Rinpoche, que estava a meu lado, achou que eu fosse desmaiar.
Quando me recordo dessa época e de toda a gentileza que recebi de meus professores, pergunto a mim mesmo como pude ter sentido tanto medo. Em retrospecto, posso ver que a base de minha ansiedade estava no fato de eu não ter verdadeiramente percebido a natureza real de minha mente. Eu tinha uma compreensão intelectual básica, mas não o tipo de experiência direta que me permitiria perceber que qualquer sensação de terror ou desconforto era produto de minha própria mente e que as bases inabaláveis da serenidade, da confiança e da felicidade estavam mais perto de mim do que meus próprios olhos.
Ao mesmo tempo em que iniciei meu treinamento budista formal, algo maravilhoso estava ocorrendo; apesar de não ter percebido na época, as novas circunstâncias teriam um impacto duradouro em minha vida e acelerariam meu progresso pessoal. Eu estava gradualmente sendo apresentado às idéias e às descobertas da ciência moderna — em especial, o estudo da natureza e do funcionamento do cérebro.
UM ENCONTRO DE MENTES
Eu era apenas uma criança quando conheci Francisco Varela, um biólogo chileno que mais tarde se tornaria um dos neurocientistas mais renomados do século XX. Francisco fora ao Nepal para estudar o método budista de exame mental e treinar sob a orientação de meu pai, cuja reputação atraiu um grande número de alunos ocidentais. Quando não estávamos estudando ou praticando, Francisco, muitas vezes, conversava comigo sobre a ciência moderna, principalmente sobre sua própria especialidade, que envolvia a estrutura e o funcionamento do cérebro. É claro que ele tinha o cuidado de estruturar suas lições em termos que um menino de 9 anos pudesse entender. Como outras pessoas entre os alunos ocidentais do meu pai reconheceram meu interesse em ciência, também elas começaram a me ensinar o que sabiam sobre as teorias modernas de biologia, psicologia, química e física. Era um pouco como aprender duas línguas ao mesmo tempo: por um lado, o budismo e, por outro, a ciência moderna.
Eu me lembro de pensar, mesmo na época, que não parecia haver muita diferença entre ambos. As palavras eram diferentes, mas o significado me parecia relativamente o mesmo. Depois de certo tempo, também comecei a ver que as formas pelas quais os cientistas ocidentais e budistas abordavam seus objetos de estudo eram notadamente similares. Os textos budistas clássicos começam apresentando um fundamento teórico ou filosófico de análise, comumente chamado de “a Base”. Prosseguem, então, para os vários métodos de prática, comumente chamados de “o Caminho” e finalmente concluem com uma análise dos resultados de experimentos pessoais e sugestões para estudos posteriores, descritas como “o Fruto”. Muitas vezes, a investigação científica ocidental segue uma estrutura similar, começando com uma teoria ou hipótese, uma explicação dos métodos pelos quais a teoria é testada, e uma análise comparativa dos resultados dos experimentos com a hipótese original.
O que mais me fascinou em simultaneamente aprender sobre a ciência moderna e a prática budista foi que, enquanto a abordagem budista era capaz de ensinar às pessoas um método introspectivo e subjetivo para perceber seu pleno potencial para a felicidade, a perspectiva ocidental explicava, de forma mais objetiva, por que e como os ensinamentos funcionavam. Separadamente, tanto o budismo quanto a ciência moderna proporcionavam revelações extraordinárias sobre o funcionamento da mente humana. Juntos, eles formavam um conjunto mais completo e inteligível.
Perto do final daquele período de viagens entre a índia e o Nepal, fiquei sabendo que um programa de retiro de três anos estava prestes a começar no mosteiro Sherab Ling. O mestre do retiro seria Saljay Rinpoche, um de meus principais professores em Sherab Ling. Saljay Rinpoche era considerado um dos mais completos mestres do budismo tibetano da época. Homem gentil, com voz profunda, ele tinha uma capacidade impressionante de fazer ou dizer exatamente a coisa certa no momento certo. Estou certo de que alguns de vocês também tiveram a oportunidade de passar algum tempo perto de pessoas que surtiam um tipo semelhante de impacto, pessoas capazes de ensinar lições incrivelmente profundas sem ao menos parecer estar ensinando. A simples forma como elas são é uma lição que nos acompanha para o resto de nossas vidas.
Como Saljay Rinpoche era muito velho e aquele provavelmente seria o último retiro que ele lideraria, eu queria muito participar. Entretanto, eu só tinha 13 anos, uma idade normalmente considerada insuficiente para tolerar os rigores de três anos em um retiro. Mesmo assim, implorei para que meu pai intendesse em meu favor e, no fim, Tai Situ Rinpoche me concedeu permissão para participar.
Antes de descrever minhas experiências durante aqueles três anos, sinto ser necessário reservar um tempo para falar um pouco da história do budismo tibetano, que pode explicar por que eu estava tão ansioso para entrar no retiro.
A IMPORTÂNCIA DA LINHAGEM
O conhecimento não é suficiente… você precisa ter a convicção de que ele provém de sua experiência pessoal.- 9- GYALWANG KARMAPA, Makãmudrã: The Ocean of Definitive Meaning, traduzido para o inglês por Elizabeth M. Callahan
O budismo, método de explorar e trabalhar diretamente, com a mente, tem em sua origem os ensinamentos de um jovem nobre indiano chamado Siddhartha. Ao testemunhar em primeira mão a terrível miséria vivida pelas pessoas que não foram criadas no mesmo ambiente privilegiado no qual cresceu, Siddhartha renunciou à segurança e aos confortos de seu lar a fim de encontrar uma solução para o problema do sofrimento humano. O sofrimento assume várias formas, desde um sussurro irritante de que seríamos mais felizes “se” algum pequeno aspecto de nossas vidas fosse diferente até a dor provocada por uma doença e o terror da morte.
Siddhartha se tornou um asceta, vagando pela índia para estudar sob a orientação de professores que declaravam ter encontrado a solução que ele buscava. Infelizmente, nenhuma das respostas que eles davam e nenhuma das práticas que eles ensinavam pareciam totalmente completas. Enfim, ele decidiu abandonar todos os conselhos externos e buscar a solução para o sofrimento no lugar que ele tinha começado a suspeitar ser a origem do problema: a própria mente. Em um lugar chamado Bodhgaya, na província de Bihar, no nordeste da índia, ele se sentou sob o abrigo de uma árvore e mergulhou cada vez mais profundamente em sua própria mente, determinado a encontrar as respostas que procurava ou morrer tentando. Depois de muitos dias e noites, ele finalmente encontrou o que estava buscando: uma consciência fundamental do que era imutável, indestrutível e infinito. Quando emergiu de seu estado de profunda meditação, eleja não era mais Siddhartha. Ele era o Buda, um título em sânscrito que significa “aquele que está desperto”.
Ele havia despertado para o pleno potencial de sua própria natureza, que fora previamente limitada pelo que é comumente chamado de dualismo — a idéia de um “eu” distinto e inerentemente real separado de um “outro” aparentemente distinto e inerentemente real. Como exploraremos mais adiante, o dualismo não é uma “falha de caráter” ou um defeito. É um complexo mecanismo de sobrevivência profundamento enraizado na estrutura e no funcionamento do cérebro — que, como outros mecanismos, pode ser alterado pela experiência.
O Buda reconheceu essa capacidade para a mudança por meio do exame introspectivo. As maneiras pelas quais conceitos equivocados se enraízam na mente e as formas de transitar por eles foram os objetos de quarenta anos de ensinamento viajando pela índia e atraindo centenas, talvez milhares de alunos. Mais de 2.500 anos depois, os cientistas modernos estão começando a demonstrar, por meio de pesquisas rigorosas, que as revelações que ele obteve pelo exame subjetivo foram incrivelmente precisas.
Como o escopo da percepção do Buda se estendia muito além das idéias comuns que as pessoas tinham em relação a si mesmas e à natureza da realidade, ele foi compelido — como outros grandes mestres antes e depois dele — a comunicar o que aprendeu por meio de parábolas, exemplos, enigmas e metáforas. Ele tinha de usar as palavras. E, apesar de essas palavras serem ocasionalmente escritas em sânscrito, pali e outras línguas, elas sempre foram transmitidas oralmente, geração após geração. Por quê? Porque, quando ouvimos as palavras do Buda e dos mestres que o seguiram e obtiveram a mesma liberdade, precisamos pensar sobre seu significado e aplicar esse significado às nossas próprias vidas. E, quando fazemos isso, promovemos mudanças na estrutura e no funcionamento de nossos cérebros, muitas das quais serão discutidas nas páginas a seguir, criando para nós mesmos a mesma liberdade que o Buda vivenciou.
Nos séculos que se seguiram à morte do Buda, seus ensinamentos começaram a se espalhar para muitos países, incluindo o Tibete, cujo isolamento geográfico do resto do mundo proporcionava um ambiente perfeito para que gerações sucessivas de estudantes e professores se dedicassem exclusivamente ao estudo e à prática. Os mestres tibetanos que atingiram a iluminação e se tornaram Budas em suas próprias épocas transmitiam tudo o que haviam aprendido a seus alunos mais promissores, que, por sua vez, passavam essa sabedoria a seus próprios alunos. Dessa forma, foi estabelecida no Tibete uma linhagem contínua de ensinamentos baseada em instruções do Buda, da forma como foram registradas por seus primeiros seguidores e nos comentários detalhados daqueles ensinamentos originais. Contudo, o poder real da linhagem do budismo tibetano, que lhe dá tanta pureza e força, é a conexão direta entre os corações e as mentes dos mestres que transmitiram os principais ensinamentos da linhagem oralmente, e muitas vezes em segredo, a seus alunos.
Como muitas áreas do Tibete são isoladas por montanhas, rios e vales, tornava- se difícil para mestres e estudantes viajar pela região, compartilhando o que haviam aprendido uns com os outros. Assim, as linhagens de ensinamentos em diferentes regiões evoluíram de formas um pouco diferentes. Hoje, há quatro principais escolas, ou linhagens, do budismo tibetano: Nyingma, Sak-ya, Kagyu e Gelug. Apesar de cada uma dessas escolas principais ter se desenvolvido em épocas diferentes e em regiões diferentes do Tibete, elas compartilham as mesmas crenças, práticas e princípios básicos. As diferenças entre elas, similares às distinções, como me disseram, que existem entre as várias denominações do protestantismo, residem principalmente na terminologia e, muitas vezes, em abordagens muito sutis à teoria e à prática. A mais antiga dessas linhagens, estabelecida entre o século VII e começo do século IX, quando o Tibete era governado por reis, é a Escola Nyingma — nyingma é um termo tibetano que pode ser traduzido como “os antigos”. Infelizmente, o último dos reis tibetanos, Langdarma — por motivos políticos e pessoais —, iniciou uma violenta repressão ao budismo. Apesar de Langdarma ter reinado por apenas quatro anos antes de ser assassinado no ano 842, durante cerca de 150 anos após a sua morte, a primeira linhagem de ensinamentos budistas manteve-se como um tipo de movimento “de resistência”, à medida que o Tibete passava por grandes mudanças políticas, reconstituindo-se em uma série de reinos feudais separados mas fracamente confederados.
Essas mudanças políticas proporcionaram uma oportunidade para o budismo reafirmar sua influência lenta e silenciosamente, à medida que professores indianos viajavam para o Tibete e alunos interessados faziam a árdua viagem pelo Himalaia para estudar diretamente sob a orientação dos mestres do budismo indiano. Entre as primeiras escolas a se basearem no Tibete durante esse período, estava a Kagyu, cujo nome é derivado dos termos tibetanos ka, traduzido como “fala” ou “instrução”, egyu, um termo que essencialmente significa “linhagem”. A base da Escola Kagyu reside na tradição de transmitir instruções oralmente de mestre a aluno, preservando, dessa forma, uma quase inigualável pureza de transmissão. A tradição Kagyu se originou na Índia durante o século X, quando um homem extraordinário chamado Tilopa despertou para seu pleno potencial. Ao longo de várias gerações, as revelações que Tilopa obteve — e as práticas por meio das quais ele as apreendeu — foram passadas de mestre a aluno, eventualmente chegando a Gampopa, um brilhante tibetano que abriu mão de sua carreira como médico para seguir os ensinamentos do Buda. Gampopa transmitiu tudo o que aprendeu para quatro de seus alunos mais promissores, que abriram suas próprias escolas em diferentes regiões do Tibete.
Um desses alunos, Dusum Khyenpa (um nome tibetano que pode ser traduzido como “o profeta dos três tempos” — o passado, o presente e o futuro), fundou o que é hoje conhecido como a linhagem Karma Kagyu, cujo nome deriva da palavra sânscrita karma, que pode ser traduzida como “ação” ou “atividade”. Na tradição Karma Kagyu, todo o conjunto de ensinamentos, que representa mais de uma centena de volumes contendo instruções filosóficas e práticas, é transmitido oralmente pelo mestre da linhagem, conhecido como o Kar-mapa, a alguns alunos —vários dos quais encarnaram geração após geração especificamente para transmitir a totalidade dos ensinamentos à próxima encarnação do Karmapa—, afim de preservar e proteger essas lições, de valor inestimável na forma pura como foram passadas mais de mil anos atrás.
Não há um equivalente na cultura ocidental para esse tipo de transmissão direta e contínua. O mais perto de como isso poderia funcionar seria imaginar alguém como Albert Einstein abordando seus alunos mais capazes e dizendo: “Se você me permitir, agora vou jogar tudo o que aprendi em sua cabeça. Você pode ficar com isso por algum tempo e, quando eu voltar em outro corpo, daqui a vinte ou trinta anos, seu trabalho é jogar tudo o que ensinei de volta na cabeça de algum jovem que você só será capaz de reconhecer como eu próprio por meio das revelações que estou passando para você. Ah, e a propósito, só para o caso de a gente se desencontrar, você precisa passar tudo o que vou ensinar a você agora a alguns outros alunos cujas qualidades você será capaz de reconhecer com base no que estou prestes a mostrar a você… Só se certifique de que nada será perdido.”
Antes de falecer, em 1981, o 162 Karmapa transmitiu seu precioso conjunto de ensinamentos a vários de seus principais alunos, conhecidos como “Filhos do Coração”, e os encarregou da missão de transmiti-los ao próximo Karmapa ao mesmo tempo em que se certificavam de preservar os ensinamentos intactos ao passá-los em sua totalidade a outros alunos excepcionais. Um dos mais proeminentes “Filhos do Coração” do 16a Karmapa, o \2- Tai Situ Rinpo-che, me considerou um estudante promissor e facilitou minhas viagens à índia para estudar sob a orientação dos mestres reunidos no mosteiro Sherab Ling. Como mencionei anteriormente, as distinções entre as diferentes linhagens são muito pequenas, normalmente envolvendo apenas mínimas variações na terminologia e nas abordagens de estudo. Por exemplo, na linhagem Nyingma — da qual meu pai e vários de meus professores posteriores eram considerados mestres especialmente proeminentes —, utiliza-se o termo dzogchen, uma palavra tibetana que significa “grande perfeição”, para se referir aos ensinamentos sobre a natureza fundamental da mente. Na tradição Kagyu, a linhagem na qual Tai Situ Rinpoche, Saljay Rinpoche e muitos dos professores reunidos em Sherab Ling tiveram seu principal treinamento, os ensinamentos sobre a essência da mente são coletivamente chamados de mahatnudra, uma palavra que pode ser traduzida como “o Grande Selo”. Há muito pouca diferença entre os dois conjuntos de ensinamentos, exceto talvez pelo fato de os ensinamentos dzogchen se concentrarem em cultivar um entendimento profundo da visão da natureza fundamental da mente, enquanto os ensinamentos maha-mudra tenderem a se concentrar no processo de meditação que facilita a experiência direta da natureza da mente.
No mundo moderno de aviões, automóveis e telefones, é muito mais fácil para professores e alunos viajarem, de modo que quaisquer diferenças que eventualmente tenham sido desenvolvidas no passado, nas diferentes escolas, se tornem menos significativas. O que não mudou, entretanto, é a importância de receber a transmissão direta dos ensinamentos daqueles que os dominam. Pelo vínculo direto com um mestre em vida, algo incrivelmente precioso é transferido, como se algo vivo e pulsante fosse passado do coração do mestre para o do aluno. E dessa forma direta que os conhecimentos ensinados durante o retiro de três anos são passados de mestre a aluno, o que talvez explique por que eu estava tão ansioso para participar do retiro em Sherab Ling.
ENCONTRANDO MINHA MENTE
Eu gostaria de dizer que tudo melhorou depois que me instalei com segurança entre os outros participantes do retiro de três anos em Sherab Ling. Entretanto, na verdade, meu primeiro ano no retiro foi um dos piores de minha vida. Todos os sintomas da ansiedade — tensão física, aperto na garganta, tonturas e ondas de pânico que eram especialmente intensas durante as práticas em grupo — me atacaram com força máxima. Em termos ocidentais, eu estava tendo um esgotamento nervoso.
Em retrospecto, posso dizer que o que estava de fato ocorrendo era o que gosto de chamar de um “auge da crise nervosa”. Totalmente isolado das distrações da vida cotidiana, me vi na posição de ter de confrontar diretamente minha própria mente — que, naquele ponto, não era uma paisagem muito agradável para se contemplar fixamente, dia após dia. A cada semana que passava, parecia que a paisagem mental e emocional que eu estava vendo ficava cada vez mais assustadora. Enfim, quando o primeiro ano de retiro chegou ao fim, me descobri tendo de fazer a escolha entre passar os dois anos seguintes escondido em meu quarto ou aceitando a verdade, em sua totalidade, das lições que havia aprendido com meu pai e outros professores: que quaisquer problemas que eu pudesse estar vivenciando eram os hábitos do pensamento e da percepção impregnados em minha própria mente.
Decidi seguir o que haviam me ensinado.
Por três dias, fiquei em meu quarto meditando, usando muitas das técnicas que descreverei posteriormente neste livro. Aos poucos, comecei a reconhecer como os pensamentos e as emoções que me perturbaram por alguns anos eram, na verdade, débeis e transitórios, e como minha fixação nos pequenos problemas os transformaram em grandes problemas. Só de me sentar calmamente e observar como meus pensamentos e emoções iam e vinham rapidamente e, em muitos aspectos, sem nenhuma lógica, comecei a reconhecer de forma direta que eles estavam longe de ser tão sólidos ou reais quanto aparentavam. E, uma vez que comecei a me livrar de minha crença na história que eles pareciam contar, também comecei a ver o “autor” por trás deles — a consciência infinitamente vasta e infinitamente aberta que é a própria natureza da mente.
Qualquer tentativa de captar a experiência direta da natureza da mente em palavras é inútil. O melhor que pode ser dito é que a experiência é de imensurável tranqüilidade e, uma vez estabilizada pela prática, virtualmente inabalável. É uma experiência de bem-estar que irradia de todos os estados físicos, emocionais e mentais — mesmo aqueles que possam ser comumente rotulados como desagradáveis. Esse senso de bem-estar, independentemente das flutuações das experiências externas e internas, é uma das formas mais claras de compreender o que os budistas querem dizer por “felicidade”, e tive a sorte de ter um vislumbre dele durante meus três dias de isolamento.
Ao final daqueles três dias, deixei meu quarto e retomei minhas práticas em grupo. Mais duas semanas de prática intensa decorreram para eu superar a ansiedade que havia me acompanhado ao longo de toda a minha infância e para perceber, por meio da experiência direta, a verdade do que me fora ensinado. Daquele ponto em diante, nunca mais tive um ataque de pânico. A sensação de paz, confiança e bem-estar que resultou daquela experiência — mesmo sob condições que poderiam objetivamente ser consideradas estressantes — nunca mais se abalou. Não assumo nenhum crédito pessoal por essa transformação em minha experiência, já que ela só se concretizou pelo esforço de aplicar diretamente a verdade que me foi transmitida pelos que me precederam.
Eu tinha 16 anos quando concluí o retiro e, para a minha grande surpresa, Tai Situ Rinpoche me nomeou mestre daquele mesmo retiro, que estava para começar quase imediatamente. Assim, em poucos meses, vi-me de volta ao retiro, ensinando as práticas preliminares e avançadas da linhagem Kagyu, proporcionando aos novos participantes do retiro acesso à mesma linha de transmissão direta que eu havia recebido. Apesar de então eu ser o mestre, aquilo, do meu ponto de vista, era uma oportunidade maravilhosa de passar quase sete anos ininterruptos em prática intensiva de retiro. E dessa vez não passei nem um instante sequer me encolhendo de medo em meu quarto.
Quando o segundo retiro terminou, inscrevi-me para um ano na universidade monástica Dzongsar, que ficava bem perto de Sherab Ling. A idéia fora uma sugestão de meu pai e Tai Situ Rinpoche prontamente a aceitou. Sob a orientação direta do chefe da universidade – Khenchen Kunga Wangchuk, um grande acadêmico que havia acabado de chegar à índia do Tibete -, tive a sorte de avançar em meus estudos das disciplinas filosóficas e científicas do budismo.
O método de estudos em uma universidade monástica tradicional é bem diferente da maioria das universidades ocidentais. Você não tem a chance de escolher as disciplinas ou sentar-se em uma agradável sala de aula ou sala de convenções, ouvindo os professores dando suas opiniões e explicações sobre assuntos específicos ou escrever trabalhos e fazer testes escritos. Em uma universidade monástica, espera-se que você estude um amplo número de textos budistas e quase todos os dias há “testes-surpresa orais”, nos quais se solicita que um estudante, cujo nome é retirado aleatoriamente de um vaso, elabore um comentário espontâneo sobre o significado de uma seção específica de um texto. Nossos “testes” consistiam, algumas vezes, em compor comentários escritos sobre os textos que estudávamos e, outras vezes, em debates públicos nos quais os professores inesperadamente chamavam estudantes individuais, desafiando-os a dar respostas precisas a perguntas imprevisíveis sobre algumas questões delicadas da filosofia budista.
Ao final de meu primeiro ano como aluno em Dzongsar, Tai Situ Rinpoche embarcou em uma série de viagens ao redor do mundo para lecionar e encarregou-me da tarefa de supervisionar, sob sua direção, as atividades cotidianas de Sherab Ling, bem como da responsabilidade por reabrir o shedra no mosteiro, estudando e trabalhando como professor-assistente. Ele também me encarregou de liderar os próximos retiros de três anos em Sherab Ling. Como eu devia muito a ele, não hesitei em aceitar essas responsabilidades. Se ele confiava em mim para essas funções, quem era eu para questionar sua decisão? E, naturalmente, tive a sorte de viver em uma época na qual sempre poderia contar com o telefone para receber sua orientação e instruções diretas.
Quatro anos se passaram assim, supervisionando as tarefas em Sherab Ling, aprofundando meus estudos e ensinando no novo shedra, e transmitindo ensinamentos diretamente para os alunos em retiro. Ao final daqueles quatro anos, viajei para o Butão a fim de receber de Nyoshul Khen Rinpoche, mestre dzog-chen de extraordinária visão, experiência e habilidade, a transmissão direta dos ensinamentos orais conhecidos como Trekchõ e Togai — que podem ser traduzidos como “pureza primordial” e “presença espontânea”.
Esses ensinamentos são dados a apenas um aluno por vez e fiquei, para dizer o mínimo, impressionado por ter sido escolhido para receber essa transmissão direta. Não posso deixar de considerar Nyoshul Khen Rinpoche, bem como Tai Situ Rinpoche, Saljay Rinpoche e meu pai, os professores mais influentes de minha vida.
A oportunidade de receber essas transmissões também me ensinou, de forma indireta, a lição extremamente valiosa de que, não importa em que nível uma pessoa se comprometa em promover o bem-estar dos outros, ele ou ela recebe um pagamento multiplicado por mil pelas oportunidades de aprender e evoluir. Cada palavra gentil e cada sorriso que você oferece a alguém que possa estar tendo um dia ruim retornam de forma que você nunca esperaria. Como e por que isso ocorre é um assunto que examinaremos mais adiante, uma vez que a explicação tem muito a ver com os princípios da biologia e da física que aprendi quando comecei a viajar pelo mundo e a trabalhar mais diretamente com os mestres da ciência moderna.
A LUZ DO OCIDENTE
Como minha agenda durante os dias que se seguiram a meu primeiro retiro estava relativamente cheia, eu não tinha muito tempo para acompanhar os avanços que estavam sendo feitos na neurociência e em áreas relacionadas da pesquisa cognitiva ou para digerir as descobertas no campo da física que estavam se consolidando. Em 1998, entretanto, minha vida mudou inesperadamente quando meu irmão, Tsoknyi Rinpoche, que havia recebido a tarefa de ensinar na América do Norte, não pôde fazer a viagem e fui enviado em seu lugar. Foi minha primeira longa visita ao Ocidente. Eu tinha 23 anos. Apesar de não saber disso quando embarquei no vôo para Nova York, as pessoas que eu estava para conhecer durante aquela viagem moldariam definitivamente a minha forma de pensar.
Cedendo generosamente seu tempo e oferecendo- me uma montanha de livros, artigos, DVDs e vídeos, eles me apresentaram as idéias da física moderna e os últimos desenvolvimentos nas pesquisas neurocientíficas, cognitivas e comportamentais. Fiquei muito empolgado, já que as pesquisas científicas objetivando o estudo dos efeitos do treinamento budista haviam se tornado muito ricas e detalhadas — e, ainda mais importante, compreensíveis para pessoas, como eu, que não eram cientistas treinados. E, como meu conhecimento da língua inglesa não era avançado naquela época, sinto-me duplamente agradecido às pessoas que passaram tanto tempo explicando as informações em termos que eu pudesse entender. Por exemplo, não há palavras equivalentes em tibetano para termos como “célula”, “neurônio” ou “DNA” — e as manobras verbais que as pessoas tinham de fazer para me ajudar a compreender esses conceitos eram tão complicadas que quase sempre acabavam em ataques de riso.
Enquanto estive ocupado com meus estudos entrando e saindo de retiros, meu amigo Francisco Varela estava trabalhando com o Dalai Lama para organizar diálogos entre cientistas modernos e monges e estudiosos budistas. Esses diálogos evoluíram para conferências do Mind and Life Institute, durante as quais especialistas em várias áreas da ciência moderna e de estudos budistas se reuniam para trocar idéias sobre a natureza e o funcionamento da mente. Tive a grande oportunidade de poder participar da conferência em Dharamsala, na índia, em março de 2000, e da conferência no MIT em Cambridge, Massachusetts, em 2003.
Aprendi muito sobre os mecanismos biológicos da mente durante a conferência em Dharamsala. Contudo, foi a conferência do MIT — que se concentrava nas correlações entre os métodos budistas introspectivos de experiência exploratória e a abordagem objetiva da ciência moderna — que me fez começar a pensar em como levar o que havia aprendido durante meus anos de treinamento a pessoas que não tinham necessariamente familiaridade com a prática budista ou com as complexidades da ciência moderna.
De fato, à medida que a conferência do MIT evoluía, algumas questões começavam a surgir: O que aconteceria se as abordagens budista e ocidental fossem combinadas? O que poderia ser aprendido ao juntar as informações fornecidas por pessoas treinadas para oferecer descrições subjetivas detalhadas de suas experiências e os dados objetivos proporcionados por máquinas capazes de mensurar alterações em tempo real da atividade cerebral? Quais fatos os métodos introspectivos da prática budista poderiam proporcionar que as linhas ocidentais de pesquisa tecnológica não poderiam? Quais revelações as observações objetivas das pesquisas clínicas poderiam oferecer aos praticantes do budismo?
Quando a conferência terminou, os participantes tanto dos painéis budistas quanto da ciência ocidental reconheceram não apenas que ambos os lados poderiam ganhar muito se descobrissem alternativas de trabalhar juntos, mas também que a colaboração em si representava uma enorme oportunidade de melhorar a qualidade da vida humana. Em seu discurso de conclusão do evento, Eric S. Lander, PhD, professor de biologia molecular do MIT e diretor do Whitehead Institute/MIT Center for Genome Research — centro para pesquisas do genoma —, salientou que, enquanto as práticas budistas enfatizam o alcance de níveis mais elevados de consciência mental, o foco da ciência moderna residia em refinar maneiras de recuperar pacientes com distúrbios mentais a um estado de normalidade.
“Por que parar por aqui?”, ele perguntou à audiência. “Por que nos satisfazermos em dizer que não somos mentalmente doentes? Por que não nos concentramos em melhorar cada vez mais?”
As perguntas do professor Lander me fizeram pensar em criar alguma forma de oferecer às pessoas a oportunidade de aplicar as lições do budismo e da ciência moderna aos problemas que enfrentam em suas vidas cotidianas. Como aprendi da pior forma durante meu primeiro ano em retiro, o conhecimento teórico, por si só, é de fato insuficiente para sobrepujar os hábitos psicológicos e biológicos que geram tanta dor de cabeça e desconforto no dia-a-dia. Para que a verdadeira transformação ocorra, a teoria deve ser aplicada na prática.
Sou extremamente grato aos professores budistas que me proporcionaram, em meus primeiros anos de treinamento, tantas profundas revelações filosóficas e meios práticos para aplicá- las. E me sinto igualmente agradecido aos cientistas que me concederam seu tempo e esforço de forma tão generosa, não somente por reavaliar e parafrasear tudo o que aprendi em termos que pudessem ser mais facilmente acessíveis aos ocidentais, mas também por validar os resultados da prática budista por meio de extensivas pesquisas em laboratório.
Que sorte temos de estarmos vivos neste momento único na história humana, em que a colaboração entre cientistas ocidentais e budistas está equilibrada para oferecer a toda a humanidade a possibilidade de atingir um nível de bem-estar que desafia a imaginação! Minha esperança ao escrever este livro é que todos os que o lerem reconhecerão os benefícios práticos de aplicadas lições dessa extraordinária colaboração e perceberão por si mesmos a promessa de seu pleno potencial humano.
A SINFONIA INTERNA
Um conjunto de partes produz o conceito de um veículo. — Samyuttanikãya, traduzido para o inglês por Maria Montenegro
UMA DAS PRIMEIRAS LIÇÕES QUE aprendi como budista foi que cada ser senciente – isto é, cada criatura com pelo menos um senso muito básico de consciência – pode ser definido por três aspectos ou características básicas: corpo, fala e mente. O corpo, é claro, se refere à parte física de nosso ser, que está em constante mudança. Ele nasce, cresce, adoece, envelhece e, mais cedo ou mais tarde, morre. Afala se refere não somente à nossa habilidade de falar, mas também a todos os diferentes sinais que trocamos na forma de sons, palavras, gestos e expressões faciais e até mesmo a produção de feromônios, componentes químicos secretados pelos mamíferos que sutilmente influenciam o comportamento e o desenvolvimento de outros mamíferos. Como o corpo, a fala é um aspecto impermanente da experiência. Todas as mensagens que trocamos por meio de palavras e outros sinais vão e vêm em seu próprio tempo. E, quando o corpo morre, a capacidade de fala morre com ele.
Amente é mais difícil de descrever. Não é uma “coisa” que podemos apontar tão facilmente como podemos identificar o corpo ou a fala. Por mais profundamente que investiguemos esse aspecto do ser, não podemos de fato localizar qualquer objeto definido que possamos chamar de mente. Centenas, talvez milhares, de livros e artigos foram escritos na tentativa de descrever esse aspecto elusivo do ser. Porém, apesar de todo o tempo e esforço gastos em tentar identificar o que é a mente e onde ela está, nenhum budista — e nenhum cientista ocidental — foi capaz de dizer conclusivamente: “Aha! Encontrei a mente! Ela está localizada nesta parte do corpo. Ela tem essa aparência e funciona dessa forma.”
Na melhor das hipóteses, séculos de investigação puderam determinar que a mente não tem uma localização determinada, forma, cor ou qualquer outra qualidade tangível que possamos relacionar a outros aspectos básicos como a localização do coração e dos pulmões, os princípios da circulação e as áreas que controlam funções essenciais como o metabolismo. Como seria mais fácil dizer que algo tão indefinível quanto a mente na verdade não existe! Como seria mais fácil despachar a mente para o domínio das coisas imaginárias como fantasmas, fadas e duendes!
Entretanto, como alguém poderia realisticamente negar a existência da mente? Nós pensamos. Sentimos. Reconhecemos quando nossas costas doem ou nossos pés ficam dormentes. Sabemos quando estamos cansados ou alertas, felizes ou tristes. A incapacidade de localizar ou definir com precisão um fenômeno não significa que ele não exista. Tudo o que isso significa é que ainda não acumulamos informações suficientes para propor um modelo com o qual possamos trabalhar. Para usar uma analogia simples, você pode comparar a compreensão científica da mente com a nossa própria aceitação de algo tão simples quanto o poder a eletricidade. Acionar um interruptor de luz ou ligar uma televisão não requer um entendimento detalhado de redes de circuito ou energia eletromagnética. Se a luz não acender, você troca a lâmpada. Se a televisão não funcionar, você verifica a antena, a conexão do cabo ou do satélite. Você pode ter de trocar uma lâmpada queimada, apertar a conexão entre a televisão e os fios que a conectam ou substituir um fusível queimado. Na pior das hipóteses, você tem de chamar um técnico. Contudo, sustentando todas essas ações, há um entendimento básico, ou uma fé, de que a eletricidade de fato funciona.
Situação similar sustenta a operação da mente. A ciência moderna tem sido capaz de identificar muitos processos e estruturas celulares que contribuem para os eventos intelectuais, emocionais e sensoriais que associamos ao funcionamento mental. Entretanto, ela ainda precisa identificar o que constitui a “mente” em si. Na verdade, quanto mais os cientistas conseguem analisar com precisão a atividade mental, mais eles se aproximam do entendimento budista de que a mente é um evento em perpétua evolução, e não uma entidade distante.
As primeiras traduções dos textos budistas tentavam identificar a mente como um tipo distinto de “coisa” que existe além dos limites da compreensão científica atual. Contudo, essas traduções incorretas eram baseadas em pressuposições ocidentais antigas de que toda experiência deve, de alguma forma, ser relacionada a algum aspecto de função física. Interpretações mais recentes de textos clássicos revelam um entendimento muito mais próximo do conceito científico moderno de que “a mente” é um tipo de ocorrência em constante evolução resultante da interação de hábitos neurológicos e dos elementos imprevisíveis da experiência imediata.
Os cientistas modernos e os budistas concordam que ter uma mente é o que diferencia todos os seres sencientes, ou conscientes, de outros organismos como a grama ou as árvores — e certamente as coisas que não consideraríamos necessariamente vivas, como pedras, canetas ou blocos de cimento. A mente, em essência, é o aspecto mais importante de todas as criaturas que compartilham o atributo de serem sencientes. Até a minhoca tem uma mente. Admito que pode não ser tão sofisticada quanto a mente humana, mas, novamente, pode haver alguma virtude na simplicidade. Nunca ouvi falar de uma minhoca que tenha passado a noite inteira em claro preocupada com o mercado de ações.
Outra questão sobre a qual tanto cientistas modernos quanto budistas concordam é que a mente é o aspecto mais importante da natureza de um ser senciente. A mente é, em certo sentido, quem controla os fios das marionetes, enquanto o corpo e as várias formas de comunicação que constituem a “fala” são meramente as suas marionetes.
Você mesmo pode testar essa idéia da função da mente. Se você coçar seu nariz, o que é que reconhece uma coceira? O corpo, por si só, é capaz de reconhecer a coceira? É o corpo que se controla para levantar a mão e coçar o nariz? Será que o corpo chega a ser capaz de fazer a distinção entre a coceira, a mão e o nariz? Ou pegue o exemplo da sede. Se você está com sede, é a mente que primeiramente reconhece a sede, que o impulsiona a pedir um copo d’água, que direciona sua mão para pegar o copo e levá-lo à boca e a comanda a engolir a água. É a mente que então registra o prazer de satisfazer uma necessidade física. Apesar de não podermos vê- la, a mente está sempre presente e ativa. Ela é a fonte de nossa capacidade de reconhecer a diferença entre um prédio e umaárvore, entre a chuva e a neve, entre um céu limpo e um nublado. Contudo, como ter uma mente é uma condição tão básica de nossa experiência, a maioria de nós não lhe dá o devido valor. Nós não nos incomodamos em parar para nos perguntar o que pensa “Eu quero comer; eu quero ir; eu quero sentar”. Nós não nos perguntamos: “A mente está dentro do corpo ou além dele? Ela começa em algum lugar, existe em algum lugar e termina em algum lugar? Ela tem uma forma ou cor? Será que ela chega a existir ou é só uma atividade aleatória de células cerebrais que, com o tempo, acumularam a força do hábito?” Entretanto, se quisermos nos desviar de todas as variedades e níveis de dor, sofrimento e desconforto que vivenciamos no dia-a-dia e compreender o pleno significado de ter uma mente, temos de fazer alguma tentativa no sentido de olhar para a mente e distinguir suas características principais.
O processo é, na verdade, muito simples. Ele só parece difícil no começo porque estamos muito acostumados a olhar para o mundo “lá fora”, um mundo que parece tão cheio de objetos e experiências interessantes. Quando você olha para a sua mente, é como tentar ver a própria nuca sem a ajuda de um espelho.
Então, agora, gostaria de propor um teste simples para demonstrar o problema de tentar olhar para a mente de acordo com nossa maneira usual de entender as coisas. Não se preocupe. Você não tem como não passar neste teste e não vai precisar de uma caneta para preencher todos os formulários.
Eis o teste: Na próxima vez que você se sentar para almoçar ou jantar, pergunte a si mesmo: “O que me faz pensar que esta comida está boa – ou não tão boa? O que reconhece o ato de comer?” A resposta imediata parece óbvia: “Meu cérebro.” Entretanto, quando de fato olhamos para o cérebro do ponto de vista da ciência moderna, descobrimos que a resposta não é tão simples assim.
O QUE ESTÁ ACONTECENDO LÁ?
Todos os fenômenos são projeções da mente. – 32 GYALWANG KARMAPA, Wishes of Mahãmudrã, traduzido para o inglês por Maria Montenegro
Se tudo o que queremos é a felicidade, por que precisamos saber qualquer coisa sobre o cérebro? Não podemos só ter pensamentos felizes, imaginar nossos corpos cheios de luz cintilante ou cobrir nossas paredes com imagens de coelhinhos e nuvens e parar por aí? Bem… talvez.
Infelizmente, um dos principais obstáculos que encaramos quando tentamos analisar a mente é uma convicção profundamente enraizada e muitas vezes inconsciente de que “nascemos assim e nada do que possamos fazer pode mudar isso”. Vivenciei esse mesmo senso de futilidade pessimista em minha própria infância e vi isso refletido várias e várias vezes em meu trabalho com pessoas do mundo inteiro. Mesmo sem conscientemente pensar a respeito, a idéia de que não podemos alterar nossas mentes bloqueia qualquer tentativa possível.
As pessoas com as quais conversei que tentam fazer mudanças usando afirmações, preces ou visualizações admitem que muitas vezes desistem depois de alguns dias ou semanas, por não verem resultados imediatos. Quando suas preces e afirmações não funcionam, elas rejeitam toda a idéia de trabalhar com a mente, considerando-a apenas uma promoção de marketing elaborada para vender livros. Uma das melhores coisas de ensinar ao redor do mundo nas vestimentas de um monge budista e com um título influente é que as pessoas que não costumariam dispor de seu tempo para uma pessoa comum ficam felizes em conversar comigo, como se eu fosse alguém importante o suficiente para se levar a sério. E, em minhas conversas com cientistas ao redor do mundo, fiquei surpreso ao ver que há um consenso quase universal na comunidade científica de que o cérebro é estruturado de uma forma que realmente possibilita efetuar mudanças reais na vivência cotidiana.
Ao longo dos últimos dez anos, ouvi muitas idéias interessantes dos neuro-cientistas, biólogos e psicólogos com os quais conversei. Ouvi algumas coisas que desafiaram as idéias com as quais cresci; outras confirmaram o que eu havia aprendido, embora por um ponto de vista diferente. Independentemente de concordarmos ou não, o que de mais valioso que aprendi nessas conversas é que reservar um tempo para adquirir mesmo que um entendimento parcial da estrutura e do funcionamento do cérebro proporciona mais bases para compreender, do ponto de vista científico, como e por que as técnicas que aprendi como budista de fato funcionam.
Uma das metáforas mais interessantes sobre o cérebro com a qual me deparei foi uma afirmação feita por Robert B. Livingston, chefe e fundador do Departamento de Neurociências da Universidade da Califórnia, San Diego.
Durante a primeira conferência do Mind and Life Institute, em 1987, o Dr. Li-vingston comparou o cérebro com “uma sinfonia bem afinada e bem disciplinada”.1 Como uma orquestra sinfônica, ele explicou, o cérebro é feito de grupos de atuantes – no caso da orquestra, músicos – que trabalham juntos para produzir resultados específicos, como movimentos, pensamentos, sentimentos, memórias e sensações físicas. Apesar de esses resultados poderem parecer relativamente simples quando você observa alguém bocejar, piscar, espirrar ou levantar um braço, o grande número de aspectos envolvidos em ações tão simples e a amplitude das interações entre eles formam um panorama incrivelmente complexo.
Para melhor*compreender o que o Dr. Livingston estava dizendo, tive de pedir que as pessoas me ajudassem a entender as informações contidas na montanha de livros, revistas e outros materiais que recebi em minhas primeiras viagens ao Ocidente. Grande parte do material era extremamente técnica e, enquanto eu tentava compreender aquilo tudo, peguei-me sentindo uma grande compaixão por cientistas aspirantes e estudantes de medicina.
Felizmente, tive a chance de conversar bastante com pessoas que tinham um conhecimento muito maior do que eu nessas áreas e que traduziram todo o jargão científico em termos simples que eu pudesse entender. Espero que o tempo e o esforço que eles despenderam com isso tenham sido tão úteis para eles como foram para mim. Não apenas meu vocabulário em inglês aumentou significativamente, mas também obtive conhecimento de como o cérebro funciona de uma forma extremamente simples e que fazia muito sentido. E, à medida que minha compreensão acerca dos detalhes essenciais aumentava, ficava mais claro para mim que, para alguém que não foi criado na tradição budista, uma apreciação básica da natureza e do papel dos “atuantes” aos quais o Dr. Livingston se referiu é essencial para entender como e por que as técnicas budistas de meditação de fato funcionam em um nível puramente psicológico.
Também fiquei fascinado em aprender do ponto de vista científico o que ocorreu dentro do meu próprio cérebro para me permitir evoluir de uma criança dominada pelo medo a alguém que consegue viajar pelo mundo e manter-se sem nenhum traço de medo diante de centenas de pessoas que se juntaram para ouvir meus ensinamentos. Não sei explicar direito por que tenho tanta curiosidade em entender as razões físicas por trás das mudanças que ocorrem depois de anos de prática, enquanto tantos de meus professores e contemporâneos se satisfazem com a própria mudança na consciência. Talvez em alguma vida passada eu tenha sido mecânico.
Mas, voltando ao cérebro… Colocando em termos muito simples, a maior parte da atividade cerebral parece decorrer de uma classe muito especial de células chamadas neurônios. Os neurônios são células muito sociáveis: adoram fofocar. Em alguns aspectos, eles são como crianças desobedientes na escola passando bilhetinhos e cochichando entre si — com a exceção de que as conversas secretas entre os neurônios tratam principalmente de sensações, movimentos, solução de problemas, criação de memórias e produção de pensamentos e emoções.
Essas células fofoqueiras se parecem muito com árvores, compostas de um tronco, conhecido como axônio, e galhos que se estendem para enviar e receber mensagens de, e para, outros galhos e outras células nervosas que passam pelos tecidos musculares e cutâneos, órgãos vitais e órgãos sensoriais. Eles passam suas mensagens uns aos outros através de pequenas lacunas entre os galhos mais próximos. Essas lacunas são chamadas de sinapses. As mensagens que fluem por essas lacunas são enviadas na forma de moléculas químicas chamadas neurotransmissores, que geram sinais elétricos que podem ser medidos por um eletroencefalograma. Hoje em dia, as pessoas estão bem familiarizadas com alguns desses neurotransmissores: por exemplo, a serotonina, que é influente na depressão; a dopamina, uma substância química associada às sensações de prazer; e a epinefrina, mais comumente conhecida como adrenalina, uma substância química muitas vezes produzida em resposta ao estresse, à ansiedade e ao medo, mas também crítica para a atenção e a vigilância. O termo científico para a transmissão de um sinal eletroquímico de um neurônio para o outro é potencial de ação — um termo que me soou tão estranho quanto a palavra vacuidade pode soar a pessoas que nunca foram treinadas como budistas.
Reconhecer a atividade dos neurônios não seria muito relevante em termos de sofrimento ou felicidade, exceto por alguns detalhes importantes. Quando os neurônios se conectam, formam um vínculo muito parecido com amizades antigas. Eles adquirem o hábito de passar os mesmos tipos de mensagens de um lado para o outro, como velhos amigos tendem a reforçar os julgamentos uns dos outros sobre pessoas, eventos e experiências. Esse vínculo é a base biológica de grande parte do que chamamos de hábitos mentais, uma espécie de reflexo automático — daqueles que temos quando um médico nos bate no joelho com um martelinho — em relação a determinados tipos de pessoas, lugares e coisas.
Para usar um exemplo muito simples, se tivesse me assustado com um cachorro quando era muito pequeno, um conjunto de conexões neuronais teria se formado em meu cérebro correspondendo às sensações físicas de medo, por um lado, e o conceito cachorros são assustadores, por outro. Na próxima vez em que eu visse um cachorro, o mesmo conjunto de neurônios recomeçaria a conversar animadamente entre si para me lembrar de que cachorros são assustadores. E, a cada vez que eles conversassem entre si, a mensagem se tornaria mais alta e mais convincente, até se tornar uma rotina tão enraizada que tudo o que eu precisaria fazer seria pensar sobre cachorros e meu coração começaria a bater mais rápido e eu começaria a suar.
Agora, suponha que um dia eu visite um amigo que tem um cachorro. Inicialmente, posso ficar aterrorizado ao ouvir o cão latir e ver o animal sair para me cheirar. Contudo, depois de algum tempo, o cachorro se acostumaria comigo e viria se sentar a meus pés ou no meu colo e talvez até começaria a me lamber — tão feliz e afetuoso que eu praticamente teria de empurrá-lo para o lado.
O que aconteceu no cérebro do cachorro é que um conjunto de conexões neuronais associadas com meu cheiro e todas as sensações que lhe dizem que seu dono gosta de mim cria um padrão que eqüivale a algo como: “Ei, essa pessoa é legal!” Enquanto isso, em meu cérebro, um novo conjunto de conexões neuronais associadas às sensações físicas agradáveis começa a conversar entre si e começo a pensar: “Ei, talvez os cachorros sejam legais!” A cada vez que eu visitar meu amigo, esse novo padrão é reforçado e o antigo é enfraquecido — até que, finalmente, não terei mais tanto medo de cachorros.
Em termos neurocientíficos, essa capacidade de substituir conexões neuronais antigas por novas é chamada de plasticidade neuronal. O termo tibetano para essa capacidade é le-su-rung-wa, que pode ser traduzido como “flexibilidade”. Você pode usar qualquer um dos termos e soar muito esperto. Em resumo, em um nível estritamente celular, a experiência repetida pode mudar a forma como o cérebro trabalha. Isso explica o funcionamento dos ensinamentos budistas, que lidam com a eliminação de hábitos mentais que nos conduzem à infelicidade.
TRÊS CÉREBROS EM UM
Agora, já deve estar claro que o cérebro não é um objeto único e que a resposta a uma pergunta como “O que me faz pensar que esta comida está boa — ou não tão boa?” não é tão simples quanto parece. Mesmo atividades relativamente básicas como comer e beber envolvem a troca de milhares de sinais eletroquímicos, cuidadosamente coordenados e que ocorrem em frações de segundos, entre milhões de células no cérebro e por todo o corpo. Há, entretanto, um nível adicional de complexidade que devemos levar em consideração antes de concluir nosso passeio pelo cérebro.
Os bilhões de neurônios no cérebro humano são agrupados por função em três camadas diferentes, cada uma das quais se desenvolveu ao longo de centenas de milhares de anos à medida que a espécie evoluía e adquiria mecanismos cada vez mais complexos para a sobrevivência. A primeira e mais antiga dessas camadas, conhecida como o tronco cerebral, é um grupo de células na forma de uma lâmpada que se estende até o começo da medula espinhal. Essa camada também é comumente chamada de cérebro reptiliano, devido à semelhança com o cérebro completo de muitas espécies de répteis. A principal finalidade do cérebro reptiliano é regular funções básicas e involuntárias, como a respiração, o metabolismo, as batidas do coração e a circulação. Ele também controla o que é chamado de reação de lutar ou fugir ou reflexo de “susto”, uma reação automática que nos compele a interpretar um evento ou encontro inesperado — por exemplo, um ruído alto, um cheiro desconhecido, alguma coisa rastejando em seu braço ou espreitando em um canto escuro — como uma possível ameaça. Sem nenhum comando consciente, a adrenalina começa a correr pelo corpo, o coração acelera e os músculos ficam tensos. Se a ameaça for percebida como algo maior do que nossa capacidade de superá-la, nós fugimos. Se acharmos que conseguiremos vencer a ameaça, nós lutamos. É fácil perceber como uma resposta automática desse tipo afetaria significativamente nossa capacidade de sobrevivência.
A maioria dos répteis tende a ser mais combativa do que cooperativa e eles não possuem nenhuma capacidade inata para cuidar de seus filhotes. Depois de botar os ovos, a fêmea normalmente abandona o ninho. Quando os filhotes saem dos ovos, apesar de possuírem os instintos e as habilidades dos adultos, seus corpos ainda são vulneráveis e eles precisam sobreviver por conta própria. Muitos não sobrevivem às primeiras horas de vida. Enquanto se arrastam na direção da segurança promovida por qualquer hábitat que seja mais natural a eles — como o mar, no caso das tartarugas-marinhas —, eles são mortos e devorados por outros animais e, com muita freqüência, por membros de sua própria espécie. Na verdade, não é incomum para répteis que acabaram de sair dos ovos serem mortos por seus pais, que não reconhecem suas presas como os próprios filhos.
Com a evolução de novas classes de vertebrados, como aves e mamíferos, houve um incrível desenvolvimento na estrutura cerebral. Diferentemente de seus primos répteis, membros recém-nascidos dessas classes não são suficientemente desenvolvidos para cuidar de si mesmos; eles precisam de certo nível de cuidados parentais. Para dar conta dessa necessidade — e para garantir a sobrevivência da espécie —, uma segunda camada do cérebro gradualmente evoluiu. Essa camada, chamada de região límbica, circunda o tronco cerebral como um tipo de capacete e inclui uma série de conexões neurais programadas que estimulam o impulso para cuidar dos filhos — isto é, proporcionar comida e proteção e ensinar as habilidades essenciais de sobrevivência por meio de brincadeiras e outros exercícios.
Os caminhos neurais mais sofisticados também possibilitaram novas classes de animais com a capacidade de distinguir uma variedade maior de emoções além do simples comportamento de lutar ou fugir. Por exemplo, pais mamíferos conseguem distinguir não apenas sons específicos produzidos por seus filhotes, mas também diferenciar entre os tipos de sons que eles produzem — como perigo, prazer, fome e assim por diante. Além disso, a região límbica fornece uma capacidade mais ampla e sutil de “ler” as intenções de outros animais por meio da interpretação da postura corporal, estilo de movimento, expressão facial, olhar e mesmo odores sutis ou feromônios. E, por serem capazes de processar esses vários tipos de sinais, os mamíferos e as aves podem se adaptar com mais flexibilidade às diferentes circunstâncias, formando as fundações do aprendizado e da memória.
O sistema límbico possui algumas estruturas e capacidades notáveis que analisaremos com mais atenção mais adiante, quando falarmos sobre o papel das emoções. Duas de suas estruturas, entretanto, merecem atenção especial.
A primeira é o hipocampo, localizado no lóbulo temporal — isto é, bem atrás das têmporas. (Na verdade, temos dois hipocampos, um de cada lado do cérebro.) O hipocampo é crucial para a criação de novas memórias a partir de eventos diretamente vivenciados, fornecendo um contexto espacial, intelectual e — pelo menos no caso de seres humanos —verbal que dá significado às nossas reações emocionais. Pessoas que sofreram danos físicos nessa região do cérebro têm dificuldade de criar novas memórias; elas conseguem lembrar-se de tudo até o momento em que o hipocampo foi prejudicado, mas, depois disso, elas se esquecem, em instantes, de todas as pessoas que conhecem e de tudo o que acontece. O hipocampo também é uma das primeiras regiões do cérebro a serem afetadas pela doença de Alzheimer, bem como por doenças mentais como a esquizofrenia, depressão grave e transtorno bipolar.
Outra parte importante do sistema límbico é a amígdala, uma pequena estrutura neuronal em forma de amêndoa situada na parte inferior da região lím-bica, logo acima do tronco cerebral. Como o hipocampo, há dois desses pequenos órgãos no cérebro humano: um no hemisfério direito e outro no esquerdo. A amígdala desempenha papel fundamental tanto na habilidade de sentir emoções quanto na criação de memórias emocionais. Pesquisas demonstram que danos na amígdala ou sua remoção resultam em uma perda de capacidade em quase todos os tipos de reação emocional, incluindo os impulsos mais básicos de medo e empatia, bem como a incapacidade de formar e reconhecer relacionamentos sociais.2
A atividade da amígdala e do hipocampo requer uma análise mais detalhada ao tentarmos definir a ciência prática da felicidade. Como a amígdala está ligada ao sistema nervoso autônomo, a área do tronco cerebral que automaticamente controla as reações musculares, cardíacas e glandulares, e ao hipotálamo, uma estrutura neuronal na base da região límbica que libera adrenalina e outros hormônios na corrente sangüínea, as memórias emocionais que ela cria são extremamente poderosas, vinculadas a reações biológicas e bioquímicas significativas.
Quando um evento que gera uma forte reação biológica — como a liberação de uma grande quantidade de adrenalina ou outros hormônios — ocorre, o hipocampo envia um sinal para o tronco cerebral, onde é armazenado como um padrão. Como resultado, muitas pessoas são capazes de lembrar exatamente onde estavam e o que estavam fazendo quando, por exemplo, ficaram sabendo sobre, ou viram imagens de, desastres de ônibus espaciais ou o assassinato do presidente Kennedy. Os mesmos tipos de padrões podem ser armazenados para experiências mais pessoais acompanhadas de uma grande carga positiva ou negativa.
Como essas memórias e seus padrões associados são tão poderosos, eles podem ser acionados de forma relativamente fácil por eventos posteriores que tenham alguma semelhança — algumas vezes, muito pequena — com a memória original. Esse tipo de forte reação à memória obviamente oferece importantes benefícios de sobrevivência diante de circunstâncias que ameaçam a vida. Isso nos permite reconhecer e evitar alimentos que nos fizeram mal no passado ou evitar confrontar animais especialmente agressivos ou membros de nossa própria espécie. Mas isso também pode tornar nebulosas ou distorcer as percepções de experiências mais comuns. Por exemplo, crianças que foram regularmente humilhadas e criticadas pelos pais ou outros adultos podem vivenciar sentimentos inadequadamente fortes de medo, ressentimento ou outras emoções desagradáveis ao lidar com figuras de autoridade na vida adulta. Esses tipos de reações distorcidas muitas vezes resultam em um método de livre associação com o qual a amígdala conta para acionar uma resposta de memória. Um elemento significativo em uma situação atual que seja similar a um elemento de uma experiência passada pode estimular toda uma variedade de pensamentos, emoções e reações hormonais e musculares armazenadas na ocorrência da experiência original.
As atividades do sistema límbico — ou do “cérebro emocional”, como é algumas vezes chamado — são, em grande parte, balanceadas pela terceira e mais recente camada do cérebro: o neocórtex. Essa camada do cérebro, específica para os mamíferos, possibilita a capacidade de lógica, formação de conceitos, planejamento e reações emocionais com ajuste fino. Apesar de ser uma camada relativamente fina na maioria dos mamíferos, qualquer pessoa que já tenha visto um gato descobrir como abrir a porta do armário para bisbilhotar ou observado um cachorro aprendendo a usar a maçaneta já testemunhou o neocórtex de um animal em funcionamento.
Nos seres humanos e outros mamíferos altamente evoluídos, o neocórtex se desenvolveu em uma estrutura muito maior e mais complexa. Quando a maioria de nós pensa no cérebro, é normalmente a imagem dessa estrutura -com suas várias fendas e saliências — que nos surge à mente. Na verdade, se não fosse por essas saliências e fendas, nem seríamos capazes de imaginar o cérebro, já que nosso grande neocórtex nos proporciona a capacidade para a imaginação, bem como a habilidade de criar, entender e manipular símbolos. É o neocórtex que nos possibilita a capacidade para a linguagem, a escrita, a matemática, a música e a arte. Nosso neocórtex é a base de nossas atividades racionais, inclusive resolução de problemas, análise, julgamento, controle dos impulsos e habilidades de organizar informações, aprender com experiências passadas e erros e ter empatia pelos outros.
O simples reconhecimento de que o cérebro humano é composto dessas três diferentes camadas é, por si só, incrível. Ainda mais fascinante, entretanto, é que, não importa o quanto achemos que somos sofisticados ou modernos, a produção de um único pensamento requer uma série de interações complexas entre as três camadas do cérebro — o tronco cerebral, a região límbica e o neocórtex. Além disso, aparentemente cada pensamento, sensação ou experiência implica um conjunto diferente de interações, muitas vezes envolvendo regiões do cérebro que não são ativadas por outros tipos de pensamentos.
O MAESTRO INEXISTENTE
A mente não está na cabeça. – FRANCISCO J. VARELA,
Uma questão ainda me incomodava. Se o cérebro é uma sinfonia, como o Dr. Livingston sugeriu, não deveria haver um maestro? Não deveria haver alguma célula ou órgão objetivamente identificável que dirigisse tudo? Com certeza nos sentimos como se tal coisa existisse — pelo menos nos referimos a isso quando dizemos coisas como “Onde eu estava com a cabeça?” ou “Eu perdi a cabeça”.
Pelo que aprendi em minhas conversas com neurocientistas, biólogos e psicólogos, a ciência moderna tem procurado esse “maestro” há um bom tempo, investindo grandes esforços na esperança de descobrir alguma célula ou grupo de células que oriente a sensação, a percepção, o pensamento e outros tipos de atividade mental. Mesmo assim, até agora, mesmo utilizando a mais sofisticada tecnologia disponível, não foi encontrada nenhuma evidência de um maestro. Não se pode afirmar que exista uma única área – nenhum minúsculo “eu” — no cérebro responsável pela coordenação da comunicação entre os diferentes membros da orquestra.
Assim, os neurocientistas contemporâneos abandonaram a busca por um “maestro” para explorar os princípios e mecanismos nos quais bilhões de neurônios distribuídos pelo cérebro são capazes de coordenar sua atividade de forma harmoniosa, sem a necessidade de um dirigente central. Esse comportamento “global” ou “distribuído” pode ser comparado com a coordenação espontânea de um grupo de músicos de jazz. Quando os músicos de jazz estão improvisando, cada um pode tocar uma frase musical levemente diferente, mas, de algum modo, eles ainda conseguem tocar juntos em harmonia.
A idéia de localizar um “eu” no cérebro foi baseada, em muitos aspectos, na influência da física clássica, que, tradicionalmente, tem se concentrado no estudo das leis que governam objetos de localização determinada. Com base nesse ponto de vista tradicional, se a mente tiver um efeito – por exemplo, sobre as emoções —, ela deve estar localizada em algum lugar. Porém, idéia de entidades sólidas é questionável no contexto da física contemporânea. A cada vez que alguém identifica a menor unidade de matéria imaginável, outra pessoa descobre que essa unidade é, na verdade, composta de partículas ainda menores. A cada novo avanço, está ficando cada vez mais difícil identificar, de forma conclusiva, qualquer elemento material fundamental.
Logicamente falando, então, mesmo se fosse possível dissecar o cérebro em pedaços cada vez menores, até o menor nível subatômico, como alguém pode ter certeza de ter identificado com precisão um desses pedaços como a mente? Considerando que cada célula é composta de muitas partículas menores, e cada uma delas é composta de partículas ainda menores, como seria possível reconhecer qual delas constitui a mente?
É nesse aspecto que o budismo pode oferecer um ponto de vista novo, que talvez possa consolidar as bases para novos caminhos da pesquisa científica. O termo do budismo tibetano para a mente é sem, uma palavra que pode ser traduzida com “aquilo que sabe”. Esse simples termo pode nos ajudar a entender a visão budista da mente menos como um objeto específico e mais em termos da capacidade de reconhecer e refletir sobre nossas experiências. Apesar de o Buda ter ensinado que o cérebro é, na realidade, o suporte físico para a mente, ele também tomou o cuidado de salientar que a mente em si não é algo que possa ser visto, tocado ou mesmo definido em palavras. Da mesma forma que o órgão físico do olho não é a visão e o órgão físico do ouvido não é a audição, o cérebro não é a mente. Uma das primeiras lições que aprendi com meu pai foi que os budistas não vêem a mente como uma entidade distinta, mas como uma experiência em eterna mutação. Posso me lembrar do meu estranhamento inicial diante dessa idéia, sentado na sala de aula do mosteiro no Nepal, cercado de alunos do mundo inteiro. Havia tantos de nós apinhados naquela pequena sala que mal havia espaço para nos movermos. Mas pela janela eu podia enxergar a enorme superfície de montanhas e florestas. E meu pai estava sentado lá, com muita compostura, ignorando totalmente o calor gerado por tantas pessoas, dizendo que o que consideramos ser nossa identidade — “minha mente”, “meu corpo”, “meu ser” — é, na verdade, uma ilusão gerada pelo contínuo fluxo de pensamentos, emoções, sensações e percepções.
Eu não sei se foi pelo poder da experiência de meu pai, transmitida enquanto ele falava, ou pelo contraste físico entre sentir-me apertado em um banco entre outros alunos e a visão dos espaços abertos que eu tinha pela janela, ou ambos, mas naquele momento algo fez sentido. Tive uma experiência da liberdade de distinguir entre pensar em termos de “minha” mente ou de “meu” ser e a possibilidade de ser de forma tão ampla e aberta quanto a extensão das montanhas e do céu através da janela.
Mais tarde, quando fui ao Ocidente, ouvi vários psicólogos comparando a experiência da “mente” ou do “ser” a assistir a um filme. Quando assistimos a um filme, eles explicavam, parecemos vivenciar um fluxo contínuo de sons e movimentos à medida que quadros individuais passam por um projetor. A experiência seria drasticamente diferente, contudo, se pudéssemos ver o filme quadro a quadro.
E é exatamente como meu pai começou a me ensinar a olhar para a minha mente. Se eu observasse cada pensamento, sentimento e sensação passando pela minha mente, a ilusão de um “eu” limitado se dissolveria, para ser substituída por uma consciência muito mais calma, ampla e serena. E o que aprendi com outros cientistas foi que, como a experiência altera a estrutura neuronal do cérebro, quando observamos a mente dessa forma, podemos alterar a conversa entre as células que perpetua a experiência de nosso próprio “eu”.
VIGILÂNCIA
A chave — o como da prática budista — reside em aprender a repousar na pura consciência dos pensamentos, sentimentos e percepções à medida que ocorrem. Na tradição budista, essa consciência é conhecida como vigilância, que, por sua vez, significa repousar na clareza natural da mente. No exemplo do cão, se me conscientizasse de meus pensamentos, percepções e sensações habituais, em vez de ser levado por eles, seu poder sobre mim começaria a enfraquecer. Eu vivenciaria suas idas e vindas como nada mais do que a função natural da mente, do mesmo modo como as ondas naturalmente se formam na superfície de um lago ou oceano. E, agora, percebo que isso é exatamente o que acontecia quando me sentava sozinho em meu quarto no retiro tentando superar a ansiedade que me causava tanto desconforto na infância. O simples ato de olhar o que estava acontecendo em minha mente já alterava o que ocorria lá. Você pode começar a experimentar a mesma liberdade da clareza natural neste exato momento, por meio de um exercício elementar. Sente-se com a coluna ereta, respire normalmente e permita a si mesmo conscientizar-se de suas inspirações e expirações. Enquanto relaxa e se conscientiza do ar entrando e saindo, você provavelmente começará a notar centenas de pensamentos passando pela sua mente. Alguns deles são fáceis de dispensar, enquanto outros podem levá-lo a um longo caminho de pensamentos relacionados. Quando você se vir correndo atrás de um pensamento, apenas volte a se concentrar em sua respiração. Faça isso por cerca de um minuto.
No começo, você pode se surpreender com a enorme quantidade e variedade de pensamentos que passam pela sua consciência, como uma cachoeira caindo de um penhasco. Uma experiência desse tipo não é sinal de fracasso. É sinal de sucesso. Você começou a reconhecer quantos pensamentos normalmente passam pela sua mente sem que sequer se dê conta disso.
Você também pode se ver preso a uma linha específica de pensamento, seguindo-a, em vez de ignorá-la. Então, subitamente lembra de que o propósito do exercício é observar seus pensamentos. Em vez de se punir ou se condenar, volte a se concentrar em sua respiração.
Se sustentar essa prática, você descobrirá que, apesar de os pensamentos e as emoções irem e virem, a clareza natural da mente nunca é perturbada ou interrompida. Para dar um exemplo, durante uma viagem que fiz ao Canadá, visitei um retiro que ficava muito perto do oceano. No dia em que cheguei, o clima estava perfeito: não havia nuvens no céu e o oceano era de um azul claro e profundo — uma vista muito agradável. Quando acordei na manhã seguinte, no entanto, o oceano parecia uma sopa lamacenta e grossa. E me perguntei: “O que houve com o oceano? Ontem ele estava tão límpido e azul e hoje ele está todo sujo!” Dei um passeio pela praia e não consegui encontrar nenhuma razão óbvia para a mudança. Não havia nenhuma lama na água ou ao longo da praia. Então, olhei para o céu e vi que ele estava cheio de nuvens escuras e esverdeadas; então percebi que era a cor das nuvens que havia alterado a cor do oceano. A água em si, quando olhei de perto, ainda estava clara e limpa.
A mente, de várias formas, é como o oceano. A “cor” muda de um dia para o outro ou de um momento ao outro, refletindo os pensamentos, as emoções e outras coisas que passam “sobre as nossas cabeças”, por assim dizer. Mas a mente em si, como o oceano, nunca muda: ela está sempre clara e limpa, independentemente do que possa estar refletindo.
Praticar a vigilância pode ser difícil no início, mas o importante não é o seu sucesso imediato. O que pode parecer impossível no momento fica mais fácil com a prática. Você é capaz de se acostumar com tudo. Pense em todas as coisas desagradáveis que aceitou como comuns, como ficar preso no trânsito ou lidar com um parente ou colega mal-humorado. Desenvolver a vigilância é um processo gradual para estabelecer novas conexões neuronais e inibir a conversa entre as antigas. Isso requer dar, pacientemente, um pequeno passo atrás do outro, em intervalos muito curtos.
Há um antigo ditado tibetano que diz: “Se você andar com pressa, não chegará a Lhasa. Caminhe calmamente e atingirá o seu objetivo.” Esse provérbio vem da época em que as pessoas do leste do Tibete peregrinavam para Lhasa, a capital, na região central do país. Os peregrinos que queriam chegar logo andavam o mais rápido possível, mas, em virtude do ritmo que se impunham, eles se cansavam ou adoeciam e precisavam voltar para casa. Contudo, aqueles que viajavam em um ritmo mais calmo, acampavam à noite, desfrutavam a companhia uns dos outros e continuavam no dia seguinte conseguiam chegar a Lhasa mais rapidamente. A experiência segue a intenção. Onde quer que estejamos, o que quer que façamos, tudo o que precisamos fazer é reconhecer nossos pensamentos, sentimentos e percepções como algo natural. Sem rejeitar ou aceitar, reconhecemos a experiência e a deixamos passar. Se mantivermos essa prática, mais cedo ou mais tarde nos veremos capazes de administrar situações que no passado consideramos dolorosas, assustadoras ou tristes. Descobriremos uma confiança que não está fundamentada na arrogância ou no orgulho. Perceberemos que estamos sempre protegidos, sempre seguros e sempre em casa.
Você se lembra daquele pequeno teste em que pedi para perguntar a si mesmo na próxima vez em que se sentasse para almoçar ou jantar “O que me faz pensar que esta comida está boa — ou não tão boa? O que é que reconhece o ato de comer?” Essas já foram perguntas bem fáceis de responder. Mas a resposta não chega mais tão facilmente, não é mesmo?
Mesmo assim, gostaria que você tentasse de novo na próxima vez em que venha a se sentar para almoçar ou jantar. Se as respostas que surgirem agora forem confusas e conflitantes, isso é um bom sinal. A confusão, como me ensinaram, é o início da compreensão, a primeira fase de se livrar da fofoca neuronal que costumava mantê-lo preso a idéias muito específicas sobre quem você é e o que é capaz de fazer.
A confusão, em outras palavras, é o primeiro passo no caminho do verdadeiro bem-estar.
O trecho acima é uma pequena parte do livro ”Alegria de Viver – Descobrindo o Segredo da Felicidade”, o livro infelizmente não esta disponível nas livrarias mas você pode conferir um trecho clicando aqui. É um livro incrível, inclusive, você pode conferir a continuação do texto acima em uma postagem anterior em nosso site, ”Mente Natural”, clique aqui e acesse.
O relato de Mingyur Rinpoche