Algumas pessoas ouvem o termo “mérito” no contexto budista e se sentem incomodadas com possíveis conotações de “meritocracia” e outras noções ideológicas, bem como com questões tais como o elitismo espiritual. Embora estas problemáticas talvez se devam mais a uma escolha infeliz na tradução de punya com esta palavra, o conceito de fato é tradicionalmente sujeito a várias armadilhas conceituais. A noção de carma – mérito sendo efetivamente apenas “carma positivo” – não é exclusividade budista. Estando presente em outras tradições espirituais e com vários sentidos, acabou integrada na cultura moderna com aspectos que muitas vezes criam obstáculos a um entendimento apropriado do ensinamento do Buda. Considerando que carma é originalmente tido como o assunto mais complexo em toda a imensidão do ensinamento budista, isso torna as coisas um tanto mais difíceis. Na tentativa de esclarecer estas complexidades – ou ao menos liberar conceitos errôneos arraigados num estado de abertura ou perplexidade – preparei o seguinte texto.
O extraordinário professor Traleg Kyabgom Rinpoche deixou uma verdadeira joia para publicação póstuma: Karma: What It Is, What It Isn’t, Why It Matters (Carma, o que é, o que não é, e porque importa – ainda não traduzido ao português, mas aspiramos que em breve o seja). Nessa curta obra Rinpoche examina o conceito de carma no budismo, bem como os diversos entendimentos sobre o assunto que vêm de outras tradições e de popularizações modernas do termo.
Ao ler o livro de Traleg Rinpoche, percebi meu próprio histórico de relacionamento com o conceito de carma. Antes de conhecer o budismo passei por várias visões extremas, do ceticismo materialista mais ferrenho até o esquizoterismo nova era. Hoje, tendo iniciado algum pequeno entendimento do darma, reconheço que o padrão comum a tudo isso que chamo de “visão extrema”, e que conheço direta e pessoalmente, é uma espécie de tendência a absolutizar as coisas.
Por exemplo, conceitos físicos como matéria, energia, tempo e espaço. Eu os tentava contemplar como que dentro de uma “caixa”, procurando entender relações entre eles a partir de uma perspectiva transcendente – não espiritualmente transcendente, mas como uma abstração localizada “à frente”, em alguma totalidade no espaço mental. É claro, eu não reconhecia essa perspectiva, nem o fato que era transcendente. Esse é o realismo usual no modo científico de pensar. Quando eu vislumbrava coisas como relatividade e mecânica quântica, mesmo assim esse objeto total que eu hipostasiava externamente mantinha uma solidez absolutista. Estava lá aquele “universo”, que através de uma série de hipóteses eu tentava entender e prever. Localmente podia haver “curvatura no espaço”, outras geometrias, e o tempo podia ser vislumbrado como um tecido igualmente maleável – mas a projeção de uma totalidade naturalmente “dada” permanecia. A própria noção de leis, e universalidade de leis físicas é um tipo de absolutização: e que se propõe sem justificativa alguma – na verdade, sem exame algum, por que sem isso simplesmente se presume a impossibilidade da ciência. (Lido com alguns aspectos dessa problemática, para quem quiser aprofundá-la, em dois textos: As premissas injustificadas da ciência e Budismo e mistificação quântica).
Para todos os efeitos, o mundo um pouco mais surrealista ou “maleável” da relatividade ou da física quântica não era tão diverso – em suas versões mais populares nos anos 80 em diante – do realismo deísta da era moderna: o mundo funciona basicamente como um relógio. As engrenagens podem agora apresentar sofisticações adicionais (como a troca da geometria euclidiana por outra, ou o uso de estatística), mas a teia causal é reduzível a equações, o que dá na mesma. Em termos metafísicos, alguém até pode ter estabelecido as regras e “dado corda” para as coisas no início de tudo, mas certamente se há algo desse tipo, não interfere nos acontecimentos naturais depois disso. (E não que a noção de intervenção divina do teísmo faça mais sentido, particularmente no contexto de superar esses entendimentos realistas que estou tentando traçar – mas essas duas noções de realidade hipostasiada são tendências comuns ao realismo, proponha ele um criador ou não, haja intervenção ou não. Uma coisa é projetada como uma totalidade, chamada de “universo”, e, na visão científica, se trata de uma totalidade que opera internamente com algum tipo de padrão ou regularidade.)
Essa dimensão absoluta em termos mecânicos – um ou outro tipo de determinismo ou “ultradeterminismo” – também ganhava um microcosmo humano na dimensão do esoterismo barato, a manifestação popular do entendimento espiritualista não tradicional prevalente. Em outras palavras, pensar o mundo assim tem efeitos psicológicos. Dessa forma, algumas vezes surgia uma desconfiança quase patológica de que a realidade cotidiana se dispunha tal qual um “Show de Truman” particular, quer benévolo ou malévolo, mas sob alguma espécie de direção externa. Isto é, externa ao tempo – havendo algum tipo de “planejamento” ou ordem transcendente. De fato, mais do que palavras como compaixão e regozijo, a espiritualidade não tradicional nos é dada geralmente por essas noções de um outro enorme, assimétrico – anjos, deuses, demônios, conspirações, sincronicidade, planejadores cósmicos, testadores divinos, construtores de realidade, mensageiros. E no seu limite patológico também com ideias de referência – um sintoma de doença mental: a noção de que as coisas e eventos idiossincráticos do mundo estão comunicando algo pessoal.
Estas duas perspectivas absolutistas (que hipostasiam um “grande irmão” ou um mundo mecânico) enfim reduzem a agência a quase nada. Porém, também há o outro extremo, o de supervalorizar a agência, quase ao ponto de achar que o controle das coisas possa ser obtido meramente através de algum tipo de pensamento positivo ou pensamento mágico, ou de algum tipo de um esforço consciente e sistemático. Nesse caso mais patológico, o eu se estende sobre todas as coisas, ele mesmo o objeto absolutizado.
Para o budismo, estas são doenças espirituais (ainda que, em casos específicos e raros, elementos de cada um desses hábitos mentais possam ser usados, expedientemente, de forma positiva, caso não presumam a tal absolutização). Portanto se torna crucial reconhecer o que é essa tendência de reificar as coisas e não reconhecê-las como são, e jogar sobre elas um tipo de solidez que não lhes é própria – e não só reconhecer, mas eliminar esse hábito. Esse é um dos objetivos centrais da prática budista. Mais do que refutar outras religiões ou a ciência, reconhecer o impacto patológico, e muitas vezes automatizado em nosso modo de pensar, de alguns dos pressupostos cotidianos com que operamos, tenham que fonte tiverem.
A maioria das pessoas, não tendo ouvido ensinamentos budistas e que não dispondo ao treinamento sistemático da mente para ativamente evitar essas visões extremas através da mudança de hábitos mentais, recai nelas constantemente, cotidianamente. Isso é fonte de extremo sofrimento e atrito no mundo.
É de fato a coisa mais comum. Certas ideologias de consenso dominantes efetivamente promovem estas visões extremas. É algo valorizado em nossa cultura, e nosso hábito usual é considerar o mundo dessa forma. Aqui não há uma grande diferença entre as várias versões espirituais e tradicionais do teísmo, as formas mais populares e adaptadas, e a perspectiva materialista prevalente. A tendência de absolutizar é prevalente no modo não educado de perceber o mundo, e é ademais incentivada pela educação formal, e pelas ideologias de todo tipo. É possível dizer que é quase uma exclusividade budista chegar a reconhecer essa tendência como um problema.
O budismo é famoso por suas ideias de vazio e de não existência do eu, porém o que é necessariamente subentendido a partir desses ensinamentos é ainda grande novidade em nossa cultura. Não só essas coisas são muitas vezes mal entendidas como o que não são (por exemplo, pessimismo ou niilismo, um nada ou absurdo existencialista de algum tipo), também suas implicações radicais são escamoteadas. A maioria das pessoas não desconfia que o budismo entenda tanto o teísmo quanto o realismo – mesmo em suas acepções não tradicionais, ou mais cotidianas – como ideologias errôneas e fontes de sofrimento.
Particularmente, é impossível entender corretamente o conceito de carma no budismo com um mundo mecânico, ou com um mundo planejado por alguém. E o conceito de carma é uma das coisas mais úteis que se pode ter nas atividades convencionais da vida – tanto para naturalmente prover ética, quanto para nos colocar na capacidade de gerar condições boas que permitam encontrar professores, fazer a prática e o obter entendimento e realização no darma.
Carma e livre-arbítrio
Foram certos tipos de teísmo que tornaram necessário o remendo filosófico que se chama “livre-arbítrio”. Isso foi feito para escapar do “problema do mal”, que ocorre dentro de uma perspectiva que postula uma divindade absolutamente benévola ao mesmo tempo transcendente e manifesta. O budismo não tem nenhuma entidade absolutizada – nem mesmo o Buda, que é visto ele mesmo como uma ilusão.
(Porém, aqui é preciso frisar que o budismo não dá valor moral negativo para o conceito de “ilusão”. Ilusão é visto como algo neutro, até positivo: apenas como uma manifestação qualquer; isto é como qualquer outra, já que todas são “sonho” – que parece surgir para nos revelar a nós mesmos como seres ilusórios.)
Buda também não criou nada disso que vemos ou que vivemos, e não é nem um pouco responsável pelo que nos acontece – nem mesmo indiretamente. Não foi o Buda que inventou o carma ou o colocou em funcionamento, de fato, segundo o budismo, ninguém pode ser culpado disso.
Esta afirmação é muito importante para a não absolutização do carma. Como não há nenhum outro responsável pelo carma senão nós mesmos, isso é bastante diferente das ações morais num mundo criado, por mais que se tente postular agentes livres num mundo desse tipo. Como no budismo o mundo nunca foi criado por ninguém (sendo apenas uma “confusão” adventícia, sem que isso implique valoração negativa), a noção budista de mundo e agente é extremamente diferente em princípio.
Portanto, como o budismo não tem compromisso com nenhuma visão absolutista das aparências (todas essas coisas que vivenciamos), ele simplesmente não lida com o problema do mal, e não precisa de uma noção de arbítrio como dom divino. O conceito de autodeterminação no budismo é diferente, e é entendido com base no entendimento do carma. Somos simplesmente agentes relativamente (isto é, potencialmente) livres, que podem, seguindo o ensinamento do Buda, que se coaduna com a realidade, ser ainda mais livres ao se livrar de concepções errôneas e hábitos perceptuais arraigados. A liberdade é um potencial que podemos usufruir, ou não, em meio a essas aparências não criadas.
Isso não é só uma vasta distinção entre as visões teístas ocidentais e o budismo, também no oriente – na própria tradição de onde o budismo tomou emprestada a noção de carma – as coisas são bem diferentes.
O carma no hinduísmo – uma tradição essencialmente teísta – de modo geral (o hinduísmo é uma tradição riquíssima e com grande diversidade doutrinária), tem um forte componente determinista que não está presente no budismo. Algumas vezes há uma semelhança com o estoicismo em como se trabalha com a boa e a má fortuna própria e dos outros. Porém, soma-se a isso um componente social e de cultura familiar mais forte. Numa sociedade de estóicos não há porque ter inveja daquele que está numa classe superior. E isso não porque ele e a família fizeram por merecer (ao longo de vidas incontáveis) – ainda que o tenham feito por merecer –, mas porque essa é a ordem natural das coisas. Como no hinduísmo o mundo é criado (ao contrário de no budismo), as coisas já estão, de uma forma ou de outra, configuradas. O objetivo de carma aqui é produzir uma aceitação que alguns diriam passiva, e que parece um tanto incompatível com a nossa perspectiva engajada e moderna de transformação do mundo. Algumas vezes o budismo recebe também essa crítica, embora as raízes de seu pensamento sejam extremamente críticas à absolutização hindu.
Essa “ordem natural” de um mundo criado e que existe como uma totalidade no espaço e no tempo é também o cerne do conservadorismo, que é um status quo absolutizado como o espaço newtoniano munido de geometria euclidiana já um dia foi. O teísmo tem implicações muito arraigadas sobre nossa concepção de mundo, especialmente com relação ao que é considerado “natural”. E não é muito óbvio, mesmo quando refutamos o teísmo, desfazer os hábitos que nos fazem pensar o mundo como essa estrutura criada. O teísmo naturalmente projetou, por exemplo, a organização social que chamamos de “monarquia”, que é uma representação humana da ordem “celestial”.
Como uma etapa complicadora acima dessa, temos também no hinduísmo, bem como no cristianismo e em outras tradições (como o kardecismo, tão popular no Brasil), uma comunicação mais dinâmica com o “mais alto”, que demanda um determinismo qualificado, ou relativizado. Para evitar o problema do mal, e se é que o livre-arbítrio resolve esse problema, o mundo vira uma espécie de “escola moral” – o que é bem exemplificado pela história de Jó na Bíblia. Somos criados à imagem e semelhança, porque também, assim como Deus, temos agência. Um deus transcendente nos concedeu essa agência como dom – ou um deus imanente é ele mesmo a fagulha de independência autônoma presente em cada um. Assim, pela benevolência de Deus, esse mundo surge como uma espécie de teste e aprendizado, onde a pessoa descobre, através de um processo talvez doloroso, o que realmente é diante do dom divino. Caso usemos nosso dom divino, por nossa própria vontade, encontraremos o aspecto final e o sentido de tudo, descansando ao lado do Senhor.
Claro que isso tem todo tipo de furo, o que nos leva a postular as intenções divinas como invariavelmente misteriosas.
De uma combinação disso com a visão materialista – via darwinismo social – surgiram todas as noções utópicas. Ansiamos fazer da terra o céu, seja pela revolução social ou pela tecnologia. Que consideremos a melhoria possível é um rompimento com a absolutização primitiva do status quo para uma absolutização do mundo natural, ou do próprio empreendimento humano, como ferramenta para a melhoria humana.
O budismo é algumas vezes culpado de não colaborar com esses planos, e estar do lado da religião tradicional e do conservadorismo, numa espécie de manutenção do status quo. Porém o budismo não é contra a melhoria das condições, seja por que meio – ela só não é a prioridade, porque o budismo não absolutiza condições, que necessariamente são temporárias. Algumas pessoas podem dizer que a atitude budista seria, mais do que pessimismo, de um cinismo completo. Porém, manter esperança quanto a solucionar as coisas no mundo e se decepcionar é que normalmente produz uma visão cínica – essa expectativa Poliana é que produz seu oposto. Trabalhar pela melhoria sem expectativa de resultado, e sem um plano ulterior – que sempre pode estar equivocado, e por isso não deve ser absolutizado – é o que permite manter uma atitude positiva mesmo quando as circunstâncias parecem ficar muito ruins.
Ironicamente, o naturalismo teísta evolui até a transformação de Deus ele mesmo num mecanismo impessoal, matemático. “Imagem e semelhança” se tornaram a onipresença das leis e forças físicas, em seus processos observáveis e teorizáveis, e a consciência vira um processo de emergência, um mero epifenômeno da massa biológica dentro do crânio. Algum reflexo de nossa noção de agência é vislumbrado com atraso ocorrendo nessa massa, e concluímos que, como nossa ideia de sermos antes de tudo consciências corporificadas, a agência (como ideias religiosas) também é algo com que simplesmente nos enganamos – afinal, o que os aparelhos nos mostram é que, se somos esses fenômenos eletroquímicos (e o que mais poderíamos ser?), somos como todo o resto, poeira de estrelas a que cultuamos, iludidos, ou que, mais apropriadamente, reconhecemos como mera matéria.
Ou somos a fagulha divina transcendente, ou somos o tecido da própria criação que, do absolutamente amorfo, fez brotar o divino, como conceito. E então no cristianismo a comunhão se torna comer a carne de Cristo e beber seu sangue, e em paralelo a isso, a indústria farmacêutica nos vende felicidade e sentido através das drogas. O “grande irmão” precisa ser fagocitado, e então a união é realizada novamente. “Religare”, e assim por diante.
A visão materialista também se torna ironicamente “espiritual” ao tentar explicar de onde surgiu esse “engano” – ainda não artificialmente replicável ou mesmo compreendido – que é a consciência. O mundo natural é a ioga do cientista – ele busca o profundo em meio ao que se apresenta, seja o criado pela mente divina (que pensa apenas matemática pura!) ou tudo que há (o que é novamente uma forma de absolutização – e deificação – das coisas).
Evitando um mundo “pronto”
A visão budista é um tanto diferente disso tudo.
A primeira etapa para tentar entender o que há de tão diferente na perspectiva budista, é compreender essa questão da “absolutização”. Isso ocorre quando transformamos um objeto (abstrato, concreto) numa totalidade. Objetos que comumente totalizamos dessa forma são o “eu” (o fazemos constantemente), o que chamamos de universo (cosmos, totalidade), Deus, tempo, espaço, matéria, e assim por diante. Esses conceitos podem ou não “existir”, ou ser úteis em um e outro sentido, mas nossa tendência a absolutizá-los não permite sequer que os entendamos sem contradições. Todos eles recaem numa ou outra antinomia, ou são o que Gallie chamou de “conceitos essencialmente contestáveis”.
O budismo considera o teísmo e o realismo impossibilidades lógicas. A absolutização de fato impede o raciocínio. Mas entende que nossos hábitos arraigados produzem versões dessas ideologias, sendo as menos educadas e mais “orgânicas”, e por isso mesmo um tanto mais arraigadas, nosso próprio aparato perceptual (que é realista) e a crença num eu. Isso de fato se coaduna com a visão científica atual, que vê nossa percepção como resultado de um processo evolutivo, que facilita a perpetuação de genes, e não a compreensão da natureza das coisas. Como linguagem e percepção surgem de um processo evolucionário, elas não são suficientes para revelar coisas profundas.
Mas como não absolutizar conceitos como Deus ou o eu? Eles são praticamente sinônimos de absoluto – ainda que, estritamente falando, várias tradições teístas reconheçam que a linguagem fica naturalmente esquisita e inadequada quando o absoluto é nomeado.
Aqui é preciso parar e afirmar que a tradição budista não vê problema com o uso do termo “absoluto”, e exatamente porque ela reconhece que o absoluto de que se pode falar não pode ser absoluto. Até mesmo o absoluto de que o budista fala é relativo: ele surge em relação, ora justamente, ao relativo. É como uma medida absoluta ou relativa em um design feito por computador – uma se dá é com relação à margem, outra com relação a um ou outro objeto. A visão em que relativo e absoluto coalescem até pode ser subentendida, ou indicada poeticamente, mas não é exprimível. “Absoluto” pode acabar sinônimo de extremo: isto é, muitas vezes usa-se o termo para explicitar uma crítica, não para falar de um existente.
De fato, o budismo (ou pelo menos a maioria das tradições budistas) é claro em reconhecer que falar em “existência de um absoluto” não dá certo. No budismo, existência é definida como necessariamente relacional: nada existe num espaço absoluto solto num nada, tudo que existe, existe apenas perante outras coisas, ou pelo menos perante uma outra coisa. A noção de uma existência absolutista é autocontraditória, ainda que, devido a nossa ignorância arraigada, quase invariavelmente usemos o termo existência num contexto absoluto. Por isso se diz “vazio” no budismo: é exatamente vazio de absoluto, vazio desse palco eterno com um observador necessário, mas não reconhecido. A absolutização acaba justamente com esse resultado irônico de ocultar o transcendente.
Mas o absoluto pode em certo sentido ser “afirmado”, caso isso não implique uma absolutização. É uma “afirmação” que destrói o uso da linguagem, no âmbito específico em que a linguagem não serve mais para nada. No entanto, normalmente queremos mais do que poesia sem eira nem beira: portanto afirmar o absoluto, e ainda assim ficar com a linguagem intacta, não é possível.
É realmente de se espantar que com toda nossa tendência a absolutizar ainda assim alguma comunicação aconteça!
E isso nos mostra algo sobre o problema do mérito. Estamos por aí com essas tendências absurdas de absolutizar tudo o tempo todo – e absurdas não só porque nos fazem não reconhecer a realidade, e nos fazem sofrer, mas também porque são irracionais, e acabam com nosso poder de comunicação (e compaixão). Precisamos de mérito para usar bem a linguagem e depois, também para abandonar qualquer absolutização na linguagem em si. E é basicamente isso que o Buda ensinou nos Sutras Prajnaparamita.
Para não absolutizar, treinamos no hábito de não absolutizar. Fazemos isso deliberadamente, conceitualmente, e também através de ações virtuosas, que geram mérito. A combinação necessária do reconhecimento e da vontade de não absolutizar com o empenho na virtude é o que permite abandonar esse hábito.
Virtude natural
Devido a nossas tendências arraigadas, é difícil perceber a implicação de abandonar as perspectivas absolutistas. Embora a metafísica absolutista (teísta, realista) nunca seja efetivamente resolvível, quando a desafiamos, desafiamos tradição, hábito e uso ordinário do pensamento.
O exemplo com relação à questão do mérito é particularmente dramático.
Para o budismo, não praticamos virtude para agradar um ser supremo, ou passar em seus testes, ou para nos coadunarmos a expectativas sociais ou estarmos de acordo com alguma ordem suprema ou natural. Praticamos virtudes por dois simples motivos: vivenciar melhores experiências e entender e praticar melhor o darma, que é o que nos leva a reconhecer a realidade de nossa própria natureza e das experiências, além de prover sentido a elas.
Ambas as coisas requerem uma visão cada vez menos absolutizadora do mundo e de nossa circunstância. Em certo sentido, isso significa reconhecer continuamente que as condições mudam, e que há como tomar as rédeas e produzir circunstâncias melhores de um jeito pré-estabelecido, com base não só em nossa vontade, mas no engajamento com nossos próprios hábitos. Não há como tomar as rédeas absolutamente, ou produzir circunstâncias melhores absolutamente: mas sim, é possível produzir melhoria. Essa visão não se coaduna com determinismo estrito, e tampouco com a noção de livre-arbítrio. É uma liberdade potencial se revelando aos poucos num mundo que surge constantemente (é “criado” incessantemente) determinado por nossas ações passadas.
Essa perspectiva é tremendamente diferente de nossa tendência usual a projetar solidez sobre a situação atual, ou sobre nossa idealização do passado ou do futuro. A perspectiva congelada das coisas, nosso modo usual de ver, projeta uma linha de tempo a partir de uma perspectiva eterna, em que o sentido, se existe, já foi dado.
A ideia existencialista do sentido ser construído na experiência pode ter algo a ver com a visão budista em que o darma é um processo de integração da realidade com nossa própria natureza. Porém, é claro, o existencialismo não possui nenhum método além do engajamento no discurso, bem como é cheio de muitas outras visões errôneas variadas, de acordo com o filósofo.
O outro extremo usual é o que no budismo se chama “niilismo”, mas que ganha um sentido um pouco diferente da perspectiva filosófica ocidental usual de “desespero”. Para o budismo, niilismo é uma crença arraigada na ausência de sentido, e na ausência de controle sobre a própria experiência. As coisas acontecem sem motivo algum. É uma absolutização da desistência ou do “absurdo”.
A inexorabilidade da conexão entre virtude e felicidade, e desvirtude e infelicidade não é embasada numa estrutura pré-existente da realidade, mas na observação empírica continuada. Um pós-modernista que se diga além da absolutização dos conceitos, e que coma salada de maionese estragada, segue passando mal independente do que acha sobre conceitos, e independentemente se isso foi deliberado ou inadvertido. O budismo não é “desconstrução” do absoluto nesse sentido, de forma alguma um salto mágico para um mundo de faz de conta onde sacrifício humano ou escrever qualquer coisa sem sentido num papel produza felicidade. Caso a coerência entre virtude e felicidade e assim por diante sejam absolutizadas, se tornando características ou estruturas do que é projetado externa ou internamente, perdemos a possibilidade de ir além disso. E o budismo diz que carma, embora importante, não é absoluto ou real num sentido definitivo. Usamos o mérito para poder usufruir dos métodos budistas que nos levam além do carma (o que inclui tanto o mau carma quanto o mérito).
O entendimento budista de carma é não absolutizador, e, portanto, não recai nos extremos da determinação atemporal (o “está escrito”) e da ausência de determinação, e particularmente não recai na ausência de autodeterminação. Nossa dificuldade de entender carma está no fato de que nossa tendência, inclusive nosso uso dos sentidos e da linguagem, é simplesmente absolutizar tudo. Algumas pessoas consideram que carma e vacuidade não poderiam ser compatíveis, já que a tomam vacuidade como uma espécie de liberdade perante a própria coerência ou congruência – uma quebra da causalidade. No entanto, Nagarjuna afirmou que vacuidade e interdependência são exatamente a mesma coisa. Dessa forma, o sentido profundo de carma como interdependência é a própria não absolutização.
Virtude, portanto, é coadunar com a realidade, que é naturalmente positiva e não absolutizável, porque não criada. Coadunar com a realidade como ela é, positiva, é encontrar as possibilidades positivas na convencionalidade. Isso enquanto tendência: não é um estalar de dedos que produz uma circunstância perfeitamente esplendorosa, dotada de todas as qualidades extraordinárias, prazeres e sentido. É reconhecer os hábitos de solidificar as aparências e os remover que revela, pouco a pouco, essa natureza de virtude.
Isso é completamente diferente de absolutizar a virtude e se tornar um moralista, por exemplo. E isso é diferente de sustentar o status quo ou buscar melhorar o mundo por transformação externa, seja melhorando condições sociais ou aplicando mais tecnologia. O mundo é melhorado porque os hábitos daninhos são revelados, e métodos para dirimir hábitos daninhos são exemplificados e ensinados – todo o benefício que não esteja ligado a isso é secundário – positivo, mas não prioritário.
Riqueza sem limites
Uma das implicações importantes da realidade convencional não absolutizada é que podemos perceber a impermanência como uma riqueza. O fato de não necessariamente sermos o que nos consideramos, e podermos nos transformar, e nos revelar estranhos para nós mesmos, é um dos aspectos dessa compreensão.
A imersão no ser natural, não absolutizador, é um contentamento sem limites. (E nenhum modo de reconhecer isto é melhor do que conviver com um professor que nunca se desvia desse reconhecimento. Esse é o método e mérito supremos.)
A segunda compreensão, talvez mais importante, é que o mundo externo e as outras pessoas também podem operar dessa forma, embora raramente operem: por um lado, a tendência é congelar as aparências, e reconhecer coisas como tempo e espaço como uma ou outra caixa onde uma totalidade de coisas ou eventos se dá (se deu; está, esteve, estará; e assim por diante). Por outro lado, as coisas e pessoas são inerentemente livres dessas tentativas de aprisionamento, ou de nossas expectativas de danação ou salvação.
Essa liberdade não absolutizadora é algumas vezes também chamada de “espaço” no budismo, e inclui um aspecto atemporal. O espaço de todas as possibilidades é não absolutizador por sua própria natureza.
Mérito seria, portanto, o hábito mental ou circunstância que nos permite usufruir mais possibilidades. Esse também é o sentido de prosperidade. Da mesma forma que o dinheiro no mundo convencional nos permite uma série de liberdades convencionais, tais como viajar, tempo livre, objetos e prazeres, educação, influência, poder, saúde, beleza, longevidade e assim por diante – no sentido profundo, o mérito é o que nos permite a liberdade de efetivamente praticar o darma e transformar os hábitos mentais, é o que nos dá sentido, bem como todo tipo de outras liberdades menores. Numa perspectiva particular e restrita, facilidades materiais também são, de modo geral, resultado de mérito. Num sentido mais amplo, no entanto, o mérito vai muito além de meras facilidades materiais.
O budismo preconiza um método fácil, ainda que não imediato, para a riqueza. É a simples prática da generosidade. Tudo que vemos, oferecemos mentalmente ao Buda. Também fazemos oferendas simbólicas e efetivas. E oferecemos também aos seres sencientes. Objetos materiais e dinheiro, atenção, trabalho, darma. E não só oferecemos, mas regozijamos com a generosidade dos outros. A liberdade perante a mente mesquinha é o contentamento, que é maior que qualquer riqueza material. Embora também se acredite, no budismo, que absolutamente toda riqueza material advém dessa mentalidade.
Isso não quer dizer que as pessoas ricas sejam generosas – significa que elas já foram generosas, e agora usufruem de certa abundância relativa e facilidades porque ampliaram suas mentes e foram além da mesquinhez de forma consistente no passado. Elas podem ou não continuar sendo generosas, uma vez que não há nada absoluto.
Aqui o budismo vai diretamente contra a noção de meritocracia: as pessoas não ficam ricas por trabalho duro ou grandes ideias! Elas ficam ricas por causa de punya, que é extremamente diferente do mérito pessoal de “ser melhor que os outros em algo”. Ter facilidades nessa vida veio da prática de virtude em algum momento do passado, e essas pessoas agora encontram essas boas condições relativas, inclusive a possibilidade de “trabalhar duro” (ou, melhor ainda, nem trabalhar!) e se dar bem com isso – mas que também é algo elas podem ou não aproveitar bem. E, para quem não tem punya, isto é, para quem não gerou virtude e causas de felicidade, toda a esperteza e esforço do mundo não produzirão um centavo sequer.
Isso é absolutamente diferente de meritocracia. Embora, se você misturar esses entendimentos com tendências absolutizadoras, vá inevitavelmente surgir algo com os mesmos problemas.
E, de fato, esse entendimento também não se coaduna com as noções de classe. Todo mundo já esteve em todas as classes zilhões de vezes, e isso não adiantou nada. Não é competindo por recursos ou competindo umas com as outras que as pessoas encontram facilidades, mas sim, abrindo mão de hábitos mentais arraigados. Assim, mesmo uma pessoa que encontre pouquíssimas facilidades externas pode usufruir de contentamento internamente, enquanto outra que tem todas as facilidades, pode ter a mente cheia de ansiedade e confusão, e não conseguir usufruir de nada. O vinho caro e as paisagens paradisíacas surgem apenas como uma forma de inferno interior produzido por descontentamento profundo com tudo. Em outras palavras, mérito mesmo, no sentido budista, é impossível medir ou averiguar – não é a conta bancária com muitos dígitos ou quão poucas drogas psiquiátricas alguém precisa usar.
Ainda assim, as circunstâncias atuais das pessoas também não devem ser absolutizadas. E isso não significa que exploração não exista. A exploração é uma realidade, e as pessoas que usam o trabalho dos outros efetivamente as estão roubando, o que produz sofrimento e congela a pessoa na situação de credor cármico. Evitar uma cultura de exploração, e não se deixar ser explorado, é, portanto, essencial.
O melhor que se pode fazer, no entanto, não é voltar pessoas umas contra as outras, na perspectiva de que mais denúncias sobre a não virtude alheia vá melhorar tudo. O melhor é dar exemplos de generosidade, e sentir compaixão por aquelas pessoas que estão destruindo o mundo e suas próprias vidas internas com ganância e ideologias estapafúrdias de crescimento econômico.
Como as aflições mentais surgem da absolutização
A palavra “mérito” parece ter por si só uma conotação absolutizadora em nossa cultura. Isso significa que, ao vermos uma pessoa com facilidades materiais, tendemos a reconhecer isso como mérito. Até aí, não haveria grande problema. Usufruir qualquer tipo de facilidade é um sinal de ter gerado mérito no passado. No entanto, projetamos essa circunstância positiva como um elemento necessário num tempo e espaço absolutizados. De uma forma grosseira, projetamos essa boa fortuna para o passado e para o futuro indefinidos, mas num sentido sutil, mesmo um momento pontual de bom mérito nos parece absoluto, porque parece existir num tempo de possibilidades congeladas – num mundo pré-existente e “criado”.
Em outras palavras, temos uma tendência forte de não reconhecer a impermanência, e, num sentido profundo, a natureza insatisfatória de todas as coisas temporárias.
Uma das consequências disso é que quando vemos alguém usufruindo de algo bom, sentimos inveja, e quando vemos alguém cometendo uma ação negativa, em vez de sentir compaixão, sentimos raiva. Isso se deve ao fato de que, como somos ignorantes e não reconhecemos a realidade da vacuidade de todas as coisas e pessoas, absolutizamos os agentes e as circunstâncias. Os prendemos num concreto de eternidade, no qual também estamos presos – e em outra posição, onde olhamos aquilo “de fora”.
Isso só redunda na proliferação de sofrimento por todos os lados e principalmente para si próprio.
Algumas pessoas ouvem ensinamentos budistas sobre “ficar no presente”, e se desapegar do passado e do futuro, mas transformam esse “presente” numa outra forma de absoluto. Qualquer presente temporal ou atemporal também é igualmente foco do mesmo desapego de passado e futuro; este seria o ensinamento mais amplo. O que significa “desapego”? Significa não absolutizar, isto é, não congelar aquilo como algo que existe de forma pontual e separada num espaço e tempo objetificados externamente (externos ainda que nos sintamos “dentro” em nossa percepção sensorial, ou “fora” em nossa abstração mental: isto é, separados de algum modo).
Porém, caso geremos alguma empatia pelo ser que usufrui algo bom ou comete uma ação negativa, nos tornamos capazes de regozijar com aquele homem feio e sua namorada tão bonita, ou sentir compaixão pelo estuprador ou pelo genocida. Isso é similar a transformar aquele concreto espaço-temporal numa substância um tanto mais viscosa, onde há alguma possibilidade de movimento. Nessa analogia com estados físicos, estamos mais próximos da realidade, mas ainda vivenciamos bastante atrito.
Caso tenhamos um mérito muito extraordinário, e sejamos capazes de desenvolver profunda compaixão ou regozijo pelos seres em quaisquer circunstâncias, isso é como um líquido leve, ou mesmo um gás – onde há menos atrito no movimento. Maior facilidade. Na completa união de sabedoria e mérito, há um espaço sem limitações. Algumas vezes quando budistas falam de poderes mágicos como atravessar paredes ou flutuar, é provavelmente a essa experiência que estão se referindo – é uma capacidade de não absolutizar nenhum sonho, e, portanto, total liberdade além de pontos de referência.
Mérito é o próprio hábito de não absolutizar
Estritamente falando, para praticar o darma precisamos de duas coisas. Acumular mérito e desenvolver sabedoria. Prosaicamente, acumular mérito é realizado através de prática formal e informal, e particularmente por virtudes como a generosidade; e, em contraponto, desenvolver sabedoria significa ouvir o darma, fazer perguntas para dirimir dúvidas, fazer contemplação analítica dos ensinamentos, e verificar empiricamente seus aspectos cruciais através da meditação.
Mérito é essa capacidade de movimento ou liberdade – essa prosperidade de possibilidades infinitas, e particularmente, de usar a vida para seu melhor propósito – se tornar um Buda, que vê a realidade como ela é, apenas existe para ajudar os outros a fazer o mesmo, e vive num estado de bem-aventurança sem referenciais por exemplificar mérito e sabedoria absolutos. Como uma virtude como a generosidade causa esse espaço/liberdade/facilidade/êxtase? Uma das formas mais próximas e óbvias em que somos congelados/solidificados é através das coisas que tomamos como justificativas de nossa experiência de felicidade – e que não são suas fontes verdadeiras. Por exemplo, apego a objetos materiais, e a nosso sentido de espaço pessoal. Quando somos capazes de abrir mão da crença de que essas coisas nos são garantias (de qualquer coisa, felicidade, segurança, senso de identidade), quando conseguimos ver que elas são apenas lastros que nos prendem a uma visão absolutizadora, então as oferecemos alegremente.
Mesmo com todo nosso passado cristão – que é focado em virtudes tais como caridade –, uma das felizes descobertas de muitos praticantes budistas no ocidente é que oferecer abertamente nos faz mais felizes do que acumular. Esse hábito mental pode começar com uma coisa muito pequena, como grãos para um pássaro ou alguns reais para um mendigo, e acabar com a capacidade de oferecer a própria vida para salvar a dos outros – algo que algumas vezes vemos até pessoas “comuns” (isto é, pessoas supostamente não espirituais) e até animais sendo capazes de fazer.
Por outro lado, também vemos a miséria causada por uma mente que solidifica tudo e a todos. Reconhecer a realidade significa abandonar a absolutização, e é isso que torna tudo que é positivo mais fácil.
Carma é “injusto”
O problema em geral com a noção de carma é o descompasso temporal. Vemos aquela pessoa aparentemente próspera e feliz, mas que comete muitas não virtudes – ou ao menos acreditamos haver tal pessoa, e acreditamos em sua prosperidade e felicidade. E então carma parece uma impossibilidade, ou pelo menos algo “injusto”.
O fato é que esses seres facínoras que automaticamente odiamos ao ver no noticiário, porque cometem crimes hediondos, e assim por diante, já estão imersos em grande sofrimento. Se eles nos fazem sentir asco porque projetam uma aparência poderosa ou ao menos pretensiosa, precisamos evitar absolutizar novamente e reconhecer que a base toda dessa aparente soberba é muito frágil. O sofrimento deles sem dúvida já é enorme, e tende a aumentar – e esse não é motivo para regozijo vingativo. A perspectiva budista não admite esse tipo de solidificação. E quem mais tem a ganhar com ser inteligente dessa forma, e reconhecer o algoz como um sofredor infeliz, é você mesmo – não só você está de acordo com a realidade, mas você fica imune aos mesmos defeitos, e só tende a ganhar mais espaços positivos e possibilidades. A compaixão verdadeira, por quem quer que seja, não tem defeitos.
Em contraposição, se você sustenta o ódio, que é uma forma de regozijo negativo, você simplesmente se fragiliza e não beneficia nem a si mesmo, pelo contrário. Nossa indignação é apenas um hábito absolutizador.
Muito ativismo político moderno consiste em solidificar um inimigo, desenvolver asco por ele, e considerá-lo culpado de todos nossos problemas. Isso acontece com a direita, que culpa imigrantes, outros países e terroristas; e acontece com a esquerda, que culpa corporações e o 1%. Todos culpam os políticos, e uns aos outros. No entanto, embora haja responsáveis por ações negativas, não há culpados verdadeiros. Caso as pessoas reconhecessem dentro de si o sofrimento que causam, elas não o causariam – elas só são capazes de agir como agem porque congelam algum tipo de separação, e absolutizam extremamente coisas em vários sentidos. Elas infelizmente vão quebrar a cara vez após vez, como sentir raiva por elas?
Dzongsar Jamyang Khyentse Rinpoche ao ensinar sobre o Caminho do Bodisatva de Shantideva no Brasil deu o exemplo de uma pessoa que cai sobre a outra no ônibus. A vítima dessa queda leva, digamos, uma pancada no rosto. Caso essa vítima seja muito estúpida, ela culpa a pessoa que caiu. Caso ela seja um pouco menos estúpida, mas ainda um bocado, ela culpa o motorista. Se ela for muito esperta, ela culpa o trânsito. Mas se ela for realmente sábia, ela culpa seu carma. Embora nós queiramos saber onde está o cerne do problema – ah, mas aquela pessoa não estava se segurando com força e mantendo atenção, ou o motorista viu uma moça bonita, ou o trânsito está ruim por causa de uma obra, assim por diante – o cerne do problema é evidente: temos essa fragilidade, e estamos sujeitos a esse tipo de sofrimento, porque nos colocamos nessa situação através de nossas situações passadas. No fundo, nem mesmo devemos nos culpar a nós mesmos: se nós soubéssemos, não o teríamos feito.
As pessoas têm todo tipo de ideia errônea com relação ao carma. Por exemplo, elas acham que se uma pessoa faz a outra sofrer, já que a outra só sofre por seu próprio carma (o que é verdade), quem faz o outro sofrer estaria certo, sendo uma espécie de “agente do carma”. Isso é completamente uma visão absolutizadora e terrivelmente errônea da ação cármica. Quem faz o outro sofrer, causa sofrimento para si próprio. Embora seja verdade que o outro só possa sofrer com essa ação porque ele mesmo criou essa fragilidade para si, ele não é culpado ou responsável pela ou expiador da ação do outro – de forma alguma. Quando dizemos que a vítima está melhor que o agressor, isso não quer dizer que o agressor beneficiou a vítima. Enquanto um esgota um pouco de sua fragilidade, o outro cria ainda mais fragilidade para si. No total, os dois são vítimas, nenhum é algoz. O único jeito de quebrar esse ciclo vicioso é recuperando o espaço de possibilidades, o que inclui não revidar, inclusive em pensamento.
Não ver inimigos em lugar algum é o único pacifismo possível.
E isso de modo algum significa também não impedir a ação negativa dos outros. Se um gato se prepara para comer uma barata, caso você seja um praticante budista, você não cai na falácia naturalista de achar que “ora, é um animal, ele sabe o que faz enquanto animal, não me meterei”. Não, você trabalhar ativamente para evitar a ação negativa do gato – ele vai ficar chateado, porque queria caçar, mas você fez sua parte.
O Buda não projetou nada do que acontece, ele não é responsável pelo carma, muito menos pelas ações dos seres. Tudo que o Buda pode fazer é avisar para que prestemos atenção em onde estão as raízes de felicidade, e onde estão as raízes do sofrimento – o hábito de absolutizar, que cria as emoções aflitivas tais como inveja e raiva, e produz as ações desvirtuosas, e todos os sofrimentos vivenciados no mundo. Num mundo em que as visões errôneas do materialismo, do realismo teísta, e do niilismo são as mais comuns, o que o Buda ensinou pode parecer difícil de entender – mas isso se deve apenas ao fato de que não prestamos atenção devida às contradições de nossas crenças habituais. Um breve exame sobre tudo que as pessoas costumam acreditar mostra que as contradições permeiam quase tudo – e se o darma é estudado com cuidado e motivação correta, o ensinamento do Buda está perfeitamente imaculado de qualquer tendência absolutizadora, a raiz de todo tipo de erro e contradição.
Em meio a isso, é óbvio que o carma não é justo – nem nunca ninguém disse que ele seria, ou porque seria, uma vez que o Buda não é responsável pelas coisas serem como são. Porém, o Buda sempre ensinou que o carma é uma coisa com que podemos lidar, assumindo responsabilidade por nossas ações, e entendendo que não há culpados no mundo, e também, eventualmente superar de forma definitiva.
Elitismo espiritual
Outro aspecto difícil com relação ao mérito é a noção de “acumulação”. Muitos iniciantes no budismo se consideram operando alguma falsidade ao fazer aspirações elevadas, ou mesmo ao praticar virtude. Até quando ao fixar a motivação (de trazer benefício a todos os seres, algo que se faz ao início de cada prática formal ou cotidiana) algumas pessoas se sentem farsantes.
Por um lado, isso é bom. Ficar insatisfeito com a própria prática – sabendo que podia fazer melhor – é um bom sinal de que não está havendo materialismo espiritual ou soberba. Porém, se há uma absolutização também aí, no sentido de falta de autoestima, e isso cria um obstáculo para a prática, o melhor a fazer é lembrar-se de evitar o perfeccionismo, que é um idealismo de si próprio que a pessoa nunca conseguirá efetivar. A pessoa transforma o Buda (que é no fundo sua própria natureza!) num absoluto inatingível, e assim esquece que ele ia ao banheiro, tinha dor de cabeça, foi casado, e morreu de diarreia.
Isso não quer dizer que haja problema em idealizar até certo ponto. Louvar as incompreensíveis qualidades do Buda é meritório, desde que isso não crie obstáculos – e estes só surgem quando há absolutização. Reconhecer as qualidades do Buda é parte essencial da geração de méritos.
Da mesma forma, é perfeitamente adequado sentir orgulho de ser budista. E não estamos falando aqui do uso dos venenos no caminho, ou o orgulho da deidade, que são coisas específicas do vajrayana. Existe um aspecto do termo orgulho que não é ligado à emoção aflitiva autocentrada como descrita no budismo, que ocorre quando você não faz comparação, nem coloca os outros abaixo de si mesmo. De fato, esse orgulho positivo com relação ao caminho espiritual que se escolheu é essencial. Sem esse regozijo em ser um seguidor do Buda será muito difícil ter gosto na prática.
Porém, nossa tendência comparativa é muito forte. O que se pode fazer quando, em meio a esse orgulho de ser budista? Caso surja uma tendência de diminuir as outras tradições ou as pessoas não budistas, é preciso desenvolver compaixão e regozijo. Na verdade, isso vale também para os outros budistas que estão no nosso mesmo caminho, mas que vemos avançar mais lentamente – ou até para aqueles que vemos avançar mais rapidamente que nós, e que algumas vezes são condescendentes ou frívolos com relação a nossos esforços e tropeços. Vamos agora sentir inveja do próprio Buda, ou de nosso professor? Caso isso ocorra, pode bem ser um lembrete de regozijar com suas qualidades! É só mudar um pouco o ângulo, absolutizar um pouco menos.
Isto é, quando quer que surja a mente comparativa, geramos compaixão e regozijo, um ou o outro, ou ambos simultaneamente.
Com relação ao ser que você vê como “inferior”, você gera compaixão ao reconhecer que, embora o ser tenha todo o potencial que de fato tem, tendo como todos os outros seres natureza de Buda, ele infelizmente não consegue usufruir ou revelar esse potencial. Então você lembra que, embora possa haver diferenças quantitativas, qualitativamente somos todos iguais. E o que é quantitativo é absolutamente incerto e impermanente! Absolutamente irrelevante! Além do mais, você também tem um potencial que não revelou completamente. Os méritos de cada um são extremamente variáveis, e nunca sabemos em que posição cada ser estará no próximo momento – esta é uma consideração absolutamente inútil. Agora me parece inferior? Opa, boa oportunidade para lembrar-se de sua verdadeira natureza e desenvolver compaixão. Não é uma oportunidade para o regozijo torpe com a comparação, que não ajuda nem você nem a ninguém.
Os grandes mestres do passado então nos dão uma dica para aperfeiçoarmos nossa própria prática: focamos apenas o potencial do outro, e ao mesmo tempo, focamos apenas o que não revelamos em nós mesmos. Ao servir o ser dessa forma, ocasionalmente surgimos, em um pequeno sentido, temporariamente, como professores dele – mas apenas seguimos nos reconhecendo como servos dessa natureza pura, que é mútua, ou mais do que isso, a mesma em cada um. Podemos também surgir como alunos, que diferença faz? Somos todos alunos do mesmo professor, o Buda, da mesma natureza, que é igual em todos! A pessoa pode pensar que o melhor seria praticar de forma não dual, e isso é verdade, mas enquanto isso, você faz uma bondade para consigo mesmo e força um treinamento contra seus hábitos. Assim, porque você reconhece essa tendência ao autocentramento, de início você treina no oposto: você foca os seus defeitos e as qualidades do outro.
Se o outro está envolvido em comparação, não diga “azar o dele”. Faça sua parte e dê exemplo.
Quando você se sentir desencorajado ao focar os próprios defeitos, regozije nas qualidades do Buda, ou dos praticantes bons que você conhece. Se mesmo assim você se sentir deslocado, inferiorizado ou superiorizado, absolutizando algo em algum lugar, pense que é possível melhorar, não interessa onde você esteja.
Então você vê um defeito, gera compaixão, e então vê o potencial e as qualidades que invariavelmente aquele ser tem ou pode ter, e gera regozijo.
Essa prática, no entanto, você reconhece como a própria raiz dos seres elevados. E não, você não é, necessariamente, um ser elevado. Você apenas regozija com a prática. Você regozija por ter alguma conexão com a prática, e ser capaz de aplicá-la em algum pequeno sentido. E você aspira praticar melhor. Esses valores positivos você pode até chamar de orgulho ou elitismo, mas isso não é necessário. De fato, são esses valores que promovem a profunda equanimidade.
O que ocorre algumas vezes é uma apropriação dos valores mundanos pela perspectiva espiritual. Eu sou aluno do professor tal, portanto sou o máximo. Minhas credenciais e currículo budistas são impecáveis! Isso é absolutamente natural, embora seja realmente um problema e deva ser combativo. Na verdade, logo que avançamos um pouco no caminho nosso orgulho fica bem mais sofisticado e difícil de lidar do que isso: e assim é preciso gerar muito mérito e ser muito honesto consigo mesmo. Mas nesse nível de iniciante grosseiramente arrogante ele ainda está exposto para receber porradas da prática, e aí o importante é só não fugir quando tudo ficar difícil devido a nossa própria impostura. Se toleramos o darma nos purificando, descobrimos nosso lugar especial na mandala do Buda, igual ao de todos os outros seres-mães.
Quando vemos alguém usando a espiritualidade para autopromoção ou autojustificação, novamente, geramos compaixão. Aquele ser está simplesmente desperdiçando a oportunidade tão rara de praticar o darma de forma pura.
Quando quer que um sentido de indignação moralista, inferioridade ou superioridade surgir, lembramo-nos da natureza não absoluta do mérito – regozijamos com o que temos, e sabemos que isso não é garantia de nada. Caso percamos tempo nos comparando com outros seres, pior para nós. Melhor regozijar com os méritos, onde quer que eles estejam, e gerar compaixão pelos seres com obstáculos, sejam quem eles forem.
Considerar o Buda é algo inconcebível. Não conseguimos entender nem os méritos de Sidarta, com sua era nobre e exaltada, e seus palácios requintados e milhares de esposas. Nem mesmo o aspecto convencional daquele que um dia viria a ser o Buda é fácil de contemplar, tal a radiância fulgurante dessa liberdade. Que dirá então as práticas de austeridade e os estados meditativos? E o ato de levantar e ensinar o darma por 42 anos? Ao examinar a mente do Buda, somos como um pássaro tentando chegar à estratosfera. Onde esse brilho e esse espaço vão terminar? O pássaro cansa, nossa mente conceitual desiste – mas não vê o fim do espaço. Não vê nem um indício de que pode haver um fim para tal mérito.
Esta reflexão marginalmente toca o excelente livro citado no início, Karma: What It Is, What It Isn’t, Why It Matters (Carma, o que é, o que não é, e porque importa) de Traleg Kyabgom Rinpoche. Este é o tema mais complexo do darma, e aqui eu apenas tentei lidar com alguns obstáculos comuns ao entendimento (teísmo, materialismo, niilismo) e visões comuns problemáticas em termos de aspectos sociais e políticos. Já falei sobre assuntos conexos nos seguintes textos: Respostas sobre carma, Acumulando méritos, Eternalismo, niilismo e outros extremos e O treinamento da mente e o esplendor.
Um instante de raiva destrói a positividade de ações virtuosas realizadas por milhares de vidas. O que fazer? Entregamos qualquer raiz de virtude para os seres que nos sustentaram com seu corpo – dos insetos que morreram nos campos alagados para produção de arroz até nossa mãe; de quem nos ensinou a caminhar, ler e escrever até nosso precioso professor do darma. Qualquer boa coisa que fizemos se deve, no fundo, a todos eles, por vidas incontáveis. Assim, na medida em que reconhecemos isso, nosso momento de raiva se torna incapaz de destruir algo que nunca foi nosso para começo de conversa. Caso pessoalizemos nossas conquistas – nossa tendência natural – podemos produzir uma visão inflada, que não só cria obstáculos, mas é muito mais frágil. Que a virtude desta preguiçosa reciclagem confusa do pouco de darma com que tive o imenso privilégio de entrar em contato nessa vida atinja os seres. Que todos tenham o mérito de reconhecer valor até mesmo no que não passa de um croqui infantil do reflexo fosco do lampejo momentâneo de um raio fugidio do brilho adamantino e fulgurante do método sublime e liberador do Buda. E que isso produza uma profusão de contentamento e boas condições. Que o mérito aumente, nunca se esgote, e que seja unido à sabedoria, revelando o que realmente há como perfeitamente bom.
Padma Dorje é praticante budista e autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos. Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org.