Por que budista não mata barata? Padma Dorje

Algumas pessoas pensam que budistas não matam baratas porque para nós cada um dos seres já foi nossa mãe várias vezes, ao longo de muitas vidas passadas. Aquela que tantas vezes cuidou tão bem de nós, agora caiu numa situação difícil – renasceu como um inseto nojento. Porém, embora isso seja verdade, não é bem porque todos os seres já foram nossos familiares que protegemos suas vidas – pensar assim apenas pode ajudar a aguçar nossa compaixão, caso ela esteja dormente. O fato é que qualquer ser – até mesmo uma barata – pode ser fonte de infinita alegria e mesmo de grande sabedoria, caso estejamos dispostos a encarar a realidade, abandonemos crenças arraigadas absurdas, e nos acostumemos com a receptividade natural da mente.

O sentido mais essencial da ética no budismo é não prejudicar os outros. Evidentemente, “não prejudicar” pode, a princípio, parecer algo subjetivo, valorativo – até uma ideia pessoal do que seria causar dano. Porém, o budismo possui uma fundamentação decisiva sobre o que significa sofrimento, e o que é “causar sofrimento”.

O budismo descreve dois níveis de sofrimento: um que vai da simples dor ou desagrado até o desespero convencional mais profundo, e outro que é simplesmente chamado de “sofrimento que tudo permeia”, o fato de que nossa experiência como seres temporários não tem “solução”, e todos nos encaminhamos para decrepitude e morte. Mais do que isso, para o budismo, depois que morremos, encontraremos os mesmos sofrimentos ocorrendo vez após vez, vida após vida. Não parece vantagem alguma renascer. O segundo sofrimento, portanto, inclui essa noção mais ampla, existencial. Um sofrimento que não só inclui a morte, mas também o nascimento – pelo menos o “nascimento condicionado”: isto é, o nascimento como um ser cativo nas prerrogativas das emoções aflitivas, que são a superestrutura que molda o samsara, esse ciclo de renascimentos sem sentido. Esse sofrimento que tudo permeia também aponta para o fato de que nenhuma vida possível, neste contexto, é “livre” de sofrimento.

A visão e prática budista buscam eliminar os dois tipos de sofrimento, os que se podem chamar de sofrimentos temporários e o sofrimento mais basal ou onipresente. Nosso voto como praticantes não é apenas extinguir completamente os dois tipos de sofrimento para nós mesmos, mas para todos os outros seres.

No sentido temporário, convencional, tendemos a ter muitos apegos, e sofremos com cada um deles. O apego mais forte que sentimos é ao nosso próprio corpo, e às extensões de nosso corpo, na forma de família, e até mesmo daqueles simplesmente mais parecidos conosco, ou que por acaso se encontram mais próximos, ou até mesmo aqueles que se encontram presentemente em nosso campo de visão e atenção. Sofremos mais quando alguém corta o dedo de nosso filho do que quando alguém corta o dedo de alguém desconhecido lá no Iraque. Sofremos mais quando vemos o dedo sendo cortado do que quando ouvimos uma história longínqua no tempo e no espaço de um dia um dedo ter sido cortado.

Claro, todo apego é fruto de nossa ignorância – como acreditamos que o dedo de nosso filho é permanente, quando a impermanência do dedo, ou do filho todo, se apresenta, isso nos surpreende. Esse choque de reconhecer essa possibilidade é um sofrimento adicional ao fato simples de que nosso filho foi mutilado ou morreu. A partir disso, normalmente procuramos por um culpado, achamos natural que os sofrimentos de uns nos afetem mais do que os sofrimentos de outros, e assim por diante.

E aqui temos o conceito de “compaixão”. Compaixão significa reconhecer o sofrimento do jeito que se apresenta, com certa equanimidade, isto é, sem julgar e colocar o sofrente ou a sofrência numa posição mais próxima ou afastada. Por exemplo, nós que somos adultos podemos ficar um pouco chateados caso nosso recém-adquirido sorvete caia na calçada, mas dificilmente cairemos em lágrimas por causa disso (a não ser que toda nossa semana tenha sido bem difícil, e essa seja a gota d’água… quem sabe?) – mas uma criança facilmente chora aos berros por um acidente trivial desse tipo.

Em certo sentido, o modo como lidamos com uma criança chorando por um sofrimento “bobo” tem muito a ver com como lidamos com todos os sofrimentos convencionais dos seres. Ao mesmo tempo em que entendemos aquele sofrimento da perspectiva da criança, a consolamos, e talvez até lhe compramos outro sorvete (sem dúvida alertando para que tome mais cuidado dessa vez). Também é possível que reflitamos cinicamente, pensando no câncer ou em Donald Trump, “essa criança não sabe o que espera por ela”. Não sabe o que é vida, inocente…

Isto tudo ainda é compaixão ou empatia mundanas, bastante maculadas por nossas percepções arbitrárias, e pelo fato de que, se somos criteriosos e cuidadosos, mas não temos o darma, não vemos realmente solução. Para transformar isso em compaixão no sentido budista, é preciso adicionar o elemento do reconhecimento do sofrimento no sentido mais amplo – e mais do que isto, eliminar completamente a visão cínica de que o sofrimento é uma realidade necessária. Estas duas características – o sentido mais profundo de sofrimento, e a noção de que o sofrimento pode ser totalmente superado – precisam estar presentes. O sentido de tomar refúgio no Buda é acreditar que é possível superar completamente os dois tipos de sofrimento. Caso a pessoa não reconheça os dois tipos (e sua diferença), e não reconheça também que eles não são necessários – e que é possível superá-los completamente – essa pessoa efetivamente não reconhece as Quatro Nobres Verdades e não podemos dizer que possa praticar o que o budismo ensina – o budismo inteiro não passa de um treinamento da mente em termos desse reconhecimento.

Para a maioria de nós ainda aperfeiçoando o refúgio – tentando ser praticantes budistas – é preciso não só refinar o entendimento do sofrimento, mas também das causas do sofrimento, e reconhecer que é exatamente porque o sofrimento – mesmo o sofrimento mais amplo, que tudo permeia – tem causas, que essas causas podem ser eliminadas. É pura lógica: caso houvesse algo que realmente existisse de forma independente, sem causas, então seria bem possível que o sofrimento fosse uma dessas coisas, e não tivesse solução. Porém, é bastante difícil (na visão budista impossível) encontrar alguma coisa neste mundo que não tenha causas. Quando chegamos à conclusão de que coisas sem causas são impossíveis, podemos regozijar no fato de que o sofrimento é uma dessas coisas com causa, e que, portanto, ele não é necessário.

Este é um dos pontos mais cruciais e menos compreendidos na integração dos ensinamentos budistas com a modernidade. Algumas vezes foca-se numa ideia de budismo em que o sofrimento é inescapável – porque afinal de contas o budismo ensina que devemos entender bem todo o sofrimento, e como ele efetivamente permeia tudo, até mesmo as “melhores” coisas do mundo. Porém, se esquece de ensinar que essa coisa que examinamos cuidadosamente não é natural, não é algo que existe sem causas, por si só; e que embora ela pareça necessária, efetivamente não é este o caso. É nossa realidade presente porque sustentamos essas causas, porque acreditamos em certas coisas absurdas, e operamos por hábito com base nessas crenças – mas nada disso precisa ser assim. Se não houvesse como eliminar completamente o sofrimento, seria um absurdo adicionar mais essa coisa chamada “budismo” só para nos fazer ficar ainda mais chateados com a realidade! A prática vem da ideia de que é sim possível superar totalmente o sofrimento; porém, é primeiro importante ver onde ele está, o que ele é, e como ele é bem mais penetrante em todas as coisas do que normalmente pensamos. Caso contrário, seguiremos alienados, buscando as causas de certos sofrimentos como se fossem felicidade. E nesse caso, o sofrimento realmente não tem solução.

Caso nos esforcemos para continuar sofrendo, procurando felicidade onde não há felicidade, evidentemente que seguiremos produzindo causas de sofrimento, estejamos cientes disso ou não. Do ponto de vista das causas do sofrimento, na lógica do samsara, o samsara não tem solução alguma.

E não só o sofrimento em geral tem uma causa, cada um dos sofrimentos têm uma causa particular. Os sofrimentos convencionais, segundo o budismo, têm como causa mais essencial o fato de nós mesmos termos causado sofrimento a outros seres. Isso não exime alguém de ser o aparente causador de nosso sofrimento atual; apenas que o fato de estarmos na posição de vítima, e termos essa fragilidade, é principalmente devido ao que fizemos no passado. Mais do que um causador, esse agente “negativo” neste momento é um catalisador das fragilidades que criamos com nossas próprias ações passadas. Caso não tivéssemos essas fragilidades, ele não conseguiria nos atingir, ou não estaríamos numa circunstância em que ele pode nos atingir. Ele é a causa coadjuvante, não a causa principal – o que é bem o contrário do que pensamos normalmente.

E é aqui que o budismo não tem uma visão pequena no sentido das vítimas de hoje serem culpadas de algum modo: no grosso da coisa, pensando em trilhões de vidas, todos somos igualmente vítimas e culpados. O objetivo de condenar alguém pela via legal e tolher sua liberdade não deve, na visão budista, ser revanchismo, mas em primeiro lugar proteger os outros de possíveis ações semelhantes, e, se possível, dar uma oportunidade para o arrependimento e a reforma.

Desejar ou ficar feliz com o sofrimento de alguém que causou sofrimento, para o budismo, só gera mais sofrimento para você mesmo – e não faz nada pela pessoa que causou o sofrimento. Em nossa cultura, porém, alimentamos cada vez mais a ideia de que o outro é um ser terrível, e que “merece” todo sofrimento do mundo simplesmente por ter causado algum sofrimento temporário a alguém – por agudo e terrível que esse sofrimento pareça. Na visão budista, esse ser inexoravelmente vai sofrer por ter causado sofrimento, e isso não deveria ser motivo de regozijo por qualquer pessoa. O fato dele causar sofrimento para os outros é extremamente infeliz, e portanto, maior motivo ainda para compaixão.

Um budista que seja vingativo, ou que deseje mal para um agressor, ou regozije com isso, está sendo ignorante de sua própria tradição, e do que é bom para ele mesmo, e do que se coaduna com a realidade. Na verdade, até mesmo o cristianismo prega coisa semelhante, mas nossa cultura parece não dar mais bola a isso.

Se o budista tem compaixão pela vítima, ele tem ainda mais compaixão pelo perpetrador da ação negativa. Um dos seres está sofrendo agora, o outro vai sofrer depois. Aquele que já está vivenciando o sofrimento, em certo sentido, está até mesmo em certa vantagem – pelo menos ele pode estar encerrando aquele tipo de experiência. O outro não tem essa chance.

No sentido profundo, não há seres “separados”, essa é a ignorância básica. O fato do dedo cortado do iraquiano doer menos em nós do que o dedo cortado do brasileiro, ou da pessoa conhecida, ou de nosso filho, ou nosso próprio dedo, não se deve a nada verdadeiro. Não se deve a uma característica das coisas “como elas são”, se deve sim ao fato de que somos ignorantes, isto é, termos certos hábitos cognitivos que projetam essa aparente separação. Quando vemos uma pessoa regozijando com o sofrimento dos inocentes, pensamos, “puxa, essa pessoa é um monstro” – e a grande maioria das pessoas concordará com isso, regozijar com o sofrimento de um inocente é abjeto. Quando, porém, vemos uma pessoa regozijando com o sofrimento de um “culpado”, é possível que encontremos algumas pessoas dizendo “essa gente que não acredita em direitos humanos é realmente torpe”. Agora, podemos de fato classificar também esse que regozija como “ralé” ou “white trash”, ou algo semelhante, e ele também será um objeto de compaixão, junto com aquele que o condena.

Caso a pessoa seja muito cordata, ela sentirá compaixão daqueles que não têm compaixão, e pensará “puxa, essa gente não tem educação, não teve oportunidade de pensar melhor”. De fato, quem está mais próximo da realidade de que a separação entre os seres é uma artificialidade, é uma pessoa cheia de mérito, é um ser mais próximo da “nobreza de espírito”. Quem acredita muito fortemente em inimigos e na separação dos seres torna-se o objeto principal de compaixão – é este o ser que está mais distante do conhecimento das causas e condições do sofrimento, e, portanto, de poder evitá-lo.

Todos aí são objetos de compaixão, no fim das contas. Vítimas, agressores, julgadores e condenados.

É assim que os bodisatvas olham para os seres que veem distinções entre próximos e distantes, semelhantes e diferentes – eles têm compaixão por esses seres pouco sofisticados, imaturos.

Os bodisatvas reconhecem que essa falta de visão faz parte do sofrimento que tudo permeia. Eles sentem compaixão pelos seres que não reconhecem as verdadeiras causas do sofrimento, e mais do que isso, os que não reconhecem que o sofrimento tem causas. Estes são o objeto de compaixão dos budas e bodisatvas: os seres que têm inimigos, que separam os seres, e que não conhecem as causas do sofrimento, e assim se engajam em ações que trazem sofrimentos para eles e para outros seres. Ou que regozijam no sofrimento alheio, seja de “vítimas” ou de “algozes”.

Entre as ações negativas que causam sofrimento aos outros, a mais negativa de todas é tirar a vida. Isso se deve porque mesmo o mais ignorante dos seres sencientes tem pelo menos algum resquício de compaixão, que – mesmo sendo muito pequena – se manifesta na forma de apego por, pelo menos, o próprio corpo.

Até mesmo bactérias processam o que encontram na forma de alimento, e tentam evitar toxinas.

Claro, podemos aqui objetar que um suicida, por exemplo, não teria esse tipo de apego. Porém, na verdade o que o suicida tem é um apego a um conceito que imputa sobre si mesmo, e que se torna maior que o apego ao próprio corpo. Assim ele acredita que, de acordo com a visão materialista predominante, destruir o corpo vai fazer com que o sofrimento desapareça junto com ele. Na visão budista, não é assim, e esse apego a um conceito imputado de “eu” – uma mera crença – morrerá junto com o corpo, enquanto que o sofrimento efetivamente persiste na forma de apego a um eu na forma de hábito, que é o que vai renascer, em condições bem piores, aliás, infelizmente, devido a ter cometido tamanha ação negativa. E o sofrimento não se dá apenas para a pessoa que comete o suicídio em seus renascimentos futuros infelizes, ao longo de várias vidas, mas para todas as pessoas que ele afetou com seu ato. Então, trata-se de outro exemplo de um ser que, não conhecendo as causas do fim do sofrimento, causa mais sofrimento ainda com suas ações. Algumas pessoas podem ler isso como uma condenação ao suicida, mas isso é porque temos esse hábito de condenação: isso é para ser lido como algo que desperta compaixão, exatamente da mesma forma que você sente compaixão daquelas crianças que uma vez brincaram com material radioativo em Goiânia. Elas estavam fazendo algo que não consideravam seria impactante como foi. Ninguém as pensaria culpadas (os culpados legais aqui foram os que despejaram um equipamento de radioterapia no lixão) – mas reconhecemos a magnitude da tragédia de uma forma que elas nunca poderiam imaginar. É assim com o suicida também, ele certamente não sabe que está causando muito mais sofrimento. E é assim, que, de forma geral, ainda que não tão extrema, a maioria das pessoas busca o fim do sofrimento ou a felicidade em coisas que não vão prover estas coisas.

De forma geral, mesmo seres que não manifestam apego a conceitos imputados de “eu” e outras crenças errôneas tais como o materialismo, como digamos os animais, mesmo assim têm um forte hábito de eu, que se manifesta na proteção do próprio corpo, da própria vida. Em outras palavras, nenhum ser deseja sofrer. (Outra objeção comum que surge quando se fala isso é a do masoquista. No entanto, de forma semelhante ao exemplo dado acima do suicida, o masoquista também apenas está apenas buscando felicidade no lugar errado, do jeito errado. Como a grande maioria dos seres faz, o budismo reconhece.)

Cada um dos seres busca, como nós, evitar sofrer. Há seres, no entanto, que são difíceis de olhar positivamente.

A sua manifestação em si nos causa inquietação e nojo.

Se podemos chegar a conceber a felicidade desses seres, dificilmente a desejamos. Queremos mais é nem vê-los.  

A não ser que você seja um pesquisador examinando o comportamento das baratas, é bem difícil que não sinta nojo delas. Caso, porém, converse com pesquisadores que trabalham com elas, verá que a proximidade em geral já lhes mudou o olhar. Estas pessoas até podem manter certo nojo, mas também sem dúvida encontram admiração, e podem até mesmo começar a gostar de seus objetos de estudo. Isso é tão natural. Caso nos aproximemos dos seres, eles se revelam objetos de simpatia, de prática – mesmo os piores deles.

Em outras palavras, é possível se acostumar até mesmo com baratas. Mesmo não budistas, não praticantes, pessoas que não estão deliberadamente tentando isso, podem se tornar “amigos” desses seres abomináveis.

Porém, para a maioria de nós, avistar qualquer inseto desses é perder o controle da mente. Se voar, então… Buda nos acuda!

Alguns caem em medo e nojo irracionais, enquanto outros se tornam caçadores, buscando o primeiro chinelo à vista.

Para o praticante, no entanto, deparar-se com a experiência curiosa de permitir que a barata penetre a natureza búdica em nosso coração pode ser o começo de uma prática profunda. Abre-se aí um campo de mérito. Podemos começar a pensar em cuidar bem delas, como se fossem nossas mães!

Em primeiro lugar, é bom deixar claro que budistas devem ser pessoas práticas. Caso a vigilância sanitária imponha a você que seu restaurante precisa matar pragas, você não tem muita escolha, mas seguir a lei – e então rezar muito pelos animais. O mesmo vale para vermífugos que você e seus animais de estimação precisem tomar. (E antibióticos – mesmo que seja bem duvidoso o status das bactérias, e outros seres sem sistema nervoso, como sencientes.) Não é possível viver nesse mundo sem matar alguns seres vez que outra: a ideia aqui é matar o mínimo, sempre com essa consciência de que não estamos separados, e nunca por nojo, raiva ou medo. Caso seja preciso, para salvar outras vidas ou possibilitar nossa prática, devemos cuidadosamente pesar nossos impactos e agir como for preciso.

Porém, por experiência pessoal, sei que caso a infestação não seja realmente enorme, é possível retirar até cerca de 100 baratas de uma residência, e acabar com a infestação com poucos danos colaterais. (Algumas baratas você inevitavelmente acaba matando ou aleijando na hora da captura). É preciso apenas paciência, algumas armadilhas, e acesso a uma área verde bastante distante de moradias para levar as bichas. Pode ser relativamente trabalhoso, mas pode ser encarado como prática espiritual, e como os pesquisadores, você pode até acabar com menos medo ou nojo de baratas – pessoalmente foi também essa minha experiência.

Elas podem talvez até nos ensinar algo.

Uma ocasião alguns anos atrás fui convidado para falar num centro espiritualista de uma tradição europeia, com um pouco mais de 100 anos de idade, que prefiro não nomear. Eles pediram ao centro budista em que eu praticava para enviar alguém para falar sobre budismo, e na indisponibilidade de alguém qualificado, acabaram mandando eu mesmo.

A reunião tinha umas 20 pessoas, e meu plano era falar de uma forma geral sobre ética, cultivo e fruição – porém nunca saímos do primeiro preceito, que diz que matar é uma desvirtude. A pessoa responsável pela filial daquela organização supostamente espiritual, respeitosa e interessada no ensinamento do Buda, se sentia plenamente autorizada a matar insetos. Afinal de contas, ela era um ser humano, e, portanto, naturalmente superior a essas formas inferiores. Talvez ela – ao matar – até estivesse fazendo um favor para a barata, mandando o bicho para qualquer outro renascimento. Nada pode ser pior que barata, não é mesmo? (A resposta budista é, caso você não saiba, que existem muitos, mas muitos mesmo, renascimentos bem piores do que como barata!)

Essa é nossa visão não espiritual, não educada, convencional. Não estamos nem aí para os sentimentos da barata, e achamos risível sequer considerá-los. E a extrapolação disso é a exploração descontrolada do meio ambiente, bem como até mesmo a propaganda dos maiores genocídios do séc. XX.

Também, a partir do momento em que abrimos a porta para a desconsideração e eliminação de “inferiores”, são apenas uns poucos passos mais para considerar outros seres humanos como inferiores. A propaganda nazista, de fato, vez após vez tratava os judeus como uma praga a ser eliminada. E não foi só por motivos práticos que usaram um gás em seu extermínio. Havia uma visão pública cuidadosamente cultivada para transformar o judeu, a ideia do judeu, – como no episódio Men Against Fire, da série Black Mirror – num inseto nojento a ser exterminado.

A resposta convencional a isto é dizer que a vida de um ser humano, de qualquer tipo, não é a vida de um inseto. E é evidente que comparar qualquer ser humano com um inseto é uma coisa kafkaesca, absurda, abominável. Mesmo na visão do darma, é claro que matamos até mesmo um mamífero – digamos um tigre – para preservar uma vida humana, e nesse caso trata-se de uma ação virtuosa – proteger uma vida. Se um inseto – ou uma infestação – está diretamente ameaçando a vida de outro animal ou ser humano, é compassivo matar. Porém, caso possamos evitar matar – nos esteja disponível uma arma com tranquilizante, por exemplo, ou a captura e soltura num espaço neutro –, e caso a questão não seja muito urgente, é meritório preservar qualquer vida, por menor que ela seja. “Meritório” significa que isso é causa verdadeira de felicidade para quem salva a vida, e uma causa particularmente propícia à prática do darma se tornar toda ela mais fácil.

A razão pela qual uma vida aqui vale mais do que outra é o tipo de benefício que essa vida pode trazer. A vida de um parasita não lhe permite muita outra coisa do que prejudicar o hospedeiro. Então, nesse caso é adequado matar por compaixão. Normalmente os seres humanos podem ser capazes de virtude, e até mesmo de eventualmente se engajarem num treinamento sistemático para tornar a virtude mais natural – que é a prática sistemática de uma religião ou sistema filosófico positivo – e mais do que isso, podem vir a reconhecer a natureza das coisas e repousar nesse entendimento, trazendo extremo benefício aos outros com seu exemplo. Assim, de modo geral, uma vida humana vale mais do que as outras vidas – mas isso não quer dizer que só porque eu não vou com a cara da barata, que não está me fazendo nada naquele momento, eu tenho o direito e a autoridade moral de eliminá-la.

De fato, fazer isso é buscar o fim de um sofrimento (insatisfação com a cara da barata) com uma causa (matar) que não vai produzir felicidade. Na verdade, o que matar a barata faz é reforçar nosso problema com as baratas. É transformar ele num hábito cada vez mais forte e arraigado, de forma que até publicitários possam vir, trocar o objeto, e usar nosso nojo para cometer genocídio. Banalidade do mal? Começa em achar normal matar insetos.

O fato é que há seres humanos que não se importam de matar dezenas de ostras para fazer uma refeição, ou mesmo dezenas de mamíferos para fazer um casaco, vender e comprar um videogame. A vida dos outros seres não se equipara a uma vida humana, mas provavelmente vale mais do que algumas moedas ou alguns momentos de “diversão”.

Na perspectiva de não haver separação real entre os seres, precisamos realmente falar sobre o especismo. Essa arrogância não é só ruim para o mundo, mas para a própria mente, particularmente se a pessoa se pensa em ter um caminho espiritual.

Enquanto que os animais de estimação são defendidos, e os animais de abate e de valor para indústrias são também alvo de ativismo protetor, o único inseto que ganha alguma boa vontade humana é a abelha. Ocasionalmente os insetos são pensados como agentes biológicos, elementos de engenharia ambiental. Porém, esta perspectiva utilitarista também não é bem a visão do darma.

No entanto, nos relacionamos diretamente com insetos o tempo todo!

Sabemos que eles sentem dor, sabemos que eles tem até mesmo comportamento e personalidade (existe pesquisa nessa área – cada barata é um indivíduo, não é um ser geral clonado, que age sempre igual).

Dentro do fato de que o sofrimento permeia tudo (ainda que não seja natural, que tenha uma causa, etc.) está o fato de que quase tudo que comemos envolve morte, e isto não se resume apenas à carne de animais. Quando campos são alagados para o cultivo de arroz – por mais que não sejam usados agrotóxicos – incontáveis insetos são afogados. Isso não serve como desculpa para “então tudo bem comer carne, já que não há saída”, e tampouco serve como desculpa para “bom, já que tudo tem uma implicação de sofrimento por trás, melhor esquecer e tomar uma cerveja e relaxar”.

A consciência aguda do impacto de tudo que consumimos – dos insetos, passando pela exploração dos trabalhadores, as negociatas nem sempre éticas de transportadores e vendedores, até nossa boca ou nosso uso – é essencial. Faz parte daquele ponto essencial que diz respeito a “entender o sofrimento”, reconhecer quão vasto ele é, por onde ele se infiltra, e como ele é inescapável dentro do que podemos chamar de “suas próprias regras”.

Porém, mesmo nessa perspectiva limitada, é claro, onde quer que possamos diminuir o impacto, é melhor diminuí-lo. A prática neste nível é de redução de danos.

Em particular, não devemos nos considerar arrogantemente o ápice, merecedores irrevogáveis dos frutos de toda essa pilha enorme de sofrimento – que nem bem reconhecemos, e que é ativamente ocultada de nós por uma imensa indústria e por uma ideologia cuidadosamente desenhada. É preciso transpassar essa doutrinação e a visão convencional e focar agudamente esse reconhecimento, e entender a responsabilidade que é a prática espiritual. Estamos praticando para liberar todos esses seres que deram suas vidas para nosso sustento, e para que suas vidas não tenham sido em vão e sem sentido. Devemos transformar essa percepção aguda num senso de urgência para nossa prática. Esse é um dos sentidos para olhar agudamente para os sofrimentos do mundo.

Esta é a perspectiva espiritual: o Buda é aquela natureza – presente em todos os seres – que revelada é a expressão dos méritos de todos os seres, como que condensadas num ponto. Ele é, em certo sentido, o humilde servo de todos os seres. Porém, não no sentido que ele obedeça aos impulsos de todos esses seres, ou realize seus desejos, mas no sentido que ele – nossa própria natureza mais essencial – é o resultado da purificação total dessas atividades de matar, comer, reproduzir, nascer, morrer. Caso nos alienemos da perspectiva do Buda, esse jogo segue indefinidamente, com os dois tipos de sofrimento latejando explicitamente, surgindo por vezes aguda e transitoriamente, e em outros momentos nos soterrando totalmente, nos deixando atropelados sem chance alguma de saber o que aconteceu.

Quando nos descobrimos soterrados em nossos últimos momentos, considerando como nossas vidas foram aleatórias e mal aproveitadas, o que cai sobre nós são esses imensos recursos inestimáveis a que não demos valor. Todos estes seres amigos que não olhamos com o olho do darma, que não os direcionamos para o sentido último, e o fizemos assim apenas porque os olhamos como quem olha convencionalmente para baratas.

Eles são o grande peso e o motivo do desespero – todos aqueles que prejudicamos, ou que ignoramos ou pelos quais agimos de forma neutra – e até mesmo os que beneficiamos sem qualquer visão profunda.

Todos estes seres surgem para nos “torturar” com a perspectiva em que o sofrimento é inescapável, já que eles nos levam justamente à visão convencional que projetamos sobre eles. Não são eles os torturadores, mas nossas repetidas ações de indiferença, aversão e cobiça perpetradas contra eles.

Agora mesmo já podemos vislumbrar em nossas depressões sazonais e tristezas cotidianas, ou quando a morte de alguém próximo por acaso e temporariamente nos lembra a seriedade das coisas, ou quando o próprio mundo parece andar tão errado, e nada de bom parece nos esperar – não só como indivíduos, ou país, mas como espécie. Esse lodaçal sem fim, e as tentativas de filosofia de almanaque com que tentamos justificá-lo e abafá-lo, isto é o que chamamos de “samsara”.

Samsara não tem solução. A lógica de samsara é inerentemente furada. Ainda assim, nosso hábito e covardia nos faz defender visões e justificativas mesquinhas e convencionais.

Esse sofrimento convencional todo precisa ganhar primeiro a sofisticação do entendimento do sofrimento onipresente, intrínseco a todas as coisas. Não precisamos olhar longe, uma só barata pode claramente nos levar a isso, se prestamos atenção. Caso olhemos com o olho da compaixão, o reconhecimento da vida e das tribulações de barata é o próprio Buda vindo dar um ensinamento. Ela surge, anda por aí fugindo e se achando esperta, procurando sexo e comendo lixo, resiste alguns golpes, e enfim, inexoravelmente, se torna ela mesmo alimento. Kafka é mais profundo do que parece. Todo e qualquer ser aponta incessante e diretamente as três realidades: sofrimento convencional, sofrimento onipresente, e o fato de que todo sofrimento tem causas. A partir daí, eliminar a causa, e buscar um caminho para isso se torna a única coisa óbvia. A barata pode não levar você aos estudos e práticas budistas – mas se você já está nos estudos e práticas budistas, a barata pode revelar o sentido desses textos. Ela também é o guru.

Depois que estamos dispostos a reconhecer isto, e temos a habilidade de ler isto ou aquilo, a capacidade e a disposição de seguir e ouvir um professor, e podemos nos dispor num treinamento sistemático, somos capazes de viver de acordo com valores que uma barata – ou a maioria das pessoas – não concebe. Existe uma diferença, e apenas essa diferença pode nos ajudar a dar sentido para a vida de cada ser no mundo, de cada “barata” com que já nos deparamos, ou mesmo que já existiu, e que virá a existir. Esse conhecimento ilumina toda a esfera de experiência, sem deixar um só canto escuro.

Essa é nossa responsabilidade. E a outra opção é evitar olhar o sofrimento no sentido mais profundo, e as causas dos vários sofrimentos. Até ser atropelado, de novo e de novo. Ou levar uma chinelada, vez após vez, e viver com medo da luz. O fato de que receberemos chineladas por isso ou aquilo é inexorável, mas o fato de que poderemos dar sentido a nossa experiência, e à dos outros, isso depende de assumirmos as rédeas e efetuarmos o treinamento da mente. A barata revela todas as qualidades do caminho: conhecer um ser é liberar a todos.

Neste momento em que oscilamos entre achar que o budismo é mais uma coisa bonita que alguém ensinou, algo que possui umas ideias exóticas sobre não matar baratas, e que não conseguimos entender totalmente, podemos tentar repousar a mente nas qualidades do Buda. O Buda vê as coisas como elas realmente são, sem separação, e assim sua compaixão é infinita. “Buda” significa ver assim, não significa “uma pessoa que viu assim uma vez na história”. Caso tenhamos um instante de regozijo com a desconfiança breve de que isso é possível, o caminho budista também se torna possível. Esse não é um caminho livre de baratas, mas é livre de mesquinhez, parcialidade, medo e nojo. É um caminho livre de arrogância. É um caminho alegre. Mais que alegre. Nele, até mesmo preservar a vida de um pequeno inseto se revela mais prazeroso do que satisfazer um milhão de desejos egoístas.

eduardo-pinheiro-1Padma Dorje é praticante budista e autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos.  Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org.

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