Um encontro entre monges budistas e cientistas ocidentais promovido pelo Dalai Lama para discutir o funcionamento mental e neurológico reforça a constatação de que o conhecimento pode ser transmitido, mas a sabedoria precisa ser vivida
por Christof Koch na Revista Mente e Cérebro
De maneira inesperada, tomei contato com o romance Sidarta, de Herman Hesse, de 1922, durante uma recente visita de uma semana ao mosteiro Drepung, no sul da Índia. Dalai Lama havia convidado representantes do Instituto Vida e Mente para apoiar experiências entre a ciência moderna e a comunidade monástica budista tibetana que vive em exílio no país. Reunimos um grupo formado por físicos, psicólogos, neurocientistas e um filósofo francês para conversar com monges e monjas budistas sobre assuntos como mecânica quântica, neurociência, consciência e vários aspectos clínicos das práticas meditativas. Fomos interrogados, investigados e, vez ou outra, gentilmente provocados por Dalai Lama, que se sentou ao nosso lado. Aprendemos muito com ele e com as pessoas ao redor, como seu tradutor tibetano Jinpa Thupten, doutor em filosofia pela Universidade de Cambridge, e o monge francês Matthieu Ricard, doutor em biologia molecular pelo Instituto Pasteur, em Paris, considerado o “homem mais feliz do mundo”, segundo extensos estudos neurocientíficos. E, segundo eles mesmos disseram, também aprenderam algo conosco.
Fatos e dados foram discutidos pelos representantes das duas formas de pensar o mundo. O objetivo? Trocar conhecimento e agregar o saber acumulado em mais de dois milênios de tradição oriental de investigação da mente, do ponto de vista subjetivo, a ideias ocidentais com base em descobertas empíricas recentes sobre o cérebro e o comportamento. A antiga sabedoria contribui – hoje não há dúvidas – com suas diversas técnicas de meditação para desenvolver atenção plena, concentração, percepção, serenidade, empatia, sabedoria e, espera-se, no fim, a iluminação. Para isso, o praticante deve, todos os dias, se sentar e permanecer tranquilo e ao mesmo tempo atento, deixando a mente estável antes de embarcar em algo específico, como atenção focada ou reflexão sobre a preciosidade da vida, a bondade e a compaixão. Somente após anos de exercícios contemplativos diários (nada vem fácil na meditação), os praticantes costumam alcançar considerável controle sobre a mente.
Em média 12 anos na escola, cinco na faculdade e mais alguns na pós-graduação não preparam nossos futuros médicos, psicólogos, soldados, engenheiros, cientistas, professores, contadores e demais profissionais para isso. Universidades ocidentais não ensinam métodos para amadurecer emocionalmente, cultivarmos estados mentais que nos fazem bem, controlar a mente e desenvolver paciência ou mesmo focar em um único objetivo ou numa atividade específica – algo extremamente útil tanto na área profissional quanto na vida -pessoal. Em geral, não há sequer aulas introdutórias sobre esses temas. E, obviamente, perdemos muito com isso.
Na verdade, estamos acostumados com a bagunça mental que compõe a vida cotidiana, caracterizada por excesso de informações, saltos entre imagens e fragmentos de discurso ou da memória. A concentração em uma linha de pensamento requer esforço deliberado consciente, é trabalhoso e geralmente tentamos nos esquivar dessa atividade. Preferimos nos distrair com estímulos externos – conversas, jogos, redes sociais e televisão, nos apoiando em recursos eletrônicos na tentativa desesperada de evitar realmente pensar e entrar em contato conosco.
No entanto, pudemos usufruir da presença de um homem de 77 anos que permaneceu sentado, com a postura ereta, durante seis dias, por horas a fio e com as pernas embaixo do corpo, acompanhando atentamente nossos argumentos acadêmicos. Jamais conheci alguém (ou um povo) que parecesse tão receptivo, satisfeito, profundamente feliz, sorridente e humilde como os monges, que, para nossos padrões, têm uma rotina de pobreza, privados de muitas coisas que a maioria de nós julga necessárias para ter uma vida plenamente realizada. O segredo parece ser o controle da mente.
O caso mais extremo de domínio de si talvez seja a autoimolação do monge budista vietnamita Thich Quang Duc, em 1963, para protestar contra o regime repressivo no sul do Vietnã. O fato mais impressionante e singular desse evento foi sua expressão calma e deliberada de seu ato heroico, capturada em fotografias e filmagens inesquecíveis e impressionantes. Enquanto queimava até a morte, Duc permaneceu na posição de lótus, em meditação. Ele não moveu um músculo sequer nem soltou qualquer som enquanto as chamas o consumiam, até que seu cadáver finalmente tombou.
Confesso que essa cena singular me deixa perplexo. Teria dificuldades em acreditar se tudo não tivesse sido capturado pelas câmeras de jornalistas pasmos e visto por centenas de testemunhas.
Mudanças neuroanatômicas
Um experimento recente, desenvolvido com base em técnicas de neuroimagem pelo psicólogo Fadel Zeidan e pelo neurobiólogo Robert C. Coghill, que coordenaram um grupo de cientistas da Escola de Medicina Wake Forest, fornece pistas para explicar esse extraordinário fenômeno. Os pesquisadores prenderam uma placa de metal à perna de 15 voluntários escolhidos aleatoriamente e os submeteram a monitoramento por escâner. Enquanto a temperatura do objeto variava de agradável (36,5ºC) a levemente dolorosa (49ºC), os participantes deveriam avaliar a intensidade e o desconforto do estímulo. Conforme previsto pelos cientistas, a placa quente provocou aumento da atividade hemodinâmica de estruturas envolvidas no processamento da dor, como o córtex somatossensorial primário e secundário, áreas relacionadas ao movimento das pernas, e de regiões frontais, como o córtex cingulado anterior e a ínsula.
Depois, os voluntários praticaram durante 20 minutos, por quatro dias, exercícios diários de mindfullness, um tipo de meditação em que é preciso manter a atenção focada, ou shamatha, na qual o praticante deve se concentrar nas alternâncias da respiração e observar pensamentos, imagens e lembranças que possam surgir sem, no entanto, se envolver emocionalmente. A ideia da shamatha é perceber os pensamentos, mas o praticante deve apenas deixá-los passar e voltar a atenção à respiração.
A desagradável sensação da placa quente tocando a pele foi amenizada depois que os voluntários começaram a praticar mindfulness – o desconforto geral diminuiu 57%, e a intensidade da dor 40%. O surpreendente é que os resultados foram percebidos depois de as pessoas passarem apenas por um treinamento básico. Obviamente a experiência em laboratório está bem longe de amenizar a agonia inimaginável de queimar até a morte. Ainda assim, oferece algumas pistas para explicar o fenômeno. O fato é que a atenção plena favoreceu o sentimento de distanciamento e reduziu a experiência subjetiva da sensação da placa tocando a pele. Porém, ficamos intrigados a respeito de como esse processo se dá no cérebro.
A meditação ajudou a diminuir a atividade relacionada à dor no córtex somatossensorial primário e secundário. Participantes que sentiram redução na intensidade da aflição demonstraram aumento na ação da ínsula direita e nos dois lados do córtex cingulado anterior. Já aqueles que sentiram menor desconforto com a dor – o que de fato chama a atenção da maioria das pessoas – demonstraram maior ativação em regiões do córtex orbitofrontal e redução na atividade do tálamo, o que provocou alterações nos canais de membranas celulares que recebem informações sensoriais.
Essas técnicas milenares favorecem as habilidades mentais de controlar emoções e moldar o impacto de eventos externos sobre a mente. Isolando as regiões pré-frontais do cérebro, o caminho até o tálamo sofre alterações, o que reduz o fluxo de informações recebidas de regiões periféricas, levando à diminuição da sensação dolorosa. A capacidade de orientar o pensamento da forma como escolhemos fazê-lo não é mágica, sobrenatural ou transcendental – e pode ser aprendida e treinada. A questão é saber se somos suficientemente inteligentes e cuidadosos conosco para usufruir dessa vantagem neural.
Em 2008, o psicólogo Richard J. Davidson e sua equipe da Universidade de Wisconsin Madison publicaram um estudo clássico, com a participação de monges budistas, do qual Matthieu Ricard fez parte. Eles submeteram oito deles e dez estudantes ocidentais a exames de eletroencefalograma (EEG). Os voluntários receberam 128 eletrodos na cabeça que ajudaram a mapear seu cérebro. Depois, os monges foram convidados a atingir o estado de “bondade e compaixão incondicional”, também conhecida como “bodichita” (nesse tipo de meditação o praticante não se concentra em um único objeto, mas no amor e desejo de felicidade de todos os seres sencientes). Os outros voluntários deveriam pensar em alguém com quem se preocupavam profundamente e, em seguida, tentar generalizar os sentimentos que surgiam, direcionando-os a todos. Conforme os monges entraram em meditação, a atividade elétrica de alta frequência das ondas gama (entre 25 e 42 oscilações por segundo) aumentou e as ondas tornaram-se sincronizadas em todo o córtex frontal e parietal, conforme revelou o EGG. Muitos cientistas acreditam que essa seja a marca de grupos de neurônios “hiperativos” e aparentemente espalhados, tipicamente associados ao foco na atenção. De fato, a atividade gama desses monges é a maior conhecida (em condições saudáveis) e 30 vezes mais alta do que dos principiantes. Quanto mais tempo de prática meditativa, mais forte o poder estabilizador das ondas gama.
O que mais chamou a atenção foi o fato de que, mesmo em repouso e silêncio, fora do estado meditativo, os monges demonstraram atividade cerebral bem diferente da dos alunos. As técnicas praticadas pelos budistas há milênios para alcançar a serenidade e expandir a mente são realmente capazes de transformar o cérebro. Os efeitos foram mais evidentes naqueles com maior experiência.
No entanto, estudar teoricamente a meditação e seus efeitos não traz os benefícios de sua prática – e muito menos sabedoria. Inspirado no jovem Sidarta do romance de Hesse, deixei a comunidade monástica mais rico em conhecimento e aprendi outras maneiras de olhar o mundo. A minha busca continua.
É possível cultivar compaixão no cérebro
Exercícios de meditação podem modificar circuitos neurais subjacentes ao sentimento
A compaixão pode ser descrita como uma disposição, genuína, de compreender e de buscar aliviar o sofrimento alheio. Com base na percepção de que os outros têm tanto direito ao bem-estar quanto nós mesmos, ela foi associada por estudos à tendência de mostrar gratidão e de enxergar erros como oportunidade de aprendizado. E, ao contrário do que prega o senso comum, essa “virtude” não é inata. Pode ser desenvolvida por meio de exercícios mentais simples, capazes, segundo estudo publicado no Psychological Science, de modificar circuitos neurais subjacentes a esse sentimento.
Pesquisadores do Centro de Investigação de Mentes Saudáveis, no Centro Waisman da Universidade Wisconsin–Madison, orientaram voluntários a fazer meditação compassiva, uma antiga técnica budista que ajuda a despertar sentimentos de compreensão e cuidado em relação aos outros. Basicamente, eles deviam imaginar uma pessoa que passava por algum sofrimento e desejar que ele fosse aliviado. Para ajudar a manter o foco durante o exercício, repetiam frases como “Que você fique livre da dor. Que você sinta alegria e conforto”.
Conduzidos por instruções de áudio – meia hora por dia, durante duas semanas –, os voluntários se concentraram em entes queridos, em si mesmos e até em estranhos e pessoas com quem tiveram conflitos. Os autores do estudo relatam que, depois do experimento, os voluntários revelaram maior comportamento altruísta em um jogo on–line de “distribuição de renda” – cedendo por vezes parte de seus ganhos a outro jogador que havia sido propositalmente “injustiçado”. Além disso, exames de imageamento cerebral, realizados antes e depois do experimento, detectaram alterações na resposta cerebral dos participantes quando viam imagens de pessoas sofrendo. Mais especificamente, os cientistas observam aumento da atividade em áreas como o córtex parietal inferior, associado à empatia, e o córtex pré-frontal dorsolateral, envolvido na regulação de emoções negativas.
Para o psiquiatra Richard J. Davidson, diretor do Centro de Investigação de Mentes Saudáveis, a compaixão é flexível e pode ser treinada, como as habilidades cognitivas e físicas. “Aplicados nas escolas, por exemplo, exercícios que buscam aprimorar esse sentimento podem ajudar a combater o bullying e, consequentemente, evitar sofrimentos que são gatilhos para transtornos psíquicos. Também podem ser úteis para todas as pessoas, principalmente as que sofrem de ansiedade social”, diz.
Meditação, anatomia cerebral e controle das emoções
Prática milenar comum nas religiões orientais, a meditação é cada vez mais estudada por neurocientistas. Algumas pesquisas já comprovaram que ela pode diminuir a ansiedade e o limiar da dor, agora estudiosos da Universidade da Califórnia em Los Angeles descobriram seus efeitos benéficos na anatomia cerebral. Em voluntários que tinham o hábito de meditar entre dez e 90 minutos por dia há pelo menos quatro anos, observou-se que áreas como o hipocampo, o córtex orbito-frontal, o tálamo e o giro temporal inferior (todas associadas à regulação das emoções) eram maiores do que nos participantes do grupo-controle.
Imagens obtidas por ressonância magnética funcional indicaram que esse volume maior se deve a uma maior quantidade de substância cinzenta, onde se concentram os corpos celulares dos neurônios (origem dos impulsos nervosos), diferentemente da substância branca, em que predominam axônios (os prolongamentos por onde viajam os impulsos até encontrarem outro neurônio). Segundo os autores do estudo, publicado na revista NeuroImag esses resultados parecem explicar a capacidade extraordinária dos adeptos da meditação em controlar suas emoções e a responder melhor aos estímulos estressores do dia-a-dia.
Meditação “engrossa” o cérebro para reduzir a dor
Córtex cingulado anterior é mais volumoso em adeptos da prática budista do que em pessoas que nunca utilizaram a técnica
Pesquisas já mostraram que a prática da meditação zen pode reduzir o limiar de sensibilidade à dor, o que é particularmente interessante para pessoas que sofrem de doenças crônicas como artrite reumatoide ou fibromialgia. O mecanismo que explica esse efeito foi descoberto por pesquisadores da Universidade de Montreal, no Canadá.
Por meio de técnicas de neuroimageamento, os cientistas observaram que uma estrutura central do cérebro – o córtex cingulado anterior – é mais volumosa nos adeptos da prática budista do que em pessoas que nunca meditaram. Essa área cerebral não só é responsável pelo processamento dos estímulos dolorosos como participa da emoção e da tomada de decisões. O estudo foi publicado na revista Emotion. O uso compulsivo da comunicação virtual está frequentemente associado a sintomas depressivos. A conclusão é de um estudo da Universidade de Leeds, no Reino Unido, que avaliou 1.319 voluntários com idade entre 16 e 61 anos. Do total, apenas 1,2% dos voluntários foi considerado dependente da rede mundial de computadores, mais foi aí que se concentrou a maioria dos casos moderados ou graves de depressão. Nesse grupo, as pessoas tinham 21 anos, em média. Segundo os autores, não é possível saber se depressivos são atraídos pela internet ou se é o uso da rede que intensifica a tendência ao distúrbio. Eles argumentam que o mais importante é analisar as implicações dessa relação e estabelecer claramente os efeitos dessa prática na saúde mental. O objetivo é evitar casos como os da cidade de Bridgend, no País de Gales, em 2008, quando vários adolescentes, todos usuários compulsivos de internet, se suicidaram.
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