O Buda disse que o maior ensinamento de todos é a impermanência. Sua expressão final é a morte. A professora budista Judy Leif explica porque a consciência da morte é o segredo da vida. É a última reviravolta.
Quer a gente lute, negue ou aceite, todos nós temos um relacionamento com a morte. Algumas pessoas encontram-se poucas vezes com a morte durante a juventude, e ela acaba tornando-se algo pessoal apenas durante a velhice, conforme a quantidade de funerais começa a ultrapassar o número de casamentos. Outras crescem em ambientes violentos, onde a morte súbita é comum, ou vêem um membro da família morrer de alguma doença fatal. Muitos de nós nunca viram uma pessoa morrer, enquanto que pessoas que trabalham em hospitais e casas de repouso vêem a realidade da morte e do morrer todos os dias. Mas independente de a morte ser algo distante para nós ou que estejamos próximos dela, ela nos assombra e nos desafia.
A morte é uma forte mensageira, uma professora exigente. Em resposta à mensagem da morte, nós poderíamos nos fechar e tornarmo-nos mais rígidos. Ou nós poderíamos nos abrir e nos tornarmos mais livres e amorosos. Nós poderíamos tentar evitar a sua mensagem de todas as formas, mas isso exigiria muito esforço, pois a morte é uma professora persistente.
A Professora Morte encontra-se conosco no minuto em que nascemos, e está ao nosso lado em todos os momentos de nossa vida. O que a morte tem a nos ensinar vai direto ao ponto. É profundo e ao mesmo tempo íntimo. A morte é uma parada completa. Ela interrompe as delusões e os hábitos mentais que nos aprisionam em pensamentos pequenos e restritos. É uma afronta ao ego.
A morte é um fato. Nosso desafio é o de descobrirmos como lidar com ela, porque nunca se trata de um bom plano debater-se contra ela ou negá-la. Quanto mais nos debatemos contra a morte, maior se torna o nosso ressentimento e o nosso sofrimento. Nós pegamos uma situação dolorosa e, ao debater-se, adicionamos uma nova camada de dor a isso.
Nós não podemos evitar a morte, mas podemos mudar a maneira como nos relacionamos com ela. Nós podemos encarar a morte como uma professora, e vermos o que é possível de se aprender com ela.
O fato é: todos morrerão, cedo ou tarde. Nenhum truque de mágica ou artifício espiritual fará com que isso desapareça. Distanciar-se da morte ou abster-se de pensar sobre ela não funciona.
Eu tenho notado que, quanto mais distantes nós estamos da morte, maior é o medo que surge. A morte se torna alienígena, outra, assustadora, misteriosa. Pessoas que trabalham regularmente com o morrer, que estão mais próximas da morte, parecem ter menos medo.
Cada um de nós possui sua própria e única relação com a morte, nossa própria história e circunstâncias particulares, mas de uma maneira ou de outra, nós todos nos relacionamos ela. A pergunta é: como nos relacionamos com essa realidade e como isso colore nossas vidas? É possível reconciliar-se com o fato da morte de uma forma que isso enriqueça nossas vidas, mas para aprender com a morte, nós devemos estar dispostos a adotar um olhar não passional sobre nossas experiências e preconceitos.
A reflexão sobre nossa própria moralidade e sobre a realidade da morte é praticada em muitas tradições contemplativas. Na tradição Budista, a contemplação da morte é dita como sendo a “contemplação suprema”. Ela engloba refletir não apenas sobre a morte física, mas sobre a impermanência em todas as suas dimensões.
Através da meditação e do desenvolvimento de uma consciência ininterrupta da morte, nós podemos mudar a nossa relação com a morte e, assim, mudar nosso relacionamento com a vida. Nós podemos enxergar que a morte não é somente algo que surge ao fim da vida, mas que é inseparavelmente atrelada a nossa vida momento a momento, do começo ao fim. Nós podemos ver que a morte não é somente uma professora final. Ela está disponível para nos ensinar aqui e agora.
Quando a contemplamos desta forma, nossos vários esquemas criados para dar a volta na realidade da morte, como a invenção de interpretações para torná-la mais palatável, são expostos e demolidos um por um. A morte é a grande interruptora, irracional e inegociável. Nenhuma quantidade de esperteza mudará isso.
Contemplar a morte não é uma prática fácil. Não é meramente conceitual. Ela agita as coisas. Ela evoca emoções de amor, mágoa, medo e ansiedade. Ela traz à tona raiva, decepção, arrependimento e falta de chão. O quão suave é refletir sobre as muitas perdas que nós experienciamos e que iremos experienciar no futuro? O quão áspero é refletir sobre a qualidade efêmera da vida?
Nesta prática, nós deliberadamente trazemos a nossa atenção, de novo e de novo, para o nosso relacionamento com a morte. Nós examinamos aquilo que entendemos a respeito da morte e o que isso nos traz. Refletimos sobre as nossas experiências e sobre as nossas reações a essas experiências.
É um pouco como ir a uma terapia de casal. “Quando vocês dois se conheceram? Me conte um pouco sobre a história de vocês. Vocês passam muito tempo juntos? O que foi aquilo que te ofendeu nele ou nela? Como vocês vêm o seu relacionamento seguindo adiante?”. Você poderia dizer que a morte é a sua parceira mais íntima. Está com você o tempo todo, completamente embrenhada nas suas atividades diárias. Sendo esse o caso, não valeria a pena criar um relacionamento com ela?
Mas o nosso relacionamento com a morte não é assim tão simples. À procura de entendê-la, nós precisamos desacelerar e sistematicamente examinarmos nossas ideias sobre ela, o que ela faz emergir e o que ela significa para nós. A morte traz à tona todo tipo de pensamentos. E escondida em meio a essas nuvens de pensamentos está uma pequena, não falada, profundamente enraizada e ainda persistente noção de que nós passaremos por ela intactos, como se pudéssemos ir ao nosso próprio funeral.
Quanto mais perto você olha para todas essas ideias, mais você enxerga o quão inadequada a mente conceitual é em frente a morte. Não obstante, como nós pensamos sobre a morte importa. Afeta como nós vivemos nossas vidas e como nós nos relacionamos uns com os outros.
A prática contemplativa nos desafia a olharmos profundamente para dentro dos nossos pensamentos e crenças, fantasias e presunções, esperanças e medos. Nos desafia a separarmos aquilo que nos foi dito daquilo que nós mesmos pensamos e experienciamos. Nós temos todo o tipo de pensamentos a respeito daquilo que acontece quando morremos e de como nós e os outros deveriam relacionar-se com a morte, mas, através da meditação, aprendemos a reconhecer os pensamentos como pensamentos. Nós aprendemos a não confundir esses pensamentos e ideias sobre a morte com o conhecimento direto ou a experiência. Aprendemos a não acreditar em tudo aquilo em que pensamos ou em tudo aquilo que nos foi dito.
Nós estamos numa dança com a morte em todos os níveis, e cada nível influencia e é influenciado pelos outros. Somos influenciados por aquilo que nos foi dito sobre a morte e sobre o morrer, por nossa história pessoal, por nosso viés cultural e por aquilo que temos observado. Nós também somos influenciados por hábitos internos de pensamentos e respostas condicionadas. Nossas visões mais sutis e reações à impermanência podem estar um tanto escondidas, mas elas tocam nossa visão sobre a vida de uma só vez, e em nossa identidade pessoal.
Se nós queremos entender o nosso relacionamento com a morte, nós precisamos explorar sua amplitude tanto quanto suas dimensões mais sutis. Se estamos dispostos a honestamente darmos uma olhada para como lidamos pessoalmente com essa realidade, nós podemos desenvolver uma compreensão mais profunda da impermanência e até mesmo nos sentirmos confortáveis com ela.
Uma maneira de começar é refletindo sobre a sua história pessoal com a morte. O que lhe foi dito sobre a morte? Quais são algumas de suas primeiras experiências com ela?
No meu caso, quando eu tinha uns cinco anos de idade, me contaram que a minha babá havia morrido, apenas isso. Para mim, ela havia apenas desaparecido, e crianças não iam a funerais. Mais tarde, quando minha tia morreu, me contaram que ela iria para o céu, um lugar muito bonito. Mas eu não achava que as pessoas realmente acreditavam nisso, porque tudo o que eu via eram pessoas chateadas e chorando. Quando animais de estimação morriam, me contavam que eles “haviam ido dormir”. A mim, não parecia que eles estavam dormindo.
Enquanto criança, eu observava que animais mortos não respiravam e nem se mexiam como os que estavam vivos. Eu via que eles se contraiam e começavam a cheirar esquisito, ou eram esmagados de forma a ficarem irreconhecíveis. Eu via que cachorros que eram atropelados por carros gritavam de dor e que animais pareciam doentes antes de morrer. Eu via que as pessoas ficavam velhas e frágeis. Eu via que quando você matava um inseto, você não podia fazê-lo voltar à vida, mesmo que você se sentisse arrependida. Meus amigos e eu achávamos que era engraçado cantarolar cantigas como “os vermes rastejam pra dentro, os vermes rastejam pra fora…” A morte não nos era tão real; nós a transformávamos numa piada.
Eu observava muitas dessas coisas em um nível externo, porém, em um nível interno, eu não tinha a menor ideia do que era a morte ou o que isso tudo significava. Eu não sabia como dar sentido a isso, ou como ligar isso as outras experiências da minha vida.
No nosso encontro com a mortalidade, é essa dimensão interna, a dimensão do relacionamento, que nós precisamos explorar. Fica óbvio que, para chegarmos a um relacionamento mais desobstruído com a morte, primeiro nós precisamos forçar passagem por dentre um surpreendente número de ideias, presunções e especulações, algumas delas enraizadas muito profundamente. Através desse processo, nós podemos nos tornar conscientes dos muitos conceitos que estão flutuando à nossa volta, e tentarmos descobrir de onde eles vêm e qual efeito eles têm sobre nós.
Quando procuramos pela origem disso tudo, nós encontramos um paradoxo. Nós geralmente consideramos que a morte seja o fim, mas começa a parecer que, na verdade, a morte é o começo. É a textura a partir da qual nós amadurecemos nossa identidade, o palco sob o qual nós encenamos a nossa estória.
Podemos começar nossa exploração aqui mesmo, onde estamos. Nós já nascemos, estamos vivos e ainda não morremos. E agora? Podemos nos conectar com a nossa vida em termos de uma estória ou história. Por exemplo, nós nascemos em tal e tal tempo e lugar, fizemos isso e aquilo, e possuímos um certo rótulo e uma certa identidade. Mas esta estória está sempre mudando e está sempre em processo; não é tão confiável assim. De qualquer forma, quando nossa estória é combinada com um corpo físico, nós parecemos ter algo mais sólido, um pacote completo. Temos algo em que se agarrar e para defender. Temos algo que nos pode ser tirado.
Mas a que nos agarramos, na verdade? Nossa história não é assim tão sólida. Está sempre sendo revisada e reescrita. Da mesma forma, nosso corpo não é uma coisa sólida e contínua. Ele também está sempre mudando. Se você procura por aquele corpo que é você, você não o encontra.
Quanto mais de perto você olha, menos sólido parece ser isso tudo. Quando nós investigamos nossa experiência de fato, aqui e agora, momento a momento, nós vemos o quão efêmera e dinâmica ela é. Assim que percebemos um pensamento, sentimento ou sensação, ele já aconteceu. Poof! Foi! E o observador, aquele que está percebendo, não está em lugar algum que se possa achar. Poof! Quando contemplamos dessa forma, nós começamos a suspeitar que esta vida não é assim tão sólida – que nós não somos assim tão sólidos.
Isso pode soar como uma má notícia, mas de fato essa descoberta é de suprema importância. Enquanto começamos a enxergar através da nossa solidez mítica, nós também passamos a reparar em todo o tipo de pequenas falhas que existem em nossos esquemas conceituais. Reparamos nos pequenos sabores de liberdade e conforto onde nossa luta para ser alguém se dissolve, e nós apenas somos. Em tais momentos, ao menos brevemente, não estamos sendo levados nem por esperança nem por medo. Nós vemos que continuamente agarrar-se a vida e a proteger-se da morte como sendo uma futura ameaça não é a nossa única opção. Existe uma alternativa para esse nosso hábito tenso de segurar e defender.
Após cada pequeno insight ou pausa existe um reagrupamento, e nos vemos reconstruindo nosso mundo. Toda vez que o recompomos, nós estamos recompondo também a ameaça de que ele não pode ser mantido. Nós fazemos isso vez após vez. Estamos repetidamente e continuamente abastecendo a pretensão da solidez e o medo da morte que vem com isso.
Para desfazermos esse hábito nocivo, nós precisamos enxergá-lo mais claramente. Precisamos reconhecer que nós somos os responsáveis por perpetuá-lo, e por isso nós temos o poder de pará-lo.
Ao olharmos para as sementes do nosso relacionamento com a vida e com a morte num nível interno sutil, nós descobrimos como armamos a nós mesmos para uma batalha contra a morte desde o começo – em um nível muito pessoal de identidade e de auto-definição.
Quanto mais sólidos construímos a nós mesmos, e quanto mais rigidamente nos identificamos com essa construção, maior é aquilo que temos para defender e maior é aquilo que temos a temer. Olhar para a morte nesses termos de padrões ocultos e sutis pode parecer inconsequente, mas não é.
Quando abandonamos a abordagem do campo de batalha – de que vida e morte são inimigas – nos tornamos abertos a uma forma completamente nova de enxergar as coisas. Ao invés disso contra aquilo, nós contra eles, algo muito mais inspirador pode tomar esse lugar. Experiências podem surgir com frescor porque elas são imediatamente liberadas. Porque elas são liberadas assim que elas surgem, não há nada ao que se segurar e nada a perder. Não há campo de batalha, não há vencedor e perdedor, não há mocinho e bandido.
A simples meditação sem forma é uma ferramenta poderosa para relaxar esse padrão de segurar e defender. Trabalhar com a morte através da consciência dos surgimentos e dissolvimentos momentâneos é uma prática profunda. Ela nos mostra que o limite vida-morte é uma experiência incessante e até mesmo ordinária, e que esse inquietante ponto de encontro colore tudo aquilo que fazemos. Se conseguimos nos tornar mais aterrados nesse nível, nós podemos nos tornar mais abertos para o que a morte tem a nos ensinar como um todo.
Apesar de a morte ser uma realidade contínua, existem momentos em que ela nos atinge de forma particularmente dura. Pode ser quando sofremos um susto com relação a saúde ou um acidente próximo. Nesses momentos, nós realmente acordamos para a presença da morte, e seus ensinamentos surgem de maneira alta e clara. O coração bate forte, os sentidos ficam aguçados e nós nos sentimos extra vivos. Há uma quietude, como se o tempo tivesse parado.
Momentos como este são tão simples e diretos, tão imediatos. “É isso,” nós pensamos. “Está realmente acontecendo.” Nestes momentos, o aumento da nossa consciência da morte simultaneamente aumenta nosso sentimento de estarmos vivos.
De fato, perante a morte, nós nos sentimos mais vivos do que nunca. Nós somos obrigados a pensar mais seriamente sobre o que fazer com o tempo que nos resta. No entanto, nós geralmente não mantemos essa consciência, e o sentimento de se estar mais vivo vai sumindo. Voltamos ao padrão normal de evitar a morte e, junto a isso, a nossa abordagem embotada com relação à vida.
Manter a consciência da morte torna a vida mais vívida. Sob a luz da morte, interesses insignificantes caem por terra e nossas preocupações se tornam sem sentido. É como se espessas nuvens de poeira que estavam cobrindo algo brilhante e vívido tivessem sido sopradas para longe, e então somos deixados com algo crú, imediato e bonito. Nós ganhamos insight sobre aquilo que importa e sobre aquilo que não importa.
A consciência da morte – ouvindo seus ensinamentos – corta através do apego sutil presente no cerne de nossas experiências. Ela corta através do nosso auto-apego e do nosso apego aos outros. Isso pode parecer chocante, mas todo esse apego realmente não tem ajudado a nós mesmos ou a qualquer um. Nosso apego aos outros pode ter a aparência de um cuidado real, mas é baseado no medo e na tentativa de congelar e controlar a vida. É uma forma de suprimir a morte e resguardar-se da intensidade da vida. Mas se desenvolvemos uma maior suavidez com relação a nossa própria impermanência e nossas dificuldades com a morte, nós podemos ser mais compreensíveis com os outros e com suas dificuldades. Podemos nos conectar uns com os outros de maneira mais genuína e acolhedora.
A morte vem a ser a professora que nos liberta do medo. Ela é a professora que abre nossos corações para um amor e uma apreciação pela vida e pelos outros mais livres e fluídos. Quando nós ficamos presos em nossa auto-importância e seriedade, a morte aparece. Quando nós somos apanhados por auto-piedade, a morte aparece. Quando nos tornamos complacentes e tomamos as coisas como garantidas, a morte aparece.
A morte nos incentiva a ir em frente num sentido de urgência e coloca nossas preocupações em perspectiva. A morte torna nossos apegos mais leves e zomba das nossas pretensões. A morte nos acorda. Ela é nossa professora mais confiável e nossa companhia mais constante.
Texto de Judy Lief publicado originalmente em inglês na Lions Roar. Traduzido por Fábio Valgas.
As imagens que ilustram o post são do artista Tashi Mannox da série “Rindo na Face da Morte: Viver e morrer sem arrependimentos”.