Talvez o exercício mais profundo no Budismo seja a prática de Gratidão. Imagine passar um dia inteiro agradecendo cada pessoa que encontra e cada acontecimento! Obrigada, obrigada, obrigada. Saio da cama e vejo que está chovendo lá fora – obrigada. Encontro o meu marido, sonolento, com a barba por fazer – obrigada. Preparo o café da manhã – obrigada. Como o pão de cada dia – obrigada. Entro no carro e dou partida no motor – obrigada. Um motorista apressado me fecha no trânsito – obrigada.
O quê??? Vou agradecer o cara que me fecha no trânsito, quase causando um acidente???
Sim! Vou agradecer! Talvez na hora nem consiga imaginar um motivo para ter gratidão – simplesmente vou fazer a minha prática de agradecer todas as pessoas e todos os acontecimentos.
Lembro me de quando iniciei a prática de Aikidô. No final das aulas, havia um exercício chamado “jiu-waza”, onde, um por um, os alunos tentam atacar o mestre e recebem as técnicas de defesa. O nosso professor honrava até os mais novos principiantes com a oportunidade de passar por este treinamento. No meu primeiro dia de aula, confesso que fiquei paralizada. Faltou coragem e não fui. No segundo dia, jurei para mim mesma que iria, custasse o que custasse – e fui. No final do exercício, tinha que fazer uma reverência e agradecer – em japonês – “arigatô gozaimashita”. Gente, que prática maravilhosa!
Entortava a língua com aquelas palavras estranhas que mal conseguia lembrar. E, de tanto medo que tive – medo de me entregar, de aceitar que alguém me jogasse ao chão, que me aremessasse para longe – gente, alguém vai achar que, no início, eu encontrava qualquer espírito de gratidão? É claro que não! Mas, o exercício era justamente isto – fazer uma reverência e agradecer. Dentes cerrados, entortava a língua e forçava aquelas palavras a saírem da minha boca. E aí que começou a operar-se um milagre!
Mesmo forçando o agradecimento, o simples ato de agradecer abria o meu coração, pouco-a-pouco. Até o meu subconsciente começou a ficar curioso para entender o que havia lá para agradecer, pois, inicialmente, só percebia o medo de ser machucado. Esta curiosidade me ajudou a observar melhor os outros colegas, quando iam para o “jiu-waza” – e perceber o prazer deles. Aos poucos, agradecendo cada exercício, comecei a perceber que o agradecimento vinha menos forçado. Começou a sair com facilidade. O “jiu-waza” em si começou a se tornar divertido! Aos poucos, o agradecimento começou a ser a partir do coração. Tinha descoberto o que havia ali para agradecer – e agradecia mesmo, do fundo do coração! Até hoje, sinto uma profunda gratidão por tudo que aprendi do meu mestre de Aikidô, tudo que aprendi com a prática de Aikidô.
Então, se, inicialmente, alguns de nossos agradecimentos possam sair forçados, a contra-gosto, mesmo assim, a Prática de Gratidão vai operar os seus milagres. Agradecendo, começamos a perceber mais e mais coisas a agradecer. Agradecendo, o coração se abre. Agradecendo, começamos a perceber o quanto temos para agradecer. Começamos a descobrir que até as situações difíceis têm um lado positivo a ser agradecido.
O motorista que me dá uma fechada no trânsito me dá uma oportunidade de treinar os meus reflexos e habilidade como motorista, também me dá uma oportunidade de treinar a minha compaixão com o exercício de me identificar com ele e com a pressa que o levou a me fechar. Oferece uma oportunidade de agradecer o Universo, o Sagrado, por ter me protegido, pelo fato de que houve um canto para eu encostar para escapar da fechada. Uma oportunidade de agradecer pelo fato que não aconteceu nada grave, de agradecer pela vida que tenho. De agradecer que tudo correu de tal forma que eu pudesse praticar a Generosidade e dar espaço para uma pessoa que, por algum motivo, estava com muito mais pressa do que eu.
A Prática de Gratidão faz parte da abertura do Coração de Compaixão. Mas, não é por isso que vamos nos fazer de capacho e deixar um agressor impune. É uma diferença de atitude, de postura interna que estamos desenvolvendo, mesmo que, às vezes, ações firmes se tornem necessárias. Mas podemos ter gratidão e compaixão até por um agressor – mesmo mandando ele preso, por exemplo – pois temos a oportunidade de nos fortalecer, enfrentando dificuldades. Lembro dos relatos dos monges tibetanos, exercitando o seu poder de compaixão enquanto passavam por torturas nas mãos dos chineses.
Não temos como negar que as pessoas que cultivam o Coração de Compaixão e a Gratidão são as pessoas mais felizes no mundo. Essa sabedoria milenar finalmente vem sendo provada cientificamente.
Como diz a Dhammapada: “Ódios nunca cessam pelo ódio nesse mundo; através somente do não-ódio eles cessam. Essa é uma lei eterna.”
Não é pela raiva que cessa a raiva – é somente pela não-raiva que a raiva cessa. E a Gratidão é um grande remédio para a “raiva” e “ódio” – uma grande parte da prática da “não-raiva”, do “não-ódio”.
Imagine passar não somente um dia inteiro agradecendo todas as pessoas e acontecimentos – imagine passar uma vida inteira agradecendo – banhando-se constantemente da energia da Gratidão e da Alegria de Viver! Um dia atrás de outro. Convido você a experimentar isto!
Que os méritos de nossa prática se estendam a todos os seres e que possamos todos nos tornar o caminho iluminado.
Gassho
Monja Isshin
Monja Isshin Havens, Sensei, é missionária Internacional oficial da Escola Soto Zen do Japão(国際布教師, kokusai fukyôshi) e licenciada oficialmente como ittô-kyôshi (一等教師, Professora de Darma na graduação de Professor Associado, 1ª Classe), a Monja Isshin Sensei lidera a Comunidade Zendo Sul – Jisui Zendô – Sanga Águas da Compaixão de Porto Alegre e grupos afiliados.
Possui formação em psicanálise clínica, psicanalista humanista-em-formação pelo Instituto de Psicanálise Humanista, terapias alternativas e certificação como Mediadora de Conflitos e recebeu o título de Doutor Honoris Causa em Ciências da Religião: Budismo Japonês, outorgado pelaFaculdade Einstein de Salvador, Bahia e Doctor Honoris Causa in Budismo Zen da Erich Fromm World University de Florida, USA. É palestrante da Universidade Falada e colaboradora/palestrante da Unipaz-Sul, autora (A Vida Compassiva 1: A Compaixão e Vida Compassiva 2: A Compaixão em Ação, editora Pragmatha) e blogueira, é membro do Grupo de Diálogo Interreligioso de Porto Alegre (DIRPOA), da Comitê Estadual de Diversidade Religiosa do Rio Grande do Sul, da American Zen Teachers Association – AZTA (Associação Americana de Professores de Zen) e da Soto Zen Buddhist Association. É parceira, através da inscrição da Sanga Águas da Compaixão, do grupo internacional interreligioso Charter for Compassion desde 2010.
A Monja Isshin dispõe de vários canais de comunicação online, além de conduzir transmissões ao vivo de Dharma Chats, confira abaixo:
Youtube Isshin-San e Youtube Águas da Compaixão
Facebook, Google+ e Informativo via e-mail.
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