Razões para seguir uma religião

Texto de Gustavo Mini, publicado originalmente no site O ESQUEMA, conheça o trabalho do autor clicando aqui.

Estava com esse post encrencado há muitas semanas, mas a vinda de Karen Armstrong a Porto Alegre me deu um impulso final pra terminá-lo de uma vez. Armstrong é uma das poucas vozes que tem aparecido nos veículos culturais pra defender a ideia de que as religiões institucionalizadas não são exatamente uma coisa indesejável. Do ponto de vista mainstream, não parece que as religiões precisem de advogado: o número de praticantes das grandes disciplinas espirituais mundiais ainda é gigantesco e sua influência, maior ainda. Mas, ao menos nos círculos (físicos e digitais) que eu frequento, a palavra “religião” vem sendo proferida com uma mistura de desdém e desconfiança, o que me causa um certo desconforto já que eu sou o que se poderia classificar como uma pessoa religiosa. Sei que a maior parte das pessoas que me conhecem provavelmente não me colocaria na mesma turma daquela tia carola, mas vamos ver: eu rezo diariamente, eu vou a templos regularmente, participo de cerimônias, leio livros considerados sagrados, sigo preceitos, tomo votos e respeito autoridades religiosas. Desse ponto de vista (e apenas desse…), eu acabo mais perto da tia carola dos meus amigos do que dos meus amigos.

Para muita gente, ser uma pessoa religiosa hoje significa que você compactua com uma forma de manipulação, uma estrutura de poder, um sistema de pilhagem em grande escala, uma visão arcaica do mundo ou, na melhor das hipóteses, uma instituição caduca. Na base dessas acepções, geralmente estão experiências particulares com a Igreja Católica, o contato midiático com as Evangélicas, a ideia de que o Budismo no Ocidente é um hype e a péssima propaganda gerada por radicais tresloucados que se consideram representantes do Islã (quando, em geral, representam projetos de poder geopolítico). Outros vetores importantes na construção desse conceito de religião são a cruzada de certos intelectuais pelo ateísmo (Richard Dawkins e Christolher Hitchens sendo os mais pop deles), a recente adoção do ateísmo e da ciência como uma espécie de religião laica por muita gente, a disseminação de documentários amparando essa ideia (Zetgeist) e os infindáveis memes anti-clericais que tomaram conta das redes sociais.

A religião e a linhagem que eu sigo não tem qualquer apreço por proselitismo e evangelização mas, justamente por conta das minhas experiências positivas, me sinto compelido a defender a ideia de que a prática espiritual sistematizada traz imensos benefícios. Infelizmente, não tenho muito para oferecer em termos de argumentos a não ser essas experiências que citei, com certeza bastante subjetivas. Que me desculpem, então, os discípulos de Dawkins e Hitchens: esse texto é construído unicamente a partir das minhas observações e reflexões. Suponho que não há muito método científico aqui que não seja o empirismo.

Mas, enfim, diante dos conhecidos perigos da burocratização do caminho espiritual, qual é a grande vantagem que eu vejo em seguir um método organizado? Eu elegi quatro pontos que são importantes na minha prática espiritual pessoal: 1) O método 2) Ter aonde ir 3) Parceria 4) Referenciais vivos.

Em primeiro lugar, é justamente o fato de se existir um método. Para quem compreende o caminho espiritual como um processo de investigação a respeito de si, do mundo, do universo, da sociedade e do que regeria tudo isso, ter um método à mão coloca questões existenciais, por definição bagunçadas, dentro de uma moldura. O papel dessa moldura, a meu ver, não é (ou não deveria ser) congelar as dúvidas para pregá-las na parede e venerá-las emolduradas, mas sim confrontar o que nos é internamente nebuloso com uma estrutura de pensamento, o que costuma jogar alguma luz sobre a nebulosidade. O método, quando legítimo, também fornece fundamentais ferramentas de navegação interna. Como ferramenta, aliás, a moldura não tem uma utilidade final, ela não é o objetivo. Todos os mestres budistas que ouvi disseram que, resolvido o que o caminho se propõe, a ferramenta deveria ser abandonada, se torna desnecessária.

Uma curiosidade adicional: a convivência com um caminho espiritual que tem métodos muito bem delineados me fez perceber que, na maior parte das vezes, as pessoas que criticam os métodos religiosos vivem cercadas de outros tipos de métodos. E, frequentemente, submetem-se a esses métodos de forma absolutamente dogmática. O ambiente das artes e o mundo corporativo, dois exemplos que eu conheço bem, são pródigos nesse tipo de comportamento.

Bom, vamos adiante.

Em segundo lugar, um caminho espiritual formal traz o benefício de ter aonde ir. A criação de templos e centros de prática oferece um destino geográfico, um lugar de reunião e também um intervalo dos lugares que frequentamos cotidianamente. Os locais urbanos para prática espiritual são, via de regra, pequenos oásis de tranquilidade em meio ao caos. Os centros que ficam fora das cidades costumam oferecer contato com a natureza e com uma vida mais simplificada, dois elementos por si só catalisadores de reflexão e de cura psíquica. É claro que não é preciso vincular-se a uma religião para ter esse tipo de experiência. Mas é diferente quanto ela vem acompanhada do item anterior, o método, e de todo um contexto que induz à contemplação e não apenas a mais alienação sensorial.

Em terceiro lugar, um caminho espiritual formal provê parceria na busca. No momento em que você encontra a estrutura que lhe serve, automaticamente tem contato com outras pessoas que tiveram a mesma necessidade e o mesmo encontro. O contato com um grupo de praticantes do mesmo método permite que você contemple as questões cruciais que o levaram até ali sendo examinadas por outras pessoas, à luz de suas próprias dificuldades e de todo seu cardápio próprio de condicionamentos. É claro que emoldurar a diversidade com o método gera o risco de aplainar as inclinações e manifestações pessoais. Mas, por outro lado, se estamos falando de um método e de um local genuínos, a diversidade do grupo surge ainda mais flagrante, colorida e interessante. Não existe grupo de busca espiritual isento de diferenças, embates e dissidências. Pelo contrário, muitas vezes o método tende a exacerbar as diferenças de forma que as pessoas se obriguem a se flexibilizarem e a trabalhar com elas. Em duas ou três palestras, já vi a Monja Coen, da tradição zen budista, colocar da seguinte forma sua experiência de treinamento intenso em um mosteiro no Japão: as monjas são como bolinhas de ferro cheias de pontas colocadas em um mesmo recipiente fechado. Aquele recipiente, então, é sacudido. As bolinhas se chocam umas com as outras freneticamente até que, pelo atrito, as pontas sejam aparadas e fiquem lisinhas, lisinhas… Claro: para que o atrito não termine em guerra, é preciso método, objetivos comuns e muito manejo.

Em último lugar, o que talvez seja o mais importante, uma religião formal de tradição confiável costuma oferecer pessoas que são a referência viva do caminho. Em entrevista para a Zero Hora no último sábado, Karen Armstrong faz essa observação importante: “Devo falar sobre a natureza do conhecimento religioso, lembrando que é um conhecimento derivado da prática – especialmente a prática da compaixão – e não da correção doutrinária. É como nadar ou dirigir, algo que só é possível aprender através da prática diligente e não pela leitura de livros e textos.” Ou seja, uma referência é alguém que colocou em prática os ensinamentos da religião de forma tão íntegra que se tornou os ensinamentos. Se levarmos em consideração os aspectos mais essenciais de todo método espiritual que possa se dizer humano, que são o amor e a compaixão*, qualquer pessoa que queira ser uma referência desse método deveria necessariamente ser a corporificação do amor e da compaixão, não de forma particular e apenas servindo ao seu método, mas de maneira verdadeiramente ampla e universal.

Pra fechar, então.

Não é preciso chover no molhado: vivemos numa época em que as principais questões sociais perderam seu esquema de regulagem. As religiões institucionalizadas, em muitos casos, eram a baliza principal desse esquema. Talvez essa desconexão entre certas instituições religiosas e a sociedade tenha alguns frutos interessantes. Um deles é a necessidade de reformas e adequações na relação com as pessoas em geral. Outro, mais importante, seria o resgate do papel essencial das religiões de promover caminhos universais de amor e compaixão por meio do trabalho interno.

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* Uma vez que amor e compaixão são palavras de significados amplos, ressalto que usei aqui as definições que aparecem em textos do budismo tibetano. Nesse caso, amor seria “o desejo de que o outro encontre a felicidade e as causas da felicidade” e compaixão, “o desejo de que o outro se livre do sofrimento e das causas do sofrimento.”

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