O Buda defendeu a ideia de guru? Elizabeth Mattis-Namgyel

O relacionamento com o professor deve servir como um meio hábil para o nosso despertar… ele aponta para o método de “Desfazer-se em humildade.”

Pergunta: Olá, Elizabeth. Embora eu tenha grande respeito e admiração por professores budistas como Pema Chodron, Dalai Lama e Thich Nhat Hanh (para citar alguns dos meus favoritos), eu fico um pouco desconfortável em relação a esta noção de um “Guru” e de devoção ao Guru. Ela me remete à adoração a um herói e a colocar um outro ser humano em um pedestal. Para mim, um professor do darma é um professor do darma. Digo, o Buda defendeu a ideia de Guru? Alguém que é mais do que um ser humano comum? 🙂

Resposta: Obrigada pela sua pergunta. Eu acho que isso é uma questão para muitas pessoas, então fico feliz que você tenha perguntado. A relação professor/aluno é um tópico realmente importante para pessoas que têm professores e para aqueles que estão olhando a tradição e tentando entendê-la.

Contemplando a sua questão, estou tentando discernir por mim mesma: “Qual é a diferença entre um professor e um guru?” Eu acho que a palavra ‘professor’ é um termo mais geral. Nós temos professores na escola enquanto estamos crescendo. Acho que podemos pensar neles como pessoas que nos passam informações para que possamos funcionar bem no mundo. Às vezes apreciamos isso e às vezes fazemos porque é obrigatório. De qualquer forma, às vezes um professor terá um impacto imenso em nossas vidas… e pode até mesmo determinar a direção que nossas vidas tomarão.

O relacionamento com um professor pode ser bastante íntimo. E eu não estou me referindo apenas a um professor espiritual. É comum ouvirmos histórias ou encontrarmos relacionamentos em que  professores transmite uma linhagem de sabedoria ou criatividade para um estudante e o estudante sente uma profunda apreciação e devoção pelo professor. Devoção é um termo interessante, além de uma experiência pungente e emocionante . Meu amigo Greg estuda sânscrito e tibetano na Universidade de Oxford. Eu perguntei a ele recentemente como ele traduziria a palavra “devoção”. Sua tradução foi profundamente esclarecedora para mim. Ele traduziu a palavra tibetana para devoção (mugu) como “Desfazer-se em humildade”.

Eu particularmente acho difícil falar do papel do professor sem olhar também para o papel do aluno. Quando penso sobre o que significa ser um aluno, a palavra abertura ou humildade vem à mente. Eu não quero dizer “humildade” como auto-apagamento, ou que temos que deixar de lado o nosso próprio discernimento apenas porque estamos em um processo de aprendizagem com um professor. De fato, a questão aberta é parte desse aprendizado. Então eu não acho que ser um aluno significa ter que ser subserviente. Mas quando escolhemos um professor, estamos estabelecendo um acordo (e isso é uma escolha!) de nos mantermos humildes, abertos e aprender. Qual seria o sentido de ter um professor se nós fôssemos apenas nos agarrar às nossas próprias ideias? Portanto, estamos nos colocando em uma posição de aprendizado. Isto não significa que não podemos fazer perguntas… significa que nos posicionamos para aprender. E isso significa manter a abertura sem cair na aceitação cega ou no ceticismo.

De fato, uma vez eu perguntei ao meu professor como ser uma boa aluna e ele disse, “Apenas esteja aberta.” A abertura é uma forma de existir [que está] além dos extremos de apenas cair em crenças ou cair em dúvidas. Mesmo quando somos desafiados, nós podemos permanecer abertos… e isso não é apenas um estado passivo (como a aceitação cega) – é um estado de aprendizado.

Quando nós lemos os sutras e estudamos a vida do Buda, [vemos que] ele se pôs nessa posição ao longo de [toda] sua vida. Ele teve muitos professores… e praticou o que eles lhe ensinaram com muita diligência e devoção. Para ele, esses professores não possuíam a compreensão que ele estava buscando no fim das contas, mas ainda assim seu relacionamento com eles o colocou no caminho do despertar. Por fim, o Buda abriu mão das muitas crenças que ele tinha: que poderia encontrar a felicidade no mundo ordinário das ‘coisas’, ou que poderia encontrar a felicidade abandonando a vida mundana e negligenciando seu corpo. Ele apenas abandonou essas visões… e com um profundo senso de humildade, sentou-se sob a árvore bodhi. Portanto, a humildade, como vocês podem ver, está no coração desta tradição.

Após sua iluminação seus discípulos o cercaram, porque conseguiam reconhecer suas qualidades. Eles estavam atraídos por esse senso de humildade e maravilhamento do Buda… e o que foi maravilhoso é que o Buda foi capaz de colocar o caminho em palavras e guiá-los. Eles olharam para o Buda com admiração, tomaram-no como exemplo e serviram a ele como uma maneira de eles próprios se desfazerem em humildade. Portanto, o caminho de aprendizado e serviço tem uma função… e isso foi entendido.

Agora, o termo ‘guru’ (sânscrito) ou ‘Lama’ (tibetano) na verdade significa ‘Nada Mais Elevado’ ou ‘Insuperável’. Então nós temos que perguntar, “Por que é assim?” Eu não penso que é a personalidade do Lama que é insuperável, ou mesmo a pessoa em si. O relacionamento com o professor deve ser um meio hábil para o nosso despertar… ele aponta para o método de “Desfazer-se em humildade.” Isso tem a ver com a desaparição do ego e leva à liberdade. Portanto, dessa forma nós podemos dizer, “O que pode ser mais elevado?”

A ideia de humildade às vezes é difícil para o praticante ocidental. Nós confundimos ‘humildade’ com ‘menor’ ou ‘inferior’. Mas eu estou falando de humildade como encontrar o melhor de nossas qualidades como seres humanos. Por exemplo, quando olhamos para o céu noturno, ele é tão vasto e misterioso. Em relação a essa vastidão nós somos tão pequenos e o universo é tão grande e belo… e ainda assim, ao mesmo tempo, nós somos parte desta grandeza. Então, olhando para o céu, nós temos essa experiência de maravilhamento e admiração. Esta é a questão aberta da qual eu frequentemente falo. É a habilidade de ver que a vida é maior do que nossas ideias ou crenças sobre ela.

Normalmente eu vejo isto com mais frequência em outras culturas… a devoção é compreendida como um senso de humildade. Às vezes, ter um objeto – um céu estrelado à noite, ou um professor cujas qualidades evocam um senso de maravilhamento em nós – serve como um importante meio hábil. Além do mais, um professor está efetivamente nos passado os ensinamentos e apontando coisas sobre o nosso ego: servindo como um espelho para [vermos] onde estamos presos… mas também para a nossa própria natureza de Buda ou o nosso senso de maravilhamento. Então o relacionamento é íntimo… embora não necessariamente em um nível pessoal, mas em um nível de despertar.

Eu posso dizer pessoalmente que o relacionamento professor/aluno tem sido o epicentro do meu caminho. E devo dizer que demorei muito tempo para entender isto. Em parte porque sou casada com o meu professor – e isso me desafiou de algumas formas maravilhosas – mas também porque isto foi um processo para todos nós. E o que eu vim a entender é que nada disso tem a ver com a nossa individualidade… mas tem tudo a ver com esse processo de despertar e abrir mão o ego – cair na humildade. Quando abrimos mão do ego, nós nos sentimos livres. Então, na verdade, esse relacionamento acaba sendo um tanto empoderador. Porque o que de fato acontece é que as mesmas qualidades que você vê no professor são inerentes à natureza da sua própria mente.

Agora, eu penso que as pessoas – especialmente nesta cultura – se confrontam muito com esse tópico, da mesma forma que você também está expressando. E eu não posso falar sobre o processo de cada um. Eu não posso falar para a expressão de devoção em todo mundo e não estou em nenhuma posição de julgar isso. Mas posso dizer que houve vezes em que me senti desconfortável em minha tentativa de “agradar” o professor, e houve vezes em que senti tanta apreciação, que servir ao professor foi profundamente inspirador e natural para mim. Houve vezes em que caí em aceitação cega e também vezes em que caí em dúvida. Mas eu vim a também reconhecer uma terceira alternativa, por assim dizer. E essa é a mente de encantamento, humildade e abertura. É a mente do maravilhamento. Como o Buda disse nos sutras, “Aqueles que estão despertos como eu vivem em  constante estado de maravilhamento.” Esse é o lugar de repouso para o praticante.

Porém, é interessante considerar, Mandy, que todos os professores que você menciona (professores exemplares!) em sua pergunta têm relacionamentos guru/discípulo com seus professores. Ani Pema Chodron foi uma aluna próxima de Chogyam Trungpa Rinpoche e atualmente é uma aluna dedicada de Dzigar Kongtrul Rinpoche (que é também meu professor). O Dalai Lama já expressou uma apreciação profunda por seus gurus. Certa vez, em uma iniciação ele tinha lágrimas em seus olhos quando falou sobre o professor que havia lhe transmitido os ensinamentos de bodichita. Eu não sei quem é o professor do Thich Nhat Hanh, mas, quando eu estava em uma conferência recentemente, duas de suas jovens monjas eram minhas colegas de quarto e elas falaram de seu professor, Thich Nhat Hanh, com tanto amor, devoção e apreciação. Então claramente há algo neste relacionamento que é íntimo e profundo. Pode ser que essa afeição frequentemente seja bastante genuína para as pessoas e venha de um profundo senso de apreciação. E eu diria que estes professores são belos e graciosos exemplos de alunos e do que pode ocorrer por meio deste relacionamento muito pouco usual.

Texto escrito por Elizabeth Mattis Namgyel, originalmente publicado em seu site. Tradução de Gabriel Falcão, Marcus Telles e Gustavo Gitti

elizabethElizabeth Namgyel é uma das muitas mestras budistas contemporâneas, estuda e pratica o budismo por 30 anos sob a orientação de seu professor e marido, Dzigar Köngtrul Rinpoche.

Passou sete anos em retiro solitário e é mestra de retiros no Longchen Jigme Samten Ling, centro do Mangala Shri Bhuti no sul do Colorado. Editou dois livros de Dzigar Köngtrul Rinpoche e é autora de “The Power of an Open Question”.

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