“Antes que possamos estender nossa compaixão aos outros, temos que primeiro estendê-la a nós mesmos. Como fazemos isso ? Temos que olhar para a nossa mente e reconhecer como as nossas expressões neuróticas – os nossos pensamentos confusos e emoções perturbadoras – estão na verdade, ajudando-nos a acordar. Nossa agressão pode nos ajudar a desenvolver clareza e paciência. Nossa paixão pode nos ajudar a abandonar apegos e ser mais generosos. Basicamente, uma vez que reconhecemos que essa mesma mente é a mente da compaixão e do
despertar, podemos valorizá-la e assim, confiar em nossa capacidade de trabalhar com ela. Ela é, no fim das contas, uma boa mente, uma mente que nos levará à iluminação. Quando compreendemos isso, começamos a abandonar nossa atitude anterior, de repulsa às nossas emoções.”
Dzogchen Ponlop Rinpoche – Trecho do livro “Buda Rebelde”
Já se tornou quase banal em nossa cultura o fato de que precisamos ter auto-estima para sermos felizes e saudáveis. Psicólogos têm conduzido centenas de estudos divulgando os benefícios da auto-estima. Os professores são incentivados a dar estrelas de ouro a todos os alunos para que cada um possa se sentir orgulhoso e especial. Somos instruídos a pensar positivamente sobre nós mesmos a todo o custo, como no livro de afirmações positivas de Stuart Smalleys: “Eu sou bom o suficiente, esperto o suficiente e, caramba, as pessoas gostam de mim!” Mas como a pesquisa está começando a demonstrar agora, a necessidade de continuamente nos avaliarmos de forma positiva tem um preço alto.
O principal problema é que para se ter uma autoestima elevada é preciso sentir-se especial e acima da média. Ser chamado de ”mediano” é considerado um insulto em nossa cultura. (O que achou do meu desempenho ontem à noite? Foi mediano. Opa!) Claro, obviamente é impossível que cada ser humano no planeta seja acima da média, ao mesmo tempo. Então, desenvolvemos o que é conhecido como um “viés de auto-aprimoramento”, que se refere à tendência de nos acharmos superiores aos outros em uma variedade de dimensões. Estudos têm mostrado que a maioria das pessoas se acha mais simpática, mais popular, mais engraçada, mais agradável, mais confiável, mais sábia e mais inteligente do que os outros. Ironicamente, a maioria das pessoas também acha que está acima da média na capacidade de se ver objetivamente! O resultado de se usar esses óculos cor-de-rosa não é tão bonito.
Essa necessidade de se sentir superior resulta em um processo de comparação social, no qual continuamente tentamos nos sobressair e desvalorizar os outros (pense no filme Meninas Malvadas e você vai entender o que eu estou falando). As pessoas que praticam bullying geralmente têm uma autoestima elevada, por exemplo, já que implicar com pessoas mais fracas é uma maneira fácil de aumentar a autoestima.
Uma das consequências mais insidiosas do movimento da autoestima nas últimas décadas é a epidemia de narcisismo. Jean Twenge, autora de “Generation Me” (Geração Eu), analisou os níveis de narcisismo de mais de 15.000 universitários dos Estados Unidos, entre 1987 e 2006. Durante esse período de 20 anos, o nível de narcisismo foi às alturas, com 65 por cento dos estudantes de hoje superando as gerações anteriores em narcisismo. Não coincidentemente, a média dos níveis de autoestima dos estudantes aumentou em uma proporção ainda maior no mesmo período.
Ao mesmo tempo em que tentamos nos ver como melhores do que os outros, tendemos também a nos “estripar”com autocrítica, quando não alcançamos altos padrões. Logo que nossos sentimentos de superioridade escorregam– como inevitavelmente acontece– nosso senso de dignidade cai vertiginosamente. Nós balançamos descontroladamente entre autoestima excessivamente inflada e excessivamente esmorecida, uma montanha russa emocional, cujo resultado final é, muitas vezes, insegurança, ansiedade e depressão.
Então, qual é a alternativa? Que tal nos sentirmos bem com nós mesmos, sem a necessidade de sermos melhores do que outros, caindo assim na armadilha do narcisismo/ auto-reprovação? Uma resposta seria desenvolver a autocompaixão.
Autocompaixão envolve sermos gentis com nós mesmos, quando a vida dá errado ou notamos algo sobre nós que não gostamos, em vez de sermos frios ou severamente autocríticos. Ela reconhece que a condição humana é imperfeita, assim, nos sentimos conectados aos outros quando falhamos ou sofremos, em vez de nos sentirmos separados ou isolados. Envolve também a conscientização– o reconhecimento e a aceitação imparcial das emoções dolorosas ao passo que surgem no momento atual. Ao invés de suprimir nossa dor, ou então torná-la um drama pessoal exagerado, vemos a nós mesmos e a nossa situação claramente.
Autocompaixão não exige que nos avaliemos positivamente ou que nos vejamos como melhores do que outros. Pelo contrário, as emoções positivas da autocompaixão surgem exatamente quando a autoestima cai; Quando não atendemos a nossas expectativas ou falhamos de alguma forma. Isto significa que o senso de autovalorização intrínseco inerente à autocompaixão é altamente estável. Está constantemente disponível para nos fornecer cuidados e apoio em momentos de necessidade. Minha pesquisa e a dos meus colegas tem mostrado que a autocompaixão oferece os mesmos benefícios que a autoestima elevada, tais como menos ansiedade e depressão e maior felicidade. No entanto, não está associada com as desvantagens da autoestima como narcisismo, comparação social ou defesa do ego.
Ao invés de perseguir eternamente a autoestima como se fosse o pote de ouro no fim do arco-íris, portanto, eu diria que se deve encorajar o desenvolvimento de autocompaixão. Dessa forma, se estivermos no topo do mundo ou no fundo do poço, podemos nos envolver com um sentido uma bondade, conectividade e equilíbrio emocional. Nós podemos fornecer a segurança emocional necessária para vermos a nós mesmos com clareza e nos certificarmos de fazer as mudanças necessárias para resolver nosso sofrimento. Podemos aprender a nos sentir bem, não porque somos especiais e acima da média, mas porque somos seres humanos intrinsecamente dignos de respeito.
Por Kristin Neff. Psicóloga, fez doutorado em desenvolvimento moral pela Universidade da California e pós-doutorado na Universidade de Denver. Ensina no departamento de Psicologia Educacional na Universidade do Texas. A história de seu filho autista foi registrada no documentário “The horse boy”. Kristin, recentemente deu uma entrevista a Folha que reforça o que foi dito acima, confira abaixo:
Folha – Como uma autoestima elevada pode fazer mal?
Kristin Neff – Não é o fato de ter uma autoestima elevada que é prejudicial, mas o que se faz para consegui-la ou mantê-la.
Você precisa ser o número um, precisa se sentir especial e melhor do que os outros. Se, por exemplo, a sua performance no trabalho está abaixo da média, você se sente abaixo da média.
Dá para manter a autoestima sempre em alta?
Não, isso não é sustentável. Para manter a autoestima em alta precisamos nos sentir melhor do que somos e achar que os outros são piores do que são. Só que não dá para ser melhor do que os outros o tempo todo. Você se sente bem quando recebe aquela promoção no trabalho, mas também se sente péssimo se não recebe. É óbvio que essa instabilidade faz mal à saúde. Pode levar à depressão e à ansiedade. Não dá para confiar na autoestima porque ela logo abandona você.
Por que a busca pela boa autoavaliação é tão prejudicial?
Porque acirra a rivalidade e pode levar à agressividade. Há quem sustente que muitas crianças praticam bullying porque têm baixa autoestima. Na verdade, elas obtêm sua autoestima colocando os outros para baixo, provocando, batendo. Assim se sentem melhores do que os outros. Pessoas preconceituosas usam critérios como raça ou religião para se dizerem melhores em relação aos que integram os outros grupos. O preconceito vem desse sentimento de que o grupo ao qual pertenço é melhor do que o outro e de que tenho que me sentir melhor do que o outro.
Como a cultura incentiva essa busca de alta autoestima?
Desde cedo, com os pais, com a escola. Numa sociedade competitiva, você dirá às crianças que é preciso ser sempre o primeiro.
Elas vão ficar se comparando o tempo todo, porque têm sido educadas na ideia de que devem sempre se sentir especiais e ganhar prêmios por serem as melhores. Todas essas formas de premiação que existem nas escolas incentivam a competição.
Qual o resultado disso?
Hoje, temos os maiores índices de narcisismo registrados graças a esse tipo de educação. É uma epidemia. Sou professora universitária há 12 anos e já vejo uma mudança nos meus alunos. Eles cada vez mais se sentem incomodados se tiram um B como nota. Meu filho ouve muito rap e eu noto essas letras lotadas de narcisismo.
As pessoas são apegadas à ideia da autoestima?
Sim. Atingimos o ápice da raiva quando alguém diz algo que, de alguma forma, mexe com o nosso ego, aquilo que, se aceitássemos, colocaria em risco nossa autoestima. Nos defendemos o tempo todo para protegê-la.
Mas não é certo tentar gostar de si mesmo?
Está certo gostar de si mesmo. O problema começa quando as pessoas se perguntam por que elas devem gostar de si mesmas. Há duas formas de se responder a essa pergunta: “Eu gosto de mim mesma porque sou um ser humano, tenho valor e sentimentos e mereço atenção”, e outra forma é dizer “Eu gosto de mim mesma porque sou melhor do que as outras pessoas”. Na cultura ocidental, tendemos a escolher a segunda resposta.
Mas não dá para viver sem autoestima, certo?
No mundo animal, há uma hierarquia social que serve para manter a coesão do grupo. Todos aspiram pelo posto do macho alfa.
Queremos estar no topo e precisamos acreditar que temos as condições para isso. Portanto, o desejo por uma autoestima elevada é natural. Mas ela não é o único sistema natural. Os mamíferos têm a capacidade de transmitir e receber carinho. Nascemos imaturos e demoramos para nos desenvolver. O nosso corpo pede carinho e temos como resposta um aumento de ocitocina [hormônio ligado à sensação de bem-estar] e diminuição dos níveis de cortisol [hormônio liberado em situações de estresse]. Quando dirigimos esse conforto físico e psicológico a nós mesmos estamos praticando autocompaixão.
A autocompaixão é a alternativa que você propõe?
Sim. Se a autoestima implica você se julgar positivamente, a autocompaixão não envolve julgamento. Diz respeito a responder com carinho para si mesmo nos momentos de sofrimento. É como a compaixão: vejo que alguém está sofrendo e me esforço para ajudar a pessoa. Tanto a autocompaixão quanto a autoestima têm os mesmos benefícios, mas a primeira não tem os prejuízos da segunda. Se a autoestima te abandona, te ignora ou te critica quando algo ruim acontece, a autocompaixão te dá apoio quando você sofre, sente medo, é rejeitado ou falha.
Como dá para praticar essa autocompaixão?
Você tem que começar notando como trata a si mesmo. Muitas pessoas são tão autocríticas que nem notam. Fiz experimentos mandando as pessoas anotarem o que diziam a si mesmas em momentos em que enfrentavam problemas -uma calça que não servia, um trabalho que não dava certo… Elas tinham um choque quando viam o que haviam escrito. Percebiam o quanto estavam sendo duras. Muitos dizem que não conseguem ser compassivos consigo mesmos, mas eu digo que isso é possível: você tem feito isso a vida toda, com amigos, com parentes. Sabemos como fazer com os outros, precisamos fazer o mesmo conosco. Requer a chamada “mindfulness”, a atenção plena ao próprio sofrimento.
O que a psicologia pode aprender com o budismo?
O budismo está transformando a psicologia, é como uma terceira via da psicologia. E a compaixão está no coração do budismo.
Significa ter um coração aberto para si e para os outros. O cristianismo ensina a ter compaixão pelos outros, mas não ensina nada sobre autocompaixão. No budismo, isso não faz sentido. Não é lógico separar você dos outros, todos fazemos parte de um mesmo sistema.
“A única razão pela qual não abrimos nossos corações e mentes para outras pessoas é que eles provocam confusão em nós, e não nos sentimos corajosos o suficiente ou sãos o suficiente para lidar com eles. Na medida em que nós olhamos com clareza e compaixão para nós mesmos, nos sentimos confiantes e destemidos ao olhar nos olhos de outra pessoa. “~ Pema Chödrön