Trechos do livro ”Felicidade – a Pratica do Bem Estar” de Matthieu Ricard.
”Quando estamos infelizes, inevitavelmente pensamos que certas imagens têm garras e ferrões para nos torturar.” ~ALAIN
Quando somos atingidos pela morte de alguém que amamos, perturbados por um colapso, dominados pelo fracasso, assistimos com o coração partido ao sofrimento dos outros ou somos consumidos por pensamentos negativos, às vezes, sentimos que a vida como um todo está entrando em parafuso. Não parece haver nenhuma saída segura. A tristeza prevalece na mente como uma mortalha. “Basta que apenas uma pessoa nos deixe, e é como se não houvesse ninguém no mundo”, lamentou-se o poeta francês Lamartine. Incapazes de imaginar um fim para a nossa dor, retiramo-nos para dentro de nós mesmos e temos medo de cada momento. “Quando tentei pensar claramente sobre isto, senti que a minha mente estava aprisionada e não podia se expandir em nenhuma direção. O sol levantava e se punha, eu sabia, mas muito pouco da sua luz me banhava”, escreve Andrew Solomon. Por mais angustiante que possa ser a situação – a morte de um grande amigo, por exemplo – há incontáveis maneiras de passar por uma provação. A felicidade é ensombrecida pela angústia, quando nos faltam os recursos interiores adequados pra sustentar certos elementos básicos de sukha: a alegria de estar vivo, a convicção de que ainda temos a capacidade de desabrochar, a compreensão da natureza efêmera de todas as coisas.
Não são as grandes reviravoltas externas o que necessariamente nos deixa angustiados. Observou-se que as taxas de ocorrência da depressão e do suicídio declinam consideravelmente em tempos de guerra. Algumas vezes, os desastres naturais também fazem aflorar o melhor da humanidade, em termos de coragem, solidariedade e vontade de viver. O altruísmo e a ajuda mútua contribuem de maneira significativa para reduzir o estresse pós-traumático decorrente das situações trágicas. Na maioria das vezes não são os eventos externos, mas a nossa própria mente e as emoções negativas que nos tornam incapazes de manter a estabilidade interior, arrastando-nos para baixo.
As emoções conflitantes nos causam nós no peito difíceis de desatar. Em vão tentamos lutar contra elas ou reduzi-las ao silêncio. Assim que escapamos do julgo de uma delas, eis que surge outra com vigor renovado. Essa aflição emocional não dá qualquer alívio, e toda tentativa de dar cabo dela parece fracassar. Em conflitos como esses, o nosso mundo se despedaça em uma multidão de contradições que geram adversidade, opressão e angústia. O que deu errado?
Os pensamentos podem ser os nossos melhores aliados ou piores inimigos. Quando fazem com que sintamos que o mundo inteiro está contra nós, cada percepção, cada encontro, e a própria existência do mundo tornam-se fontes de tormento. São os nossos próprios pensamentos que se erguem como inimigos. Eles percorrem a nossa mente com o estouro de uma boiada; cada um cria seu pequeno drama, causando uma confusão que aumenta cada vez mais. Nada vai bem do lado de fora, porque nada vai bem o interior.
Quando olhamos com cuidado para o teor dos nossos pensamentos cotidianos, percebemos com que extensão eles dão colorido ao filme interior que projetamos no mundo. Quem é muito preocupado, teme o mais ínfimo dos eventos: se precisa fazer uma viagem de avião, pensa que ele irá cair; se tem que dirigir, imagina que sofrerá um acidente; se vai ao médico, está certo de que tem câncer. Para um homem ciumento, as viagens mais inócuas da pessoa amada são suspeitas, o sorriso dirigido a outra pessoa é fonte de sofrimento, e a menor ausência cria um sem-número de dúvidas descabidas, que passam enfurecidas pela sua mente. Para esses indivíduos, bem como para aquele que tem o pavio curto, para o avarento e miserável, para o obsessivo, os pensamentos transformam-se diariamente em tempestades que podem ensombrecer a vida, destruindo a alegria de viver da própria pessoa e daqueles que estão ao seu redor.
E, no entanto, este nó no peito não foi atado pelo nosso marido infiel, pelo nosso objeto de desejo, pelo nosso colega desonesto, pelo nosso acusador injusto, mas pela nossa própria mente. É o resultado de construtos mentais que, ao se acumularem e solidificarem, dão a ilusão de serem externos e reais. O que fornece a matéria-prima para formar esse nó em nosso peito é o sentimento exacerbado de auto-importância. Tudo o que não responde às demandas do ego se transforma em perturbação, ameaça ou insulto. O passado é doloroso, não conseguimos desfrutar o presente e trememos diante da projeção da nossa angústia futura. Conforme Andrew Solomon: “Na depressão, tudo o que acontece no presente é a antecipação da dor do futuro, e o presente enquanto tal não existe mais”. 2 Isso prova que a incapacidade de lidar com os nossos pensamentos é a principal causa do sofrimento. Aprender a baixar o tom do incessante ruído dos pensamentos perturbadores é um estágio decisivo no caminho para a paz interior. Como explica Dilgo Khyentse Rimpoche:
Essas séries de pensamentos e estados mentais estão sempre mudando, como forma das nuvens ao vento, mas damos uma grande importância a elas. Um homem idoso observando as crianças brincarem sabe muito bem que o que elas fazem tem pouca consequência. Ele não se sente nem eufórico nem perturbado com o que acontece, ao passo que as crianças levam tudo muito a sério. Somos exatamente como elas.
Temos que reconhecer que, enquanto não tivemos realizado sukha, o nosso bem-estar está à mercê das tempestades. Podemos responder às batidas do coração tentando esquecê-las, distraindo-nos, indo para outro lugar, viajando e assim por diante, mas tudo isso não passa de curativos feitos em uma perna de pau. Como diz Nicolas Boileau:
Montando em um cavalo, ele foge em vão dos seus pensamentos –
Que com ele compartilham a sela e acompanham-no em seu caminho.
PRIMEIRO O MAIS IMPORTANTE
Como fazer as pazes com as nossas emoções? Primeiro temos que focalizar a nossa mente no poder bruto do sofrimento interior. Em vez de evitá-lo ou enterrá-lo em algum canto escuro da nossa mente, devemos fazer dele o objeto da nossa meditação, sem ficar ruminando os eventos que nos causaram dor ou recapitulando cada quadro do filme da nossa vida. Por que é necessário, nesse estágio, estender-se no exame das causas distantes do nosso sofrimento? Sobre isso, o Buda nos oferece a seguinte imagem: um homem acabou de receber uma flechada no peito; por acaso ele fica perguntando: “De que madeira é feita a flecha? De que tipo de pássaro provêm as suas penas? Que artífice a produziu? Ele é um bom homem ou um salafrário?” Certamente não. A sua primeira preocupação é tirar a flecha do peito.
Quando uma emoção dolorosa nos atinge, a coisa mais urgente a fazer é olhar para ela de frente e identificar os pensamentos imediatos que a provocaram e a alimentam. Então, fixando o nosso olhar interior na emoção em si, podemos gradualmente dissolvê-la, como a neve sob o sol. E ainda mais: uma vez que a força dessa emoção tenha se enfraquecido, as causas que a provocaram parecerão menos trágicas e teremos ganhado a oportunidade de nos libertar do círculo vicioso dos pensamentos negativos.
CONTEMPLANDO A NATUREZA DA MENTE
Como podemos evitar o perpétuo ressurgir dos pensamentos perturbadores? Se nos conformamos com o papel de eternas vítimas desses pensamentos, seremos como os cães que sempre correm atrás do mesmo pau que jogamos para eles. Ao nos identificarmos com cada pensamento, nós o seguimos e o reforçamos com infinitos enredamentos emocionais.
Assim, precisamos olhar mais de perto para a mente em si. As primeiras coisas que observamos são as correntes de pensamento que fluem continuamente, sem que nem mesmo estejamos cônscios delas. Queiramos ou não, incontáveis pensamentos estão sempre cruzando a nossa mente, nascidos das nossas sensações, das nossas recordações e da nossa imaginação. Mas há também uma qualidade dessa mente que está sempre presente, sejam quais forem os pensamentos que nos visitem. Essa qualidade é a consciência primeira que subjaz a todo pensamento. É ela que prevalece no raro momento em que a mente repousa, como se estivesse imóvel, conservando mesmo assim a capacidade de conhecer. Essa faculdade, essa presença aberta e simples, é o que, no budismo, chamamos de consciência pura, porque ela pode existir mesmo na ausência de construtos mentais.
Se continuarmos a deixar que a mente observe a si mesma, descobriremos, experienciando esta consciência pura, os pensamentos que dela emergem. Essa consciência de fato existe. Mas, fora isso, o que mais podemos dizer a respeito? Esses pensamentos têm características inerentes? Têm alguma localização particular? Não. Têm cor? Forma? Também não. Podemos conhecê-los, mas não há nenhuma característica real ou intrínseca neles. Na consciência pura experienciamos a mente como desprovida ou vazia de existência inerente. Essa noção de vacuidade do pensamento é sem dúvida muito estranha à psicologia ocidental. A que propósitos ela serve? Antes de tudo, quando surge uma emoção ou um pensamento forte – a raiva, por exemplo – o que geralmente acontece? Com toda a facilidade, esse pensamento nos domina, amplificando-se e se multiplicando a seguir em numerosos novos pensamentos que nos perturbam e nos cegam, deixando-nos em estado de prontidão para expressar palavras e cometer atos, às vezes violentos, que podem causar sofrimento aos outros, e dos quais logo nos arrependemos. Em vez de desencadear esse cataclismo, podemos examinar o pensamento raivoso em si e chegar a ver que, desde o início, ele nunca foi mais do que espelhos e reflexos.
Os pensamentos emergem da consciência pura e podem, então ser reabsorvidos por ela, como as ondas que emergem do oceano e nele novamente se dissolvem. Compreendendo isso, teremos dado um grande passo na direção da paz interior. A partir daí, os nossos pensamentos perdem muito do poder que têm de nos perturbam. Para familiarizar-se com esse método, quando um pensamento surgir, tente ver de onde ele vem; quando desaparecer, pergunte-se para onde ele foi. Nesse breve instante em que sua mente não está obstruída por pensamentos discursivos, contemple a sua natureza. Nesse momento em que os pensamentos passados silenciaram e os futuros ainda não surgiram, você pode perceber uma consciência pura e luminosa, que ainda não foi adulterada pelos seus construtos conceituais. Por meio de experiências diretas aos poucos você compreenderá o que o budismo quer dizer com natureza da mente.
Ainda que não seja fácil experienciar a consciência pura, é possível. Meu grande e saudoso amigo Francisco Varela confidenciou-me – em um contato a distância feito algumas semanas antes da sua morte causada por um câncer – que ele estava conseguindo ficar quase todo tempo nessa presença mental pura. A dor física lhe parecia muito longínqua e não constituía obstáculo algum para sua paz interior. Além disso, bastavam-lhe os analgésicos mais fracos. Mais tarde, a sua esposa, Amy, disse-me que ele manteve a sua serenidade contemplativa até o último suspiro.
EXERCÍCIO Permanecer na presença mental
Observe o que está por trás da cortina dos pensamentos discursivos. Tente encontrar, ali, uma presença desperta, livre de construtos mentais, transparente, luminosa, não perturbada pelos pensamentos do passado, do presente ou do futuro. Tente repousar no momento presente, livre de conceitos. Observe a natureza do intervalo que existe entre os pensamentos, onde não há elaborações mentais. Aos poucos prolongue o intervalo que existe entre os pensamentos, onde não há elaborações mentais. Aos poucos prolongue o intervalo que existe entre o desaparecimento de um pensamento e o emergir do próximo.
Permaneça nesse estado de simplicidade que é livre de construtos mentais, porém atento; sem fazer esforço e ao mesmo tempo alerta e presente.
COM MAIS DE UMA CORDA NO ARCO
À medida que as dores que nos afligem ficam mais fortes, o nosso universo mental se contrai. Eventos e pensamentos continuamente colidem com os muros da nossa prisão interior e retornam mais rápidos e mais fortes, produzindo mais feridas a cada ir e vir. Portanto, precisamos ampliar nossos horizontes interiores até que não haja mais muros em que as emoções negativas possam rebater. Quando desabam esses muros, construídos tijolo a tijolo pelo eu, os projéteis do sofrimento erram o alvo, desaparecendo na vasta extensão da liberdade interior. Percebemos, então, que o nosso sofrimento era um simples esquecer-se da nossa verdadeira natureza, que permanece intocada sob a névoa das emoções. É essencial desenvolver e sustentar esse alargamento dos horizontes internos. Pois os eventos exteriores e pensamentos passarão a surgir como estrelas que se refletem na superfície calma de um vasto oceano, sem perturbá-lo.
Uma das melhores maneiras de atingir esse estado é meditar sobre os sentimentos que transcendem e ultrapassam as nossas aflições mentais. Por exemplo: ao permitirmos que a nossa mente seja tomada por sentimentos de amor e compaixão por todos os seres, é provável que o calor desses pensamentos derreta o gelo das nossas frustrações e a suavidade deles emanada faça cessar o fogo dos nossos desejos. Teremos, assim, conseguido nos elevar acima da nossa dor pessoal até um lugar onde ela é quase imperceptível.
EXERCÍCIO Quando você sentir sobrepujado pelas suas emoções
Imagine-se em um barco, navegando por um mar tempestuoso, com ondas volumosas do tamanho de casas. Cada onda é maior e mais assustadora do que a anterior. O seu barco está a ponto de ser engolido por elas, e a sua própria vida depende da sua capacidade de avançar ou recuar poucos metros nesses muros de água.
Imagine-se, então, observando a mesma cena de um avião, que voa a grande altitude. Desse ponto de vista, as ondas parecem formar um delicado mosaico azul e branco, mal se movendo na superfície da água. Dessa altura, no silêncio do espaço, os seus olhos vêem esses padrões quase imóveis, e a sua mente mergulha em um céu claro e luminoso.
As ondas de raiva e obsessão parecem muito reais, mas lembre-se que elas são meras construções da sua mente; surgem, mas logo desaparecem novamente. Por que ficar no barco da ansiedade? Torne a sua mente vasta como o céu, e descobrirá que as ondas das emoções aflitivas perderam toda a força que você atribuía a elas.
EVITAR JOGAR A CULPA NOS OUTROS
É tentador jogar a culpa sistematicamente no mundo e nas outras pessoas. Quando nos sentimos ansiosos, deprimidos, mal-humorados, invejosos ou emocionalmente exaustos, logo jogamos a responsabilidade no mundo externo: tensões com os colegas de trabalho, discussões com a esposa. Tudo, até a cor do céu, se torna motivo de contrariedade. Esse reflexo é muito mais do que uma mera fuga psicológica. Ele vem da percepção errônea que nos faz atribuir qualidades inerentes a objetos externos, quando na verdade essa qualidades são dependentes da nossa própria mente. Culpar os outros pelos nossos tormentos e ver neles os únicos responsáveis por nosso sofrimento torna nossa vida miserável.
Não subestimemos as repercussões dos nossos atos, das nossas palavras e dos nossos pensamentos. Se semearmos tanto sementes de flores quanto de plantas venenosas, não poderemos nos admirar que a colheita também seja mista. Se alternarmos comportamentos altruístas e nocivos, não poderemos nos surpreender de obter alegrias e sofrimentos. Conforme dizem Luca e Francesco Cavalli-Sforza, respectivamente pai e filho, o primeiro geneticista e professor da Universidade de Stanford, o segundo um filósofo: “As consequências de uma ação, seja ela qual for, amadurecem com o tempo e cedo ou tarde recaem sobre aquele que a realizou: não se trata de uma intervenção da justiça divina, mas de simples realidade”
Com efeito, considerar que o sofrimento resulta da vontade divina leva a uma incompreensão total das repetidas calamidades que atingem certas pessoas e certos povos. Por que um Todo-Poderoso teria criado condições que conduzem a tanto sofrimento? Segundo a perspectiva budista, nós somos o resultado de um grande número de atos livres pelos quais somos responsáveis. O VII Dalai Lama escreveu:
Um coração congelado pelas águas das tormentas
é o resultado de atos destrutivos,
fruto da nossa própria loucura.
não é triste culpar os outros por isso?
Essa abordagem está ligada à noção budista de carma, muito mal compreendida no Ocidente. Carma significa “ato”, “ação”, mas designa igualmente a ligação dinâmica que existe entre um ato e seu resultado. Cada ação – e também cada intenção que a dirige – é considerada positiva ou negativa conforme seus efeitos sobre a felicidade ou o sofrimento. É tão insensato querer viver feliz sem ter renunciado aos atos nocivos, quanto pôr a mão no fogo esperando não se queimar. Da mesma forma, não se pode comprar a felicidade, roubá-la ou consegui-la por sorte: é preciso cultivá-la. Para o budismo, portanto, o sofrimento não é uma anomalia ou uma injustiça, mas pertence à natureza do mundo condicionado que chamamos de samsara. É o produto lógico e inelutável da lei da causa e efeito. O budismo qualifica o mundo de “condicionado”, na medida em que todos os elementos que o compõem resultam de uma série infinita de causas e circunstâncias, todas sujeitas à impermanência e à destruição.
Como os budistas encaram as tragédias em que inocentes são torturados, massacrados ou morrem de fome? À primeira vista, o sofrimento deles parece ser devido a causas bem trágicas e poderosas, e não a simples pensamentos negativos. No entanto, é precisamente a insensibilidade daqueles que os deixam morrer de fome ou o ódio daqueles que os torturam que estão na origem dos imensos sofrimentos de uma grande parte da humanidade. O único antídoto contra essas aberrações consiste em levar em conta o sofrimento dos outros, e depois compreender no mais profundo de si mesmo que nenhum ser vivente no mundo deseja sofrer. Segundo o Dalai Lama: “Procurar a felicidade e ficar indiferente ao sofrimento dos outros é um erro trágico”
É mais fácil trabalhar com os efeitos perturbadores de uma emoção forte quando a estamos vivenciando do que quando ela está adormecida na sombra do nosso inconsciente. No momento preciso da experiência, temos uma oportunidade inestimável para investigar o processo do sofrimento mental.
Para citar um exemplo posso, posso dizer que não sou por natureza uma pessoa raivosa, mas, ao longo dos últimos vinte anos, os momentos em que perdi a calma me ensinaram mais sobre a natureza dessa emoção destrutiva do que vários anos de tranquilidade. Como diz o ditado, “um único cão latindo faz barulho do que cem cães calados”. Na década de 1980, eu tinha acabado de comprar o meu primeiro laptop, que usava para traduzir textos tibetanos. Uma manhã, enquanto trabalhava sentado no chão de madeira de um monastério situado em um local remoto do Butão, um amigo, querendo fazer uma brincadeira, ao passar por mim derramou um punhado de tsampa (farinha de cevada) no meu teclado. Fiquei furioso e lancei-lhe um olhar terrível, dizendo: “Você acha que isso é engraçado?” Vendo que eu estava realmente bravo, ele parou e disse, conciso: “Um momento de raiva pode destruir anos de paciência.” Apesar de seu gesto não ter sido nada inteligente, ele estava certo.
Em outra ocasião, no Nepal, uma pessoa que havia feito uma grande doação em dinheiro para o monastério veio dar-me uma lição de moral. Novamente, o meu sangue ferveu. A minha voz tremeu de raiva, e eu disse a ela para sumir dali. Mais que isso, “ajudei-a” a sair pela porta com um empurrão. Naquele momento, eu estava convencido de que a minha raiva era completamente justificada. Só horas depois percebi a extensão destrutiva que a raiva pode atingir, reduzindo a nossa clareza e paz interior e fazendo de nós verdadeiros fantoches.
Respostas mais construtivas para esses eventos teriam sido, no primeiro caso, explicar ao meu amigo como era útil o laptop para o meu trabalho e como era frágil o seu teclado; no segundo, lembrar àquela pessoa os fatos reais com firmeza, tentar entender o que ocorria na sua mente perturbada e, se possível, ajudá-la com gentileza a sair da sua confusão.
CULTIVANDO A SERENIDADE
No Tibete, por volta de 1820, um bandido muito temido por sua crueldade foi certa vez à caverna do eremita Jigme Gyalway Nyugu, para roubar as suas magras provisões. Entrando na caverna, viu-se na presença de um homem idoso, muito sereno, que meditava com os olhos fechados. Tinha o cabelo todo branco e a expressão do seu rosto irradiava paz, amor e compaixão. No exato momento em que o ladrão viu o sábio, a sua agressividade desapareceu, e ele ficou vários minutos ali, olhando-o, maravilhado. Em seguida, após pedir a bênção, retirou-se. A partir de então, sempre que o ladrão via a oportunidade de fazer mal a alguém, a face serena do velho de cabelos brancos surgia em sua mente, e ele abandonava seu plano maldoso. Visualizar cenas assim não é brincar de auto-sugestão, mas estar em ressonância com a bondade básica que subjaz em nossa própria essência.
O PODER DA EXPERIÊNCIA
Quando emergimos daqueles momentos de cegueira em que estivemos totalmente tomados por uma forte emoção e a nossa mente se liberta da corrosiva carga emocional, é difícil crer que possamos ter sido dominados a esse ponto por ela. Há aqui uma importante lição a ser aprendida: nunca subestimar o poder da mente, que é capaz de reificar vastos mundos de ódio, desejo, exaltação e tristeza. Os problemas que vivemos contêm um potencial precioso para a transformação. Um manancial de energia de onde podemos obter a força viva que nos fará capazes de construir algo positivo naquele lugar em que a indiferença e a apatia nos impedem. Dessa forma, cada dificuldade pode se transformar em vime, para tecermos o cesto interior que nos permita lidar com as provações da vida.
Matthieu Ricard, cresceu no meio intelectual de Paris e doutorou-se em genética molecular. Aos 38 anos passou a viver nos Himalaias para tornar-se monge budista, é autor do livro “Felicidade – A prática do Bem Estar”, ‘A arte da meditação” e “A revolução do altruísmo” disponíveis em todas livrarias. Clique aqui e saiba mais sobre ele.