”Uma das lições muito enfatizadas por meu professor Saljay Rinpoche foi que, se eu quisesse ser feliz, precisaria aprender a reconhecer e trabalhar com os fatores condicionantes que produzem reações compulsivas e ligadas às características pessoais. A essência de seu ensinamento era que qualquer fator pode ser entendido como compulsivo, já que obscurece nossa capacidade de ver as coisas como elas são, sem julgamentos. Se alguém estiver gritando conosco, por exemplo, raramente paramos para distinguir entre o puro reconhecimento “Ah, esta pessoa está levantando a voz e dizendo tais palavras” e a reação emocional “Esta pessoa é imbecil”. Em vez disso, tendemos a combinar a pura percepção e nossa reação emocional em um único pacote: “Esta pessoa está gritando comigo -porque é imbecil.”
Mingyur Rinpoche diz: DEPOIS DE QUASE DEZ ANOS ensinando em mais de vinte países ao redor do mundo, vi várias coisas estranhas e maravilhosas e ouvi várias histórias estranhas e maravilhosas de pessoas com as quais conversei em palestras ou que me procuraram para aconselhamento particular. O que mais me surpreendeu, entretanto, foi ver que as pessoas que viviam em lugares nos quais os confortos materiais eram amplamente disponíveis pareciam vivenciar um profundo sofrimento, similar ao que vi entre aqueles que viviam em lugares que não eram tão desenvolvidos em termos materiais. A expressão de sofrimento que testemunhei era diferente em alguns pontos do que estava acostumado a testemunhar na índia e no Nepal, mas sua força era palpável.
Comecei a sentir esse nível de infelicidade durante minhas primeiras visitas ao Ocidente, quando meus anfitriões me levavam para ver os grandes pontos turísticos de suas cidades. Na primeira vez que vi lugares como o Empire State Building e a Torre Eiffel, fiquei muito impressionado com o gênio dos arquitetos e engenheiros e com o nível de cooperação e determinação necessário para construir aquelas estruturas. Mas, quando subia nas estruturas para observar a cidade, encontrava minha visão bloqueada por cercas de arame farpado e toda a área patrulhada por guardas. Quando perguntava a meus anfitriões sobre os guardas e as cercas, eles me explicavam que as precauções eram necessárias para impedir que as pessoas se suicidassem pulando das alturas. Pareceu a mim incrivelmente triste que sociedades capazes de produzir tais maravilhas tenham de impor medidas estritas para impedir que as pessoas utilizem esses belíssimos monumentos como trampolins para o suicídio.
As medidas de segurança não prejudicaram em nada minha apreciação da beleza desses locais ou da tecnologia necessária para construí- los. Mas, depois de ter visitado alguns desses locais, as precauções de segurança começaram a se encaixar com mais uma coisa que comecei a reparar. Apesar de as pessoas que vivem em culturas materialmente confortáveis tenderem a sorrir com bastante facilidade, seus olhos quase sempre revelam um senso de insatisfação e até de desespero. E as perguntas que as pessoas faziam em conversas tanto públicas quanto privadas muitas vezes giravam em torno de como se tornar melhores ou mais fortes do que eram ou como superar o “ódio a si mesmo”.
Quanto mais eu viajava, mais claro ficava que as pessoas que viviam em sociedades caracterizadas por realizações tecnológicas e materiais tinham as mesmas chances de sentir dor, ansiedade, solidão, isolamento e desespero que as pessoas que viviam em áreas comparativamente menos desenvolvidas. Depois de alguns anos fazendo algumas perguntas bem pontuais em palestras e sessões de aconselhamento particular, comecei a ver que, quando o ritmo do progresso externo ou material excedia o desenvolvimento do conhecimento interior, as pessoas pareciam sofrer profundos conflitos emocionais sem um método interno para lidar com eles. Uma abundância de itens materiais proporciona tal variedade de distrações externas que as pessoas perdem o vínculo com suas vidas interiores.
Pare para pensar, por exemplo, no número de pessoas que desesperadamente procuram um senso de empolgação indo a um novo restaurante, começando um novo relacionamento ou mudando de emprego. Por algum tempo, a renovação de fato parece proporcionar algum senso de estímulo. Entretanto, mais cedo ou mais tarde, a empolgação se abranda; as novas sensações, os novos amigos ou as novas responsabilidades se tornam lugar-comum. Qualquer felicidade que as pessoas originalmente tenham sentido se dissolve.
Então, elas tentam uma nova estratégia, como ir à praia. E, por um tempo, isso também parece satisfatório. O Sol aquece a pele, a água está ótima e há toda uma nova multidão de pessoas para conhecer e talvez algumas novas e estimulantes atividades para tentar, como andar de jet ski ou esqui-aquático. Contudo, depois de algum tempo, até a praia fica entediante. As mesmas velhas conversas são repetidas indefinidamente, a areia o incomoda, o Sol está forte demais ou se esconde atrás de nuvens e o mar está gelado demais. Então, é hora de seguir em frente ou tentar uma praia diferente, talvez em um país diferente. A mente produz seu próprio tipo de mantra: “Quero ir para o Taiti… Taiti… Taiti…”
O problema com todas essas soluções é que elas são, por natureza, temporárias. Todos os fenômenos resultam da junção de causas e condições e, portanto, inevitavelmente passam por algum tipo de mudança. Quando as causas que produziram e perpetuaram uma experiência de felicidade mudam, a maioria das pessoas acaba responsabilizando as condições externas (outras pessoas, o lugar, o clima etc.) ou a si próprias (“Eu deveria ter dito algo mais gentil ou mais inteligente”, “Eu deveria ter ido a outro lugar”). Entretanto, por refletir uma perda de confiança em si mesmo ou nas coisas que aprendemos a acreditar que deveriam nos trazer felicidade, a culpa só dificulta ainda mais a busca pela felicidade.
A questão mais problemática é que a maioria das pessoas não tem uma idéia muito clara do que seja a felicidade e, conseqüentemente, acabam criando condições que as arrastam de volta à insatisfação que tão desesperadamente tentam eliminar. Dessa forma, seria uma boa idéia analisar a felicidade, a infelicidade e as causas que as fundamentam com um pouco mais de atenção.
O ACORDO PARA DISCORDAR
Pelo que aprendi, a maioria dos conflitos entre as pessoas provém de um mal-entendido em relação aos motivos recíprocos. Todos nós temos nossas razões para fazer o que fazemos e dizer o que dizemos. Quanto mais nos permitimos ser guiados pela compaixão — parar por um momento e tentar ver de onde a outra pessoa está vindo —, menos chances temos de nos envolver em um conflito. E, mesmo quando os problemas surgirem, se respirarmos fundo e ouvirmos com o coração aberto, nos sentiremos capazes de lidar com o conflito de modo mais efetivo — para acalmar os ânimos, por assim dizer, e resolver nossas diferenças de modo que todos fiquem satisfeitos e ninguém acabe como o “vencedor” ou o “perdedor”.
Por exemplo, tenho um amigo tibetano na índia que era vizinho de um homem que tinha um cachorro mal-humorado. Na índia, os muros que cercam o quintal da frente de uma casa são muito altos e têm portas em vez de portões. As entradas para o quintal do meu amigo e do quintal de seu vizinho eram muito próximas e, quase toda vez que meu amigo saía pela porta, o cão arranhava a porta do vizinho, latindo, rosnando e arreganhando os dentes — uma experiência absolutamente assustadora para meu amigo. E, como se isso não bastasse, o cão ainda desenvolveu o hábito de passar pela porta e entrar no quintal do meu amigo, novamente latindo, rosnando e causando um terrível transtorno.
Meu amigo passou um longo tempo pensando em como punir o cão por seu mau comportamento. Enfim, ele teve a idéia de deixar a porta de seu quintal um pouco aberta e empilhar vários objetos pequenos e pesados em cima da porta. Assim, quando o cachorro empurrasse a porta para abri-la, os objetos cairiam, ensinando ao cão uma lição dolorosa que ele jamais esqueceria.
Depois de armar essa armadilha numa manhã de domingo, meu amigo ficou olhando pela janela esperando que o cachorro entrasse no quintal. O tempo passou e o cão não vinha. Depois de algum tempo, meu amigo iniciou seus cânticos diários, dando uma espiada pela janela de tempos em tempos. Mesmo assim, o cachorro deixou de aparecer. Em um determinado ponto de seus cânticos, meu amigo se deparou com uma prece de aspiração muito antiga conhecida como “Os Quatro Imensuráveis”, que começa com os seguintes versos:
Que todos os seres sencientes tenham a felicidade e as causas da felicidade.
Que todos os seres sencientes sejam livres do sofrimento e das causas do sofrimento.
Enquanto entoava essa prece, subitamente lhe ocorreu que o cachorro era um ser senciente e que, ao deliberadamente montar uma armadilha, causaria dor e sofrimento ao cão. “Se eu entoar isso”, ele pensou, “estarei mentindo. Talvez eu devesse parar de rezar”.
Mas aquilo não lhe pareceu correto, já que a prece dos Quatro Imensuráveis era parte de sua prática diária. Ele recomeçou a prece, fazendo os mais sinceros esforços para desenvolver compaixão em relação aos cães, mas, no meio do caminho, ele se interrompeu, pensando: “Não! Aquele cão é muito mau. Ele me prejudica muito. Não quero que ele seja livre do sofrimento ou atinja a felicidade.”
Ele pensou sobre a questão por algum tempo, até que finalmente lhe ocorreu uma solução. Ele poderia mudar uma pequena palavra da prece. Assim, começou a entoar:
Que ALGUNS seres sencientes tenham a felicidade e as causas
da felicidade. Que ALGUNS seres sencientes sejam livres do sofrimento e das causas do sofrimento.
Ele ficou bastante satisfeito com a solução. Concluídas as suas preces, foi almoçar e esqueceu o cachorro. Então, decidiu sair para um passeio antes do fim do dia. Na pressa, ele se esqueceu da própria armadilha e, quando abriu a porta do quintal, todos os objetos pesados que empilhara na borda da porta caíram em sua cabeça.
Foi, para dizer o mínimo, um rude despertar.
Contudo, como resultado de sua dor, meu amigo percebeu algo muito importante. Ao excluir alguns seres da possibilidade de atingir a felicidade e a liberdade do sofrimento, ele também excluiu a si mesmo. Reconhecendo que ele mesmo fora vítima de sua própria falta de compaixão, decidiu mudar sua tática. No dia seguinte, quando saiu para a sua caminhada matinal, meu amigo levou consigo um pedaço de tsampa — um tipo de massa feita de cevada, sal, chá e pedaços de manteiga —, que os tibetanos costumam comer no café-da-manhã. Assim que deu o primeiro passo para fora da porta, o cachorro do vizinho veio correndo, latindo e rosnando como de hábito; mas, em vez de praguejar contra o cão, meu amigo jogou para ele o pedaço de tsampa que estava levando. Completamente surpreso, o cão pegou o tsampa com a boca e começou a mastigar- ainda com os pêlos eriçados e rosnando, mas distraído do ataque pela oferta da comida.
Esse joguinho continuou pelos próximos dias. Meu amigo saía do quintal, o cão aparecia correndo e latindo e era surpreendido com o pedaço de tsampa que meu amigo lhe dava. Depois de alguns dias, meu amigo reparou que, apesar de continuar rosnando enquanto mastigava o tsampa, o cão começou a abanar o rabo. Ao final da semana, o cachorro não chegava mais pronto para o ataque, mas vinha correndo para cumprimentar meu amigo, esperando, feliz, um agrado. Mais tarde, o relacionamento entre os dois se desenvolveu a um ponto no qual o cão chegava trotando tranqüilamente ao quintal do meu amigo para se sentar com ele ao Sol, enquanto ele recitava suas preces diárias — nesse ponto, satisfeito por poder rezar pela felicidade e liberdade de todos os seres sencientes.
Assim que reconhecemos que os outros seres sencientes — pessoas, animais e até insetos — são exatamente como nós, que sua motivação básica é vivenciar a paz e evitar o sofrimento, quando alguém age de alguma maneira ou diz alguma coisa que se oponha a nossos desejos, somos capazes de ter alguma base para a compreensão: “Ah, tudo bem, essa pessoa (ou esse animal) está assumindo essa posição porque, assim como eu, ela quer ser feliz e evitar o sofrimento. E essa é a sua motivação básica. Não é nada pessoal; ela só está fazendo o que acha que precisa fazer.”A compaixão é a sabedoria espontânea do coração. Ela está sempre conosco. Ela sempre esteve e sempre estará. Quando surge em nós, é porque aprendemos a ver como somos, na realidade, fortes e seguros.
O CORPO EMOCIONAL
Não existe um único centro -para a emoção, da mesma forma como não existe nenhum centro -para jogar tênis.
– RlCHARD DAVIDSON, citado em Daniel Goleman, Destructive Emotions: How Can We Overcome Them?
Nossos corpos exercem uma função muito mais significativa na geração das emoções do que a maioria de nós reconhece. O processo começa com a percepção — que, como já sabemos, envolve informações transmitidas dos órgãos sensoriais para o cérebro, no qual uma representação conceitual de um objeto é criada. A maioria de nós supõe que, uma vez que o objeto é percebido e reconhecido, uma resposta emocional é produzida, o que, por sua vez, gera algum tipo de reação física.
Na verdade, é o oposto que ocorre. Ao mesmo tempo em que o tálamo envia suas mensagens para cima na hierarquia, para as regiões analíticas do cérebro, ele manda uma mensagem simultânea de “alerta vermelho” à amígdala, a pequena estrutura neuronal em forma de amêndoa situada na região límbica, que, conforme descrito anteriormente, governa as reações emocionais, em especial o medo e a raiva. Como o tálamo e a amígdala estão muito próximos um do outro, esse sinal de alerta vermelho é transmitido muito mais rapidamente do que as mensagens enviadas ao neocórtex. Ao recebê-la, a amígdala imediatamente aciona uma série de reações físicas que ativam o coração, os pulmões, os principais grupos de músculos nos braços, peito, abdômen, pernas e os órgãos responsáveis pela produção de hormônios como a adrenalina. Só depois que o corpo reage é que a parte analítica do cérebro interpreta as reações físicas em termos de uma emoção específica. Em outras palavras, não é que você veja algo assustador, sinta medo e depois corra. Você vê algo assustador, começa a correr (enquanto o coração dispara e a adrenalina inunda seu corpo) e então interpreta a reação do corpo como medo. Na maioria dos casos, entretanto, uma vez que o resto do seu cérebro alcançou o corpo, o que leva apenas alguns milissegundos, você é capaz de analisar suas reações, determinar se elas são apropriadas e ajustar o comportamento para se adequar a uma situação específica.
Na prática, os resultados dessa análise podem ser mensurados por uma tecnologia que só recentemente se tornou disponível aos cientistas. Emoções como medo, repulsa e aversão aparecem em parte como uma ativação intensificada dos neurônios no lóbulo frontal direito, a região do neocórtex localizada na parte da frente e do lado direito do cérebro. Enquanto isso, emoções como alegria, amor, compaixão e confiança podem ser mensuradas em termos de uma atividade relativamente maior nos neurônios do lóbulo frontal esquerdo.
Em alguns casos, como me disseram, nossa capacidade de avaliar as reações é inibida e surpreendemo-nos reagindo a uma situação sem pensar. Em casos como esse, a reação da amígdala é tão forte que provoca um curto-circuito na reação das estruturas do cérebro superior. Sem dúvida, esse poderoso mecanismo de “reações de emergência” traz benefícios importantes para a sobrevivência, permitindo que reconheçamos imediatamente alimentos que nos fizeram mal no passado ou que evitemos animais agressivos. Porém, como os padrões neuronais armazenados na amígdala podem ser facilmente acionados por eventos que têm até mesmo uma leve semelhança com algum incidente anterior, eles podem distorcer nossa percepção de eventos atuais.
ESTADOS E CARACTERÍSTICAS PESSOAIS
Tudo depende das circunstâncias.
– PATRUL RlNPOCHE, Tite Words of My Perfect Teacher, traduzido para o inglês pelo Padmakara Translation Group
Sob a perspectiva científica, as emoções são vistas em termos de eventos de curto prazo e condições mais duradouras. As emoções de curto prazo podem incluir a súbita explosão de raiva que sentimos quando estamos consertando alguma coisa em casa e, acidentalmente, martelamos o dedo ou o grande orgulho que sentimos quando recebemos um elogio sincero. Em termos científicos, esses eventos relativamente de curto prazo muitas vezes são chamados de estados.
As emoções que continuam ao longo do tempo e sobrevivem a uma variedade de situações, como o amor que alguém sente por uma criança ou um prolongado ressentimento por algo que ocorreu no passado, são chamadas de características pessoais ou qualidades emocionais, que a maioria de nós considera como indicadores do caráter de uma pessoa. Por exemplo, tendemos a dizer que uma pessoa que costuma ser sorridente e cheia de energia, e sempre tem coisas gentis a dizer para as outras, é “alegre”, enquanto tendemos a pensar em alguém que costuma ter um aspecto carrancudo, corre de um lado para o outro com freqüência e perde a paciência diante de pequenos incidentes como uma pessoa “tensa”.
A diferença entre os estados e as características é bem óbvia, mesmo para alguém que não seja formado em ciências. Se você martelar seu dedo, há muitas chances de que a raiva que você sente na hora passe rapidamente e a experiência não faça com que você tenha medo de martelos para o resto da vida. Já as características emocionais são mais sutis. Na maioria dos casos, somos capazes de reconhecer se acordamos ansiosos ou animados a cada dia, enquanto indicações de nosso temperamento gradativamente se tornam evidentes ao longo do tempo para as pessoas com as quais temos mais proximidade.
Os estados emocionais são explosões bastante rápidas de fofoca neuronal. As características, por outro lado, estão mais para o equivalente neuronal de relacionamentos de longo prazo. As origens dessas conexões duradouras podem variar. Algumas podem ter uma base genética, outras podem ser causadas por um trauma grave e outras ainda podem ter se desenvolvido como o resultado de experiências prolongadas ou repetidas — o treinamento de vida que recebemos quando crianças ou jovens. Qualquer que seja a origem, as características emocionais têm um efeito condicionante na forma como as pessoas caracterizam as experiências cotidianas e reagem á elas. Alguém predisposto ao medo ou à depressão, por exemplo, tem mais chances de encarar situações com um senso de temor, enquanto alguém predisposto à confiança encarará a mesma situação com muito mais equilíbrio e segurança.
FATORES CONDICIONANTES
O sofrimento segue um pensamento negativo como as rodas de uma carroça seguem o boi que a puxa.
— The Dhammapada,
A biologia e a neurociência nos dizem o que está ocorrendo em nossos cérebros quando vivenciamos emoções agradáveis ou desagradáveis. O budismo nos ajuda não somente a descrever tais experiências mais explicitamente para nós mesmos, mas também nos proporciona os recursos para alterar nossos pensamentos, sentimentos e percepções, a fim de que, em um nível básico e celular, possamos ser mais felizes, mais tranqüilos e seres humanos mais amáveis.
Independentemente de ser analisado subjetivamente, por meio da observação atenta ensinada pelo Buda, ou objetivamente, por meio da tecnologia disponível em laboratórios modernos, o que chamamos de mente emerge como uma colisão em constante mudança de dois eventos básicos: o simples reconhecimento (a mera consciência de que algo está acontecendo) e os fatores condicionantes (os processos que não somente descrevem o que percebemos, mas também determinam nossas reações). Toda atividade mental, em outras palavras, evolui da atividade combinada da pura percepção e de associações neuronais de longo prazo.
Uma das lições muito enfatizadas por meu professor Saljay Rinpoche foi que, se eu quisesse ser feliz, precisaria aprender a reconhecer e trabalhar com os fatores condicionantes que produzem reações compulsivas e ligadas às características pessoais. A essência de seu ensinamento era que qualquer fator pode ser entendido como compulsivo, já que obscurece nossa capacidade de ver as coisas como elas são, sem julgamentos. Se alguém estiver gritando conosco, por exemplo, raramente paramos para distinguir entre o puro reconhecimento “Ah, esta pessoa está levantando a voz e dizendo tais palavras” e a reação emocional “Esta pessoa é imbecil”. Em vez disso, tendemos a combinar a pura percepção e nossa reação emocional em um único pacote: “Esta pessoa está gritando comigo -porque é imbecil.”
Porém, se pudéssemos nos distanciar para analisar a situação sob uma perspectiva mais objetiva, poderíamos ver que a pessoa que está gritando conosco está nervosa com algo que pode não ter nada a ver conosco. Talvez ela tenha acabado de ser criticada pelo chefe e esteja com medo de ser despedida. Talvez ela tenha acabado de descobrir que alguém próximo a ela está muito doente. Ou talvez tenha discutido com um amigo ou um parceiro e não tenha conseguido dormir bem à noite. Infelizmente, a influência do condicionamento é tão forte que raramente nos lembramos de que podemos nos distanciar. E, como nossa compreensão é limitada, confundimos o pequeno recorte que conseguimos ver com toda a verdade. Como podemos reagir adequadamente quando nossa visão é tão limitada, quando não conhecemos todos os fatos? Se aplicarmos o princípio dos tribunais norte-americanos para falar “a verdade e nada mais que a verdade” sobre nossa experiência cotidiana, teremos de reconhecer que “a verdade” é que todo mundo só quer ser feliz. A coisa verdadeiramente triste é que a maioria das pessoas busca a felicidade de maneiras que acabam sabotando todas as suas tentativas. Se pudéssemos ver toda a verdade de qualquer situação, nossa única reação seria de compaixão.
Depois do trecho acima o autor fala sobre ”Aflições Mentais”, é uma leitura importante, que já publicamos no post ”Alflições Mentais” que você pode conferir clicando aqui. Após isso, conclui-se que ”se realmente você quiser descobrir um senso duradouro de paz e contentamento, precisa aprender a repousar sua mente. Só pelo repouso da mente, suas qualidades inatas podem ser reveladas. A forma mais simples de limpar a água obscurecida pela lama e outros sedimentos é permitir que a água se acalme. Da mesma forma, se você permitir que a mente repouse, a ignorância, o apego, a aversão e outras aflições mentais gradativamente se estabilizarão e a compaixão, a clareza e a expansão infinita da natureza real de sua mente se revelarão”. E é a partir dai que vamos continuar o trecho:
O CAMINHO
Uma mente disciplinada é um convite à verdadeira alegria.
– The Dhammapada,
ENCONTRANDO SEU EQUILÍBRIO
Repouse sem se fixar.
— GÕTSANGPA, Radiant Jewel Lamp, traduzido para o inglês por Elizabeth M. Callahan
NESTE PONTO, DEIXAREMOS PARA trás o domínio da ciência e da teoria por um momento e começaremos a discutir a aplicação prática, que, em termos budistas, é chamada de o Caminho. E gostaria de começar com uma história que ouvi há muito tempo sobre um homem que foi nadador profissional na juventude e que, na idade avançada, partiu em busca de um desafio que fosse tão envolvente quanto a natação em sua juventude. Decidiu tornar-se monge, achando que, da mesma forma como dominara as ondas do oceano, dominaria as ondas de sua mente. Ele encontrou um professor que respeitava, fez os votos e começou a praticar as lições que o mestre lhe dava. Como ocorre com muita freqüência, a meditação não foi fácil e ele voltou para buscar o aconselhamento de seu professor.
Para observar a prática do aluno, o professor pediu que ele se sentasse e meditasse. Depois de observar por algum tempo, o professor viu que o velho nadador estava tentando com afinco demais. Ele disse para o homem relaxar. Mas o nadador achava que até essa simples instrução era difícil de seguir. Quando tentava relaxar, sua mente perdia o foco e seu corpo amolecia. Quando tentava se concentrar, sua mente e seu corpo ficavam tensos. Finalmente, o professor perguntou: “Você sabe nadar, certo?”
“É claro”, o homem retrucou. “Melhor do que qualquer pessoa.”
“A habilidade de nadar vem de manter seus músculos completamente tensos”, o professor indagou, “ou completamente relaxados?”.
“Nenhum dos dois”, o velho nadador respondeu. “Você precisa encontrar equilíbrio entre a tensão e o relaxamento.”
“Bom”, o professor continuou. “Agora, deixe-me perguntar, quando você está nadando, se seus músculos estiverem tensos demais, é você que está criando a tensão em seus membros ou é alguma outra pessoa que o obriga a ficar tenso?”
O homem pensou um pouco antes de responder. Finalmente, ele disse: “Ninguém além de mim está me forçando a retesar meus músculos.”
O professor esperou um momento para que o velho nadador absorvesse a própria resposta. Então, ele explicou: “Se você perceber que sua mente está ficando tensa demais na meditação, é você mesmo quem está criando a tensão. Mas, se você se livrar de toda a tensão, sua mente fica solta demais e você fica sonolento. Como nadador, você descobriu o equilíbrio muscular adequado entre a tensão e o relaxamento.”
“Na meditação, você precisa encontrar o mesmo equilíbrio em sua mente. Se não encontrar esse equilíbrio, você nunca será capaz de perceber a harmonia perfeita em sua própria natureza. Uma vez que descobrir a harmonia perfeita em sua própria natureza, você será capaz de nadar em qualquer aspecto de sua vida, da mesma forma que nada na água.”
Em termos muito simples, a abordagem mais efetiva à meditação é tentar o máximo sem se concentrar demais nos resultados.
SABEDORIA E MÉTODO
Quando a mente não está alterada, está clara. Quando a água não está perturbada, está transparente. – 9- GYALWANG KARMAPA, Mahãmudrã: The Ocean ofDefinitive Meaning, traduzido para o inglês por Elizabeth M. Callahan
As instruções específicas que o professor deu ao velho nadador eram, na verdade, parte de uma lição mais ampla de encontrar o equilíbrio entre a sabedoria, ou o entendimento filosófico, e o método, a aplicação prática da filosofia. A sabedoria não faz sentido sem um meio prático de aplicá-la. E é aqui que o método entra: utilizar a mente para reconhecer a mente. De fato, esta é uma boa definição de meditação. A meditação não é uma questão de “entrar na absoluta felicidade”, “espaçar as sensações” ou “obter clareza” — dentre as várias expressões que ouvi de pessoas em minhas viagens ao redor do mundo. A meditação, na verdade, é uma prática muito simples de repousar no estado natural de sua mente presente e permitir-se estar simples e claramente presente a quaisquer pensamentos, sensações ou emoções que ocorrerem. Muitas pessoas resistem à idéia da meditação porque a primeira imagem que lhes vem à mente envolve horas e horas sentadas com as costas eretas, pernas cruzadas e uma mente absolutamente vazia. Nada disso é necessário.
Antes de mais nada, sentar-se com as pernas cruzadas e a coluna ereta requer certa prática — especialmente no Ocidente, onde é comum sentar-se de qualquer jeito na frente de um computador ou da televisão. Segundo, é impossível impedir que sua mente gere pensamentos, sentimentos e sensações. Pensar é a função natural da mente, da mesma maneira que a função natural do Sol é produzir luz e calor ou a de uma tempestade é produzir raios e chuva. Quando comecei a aprender sobre a meditação, ensinaram-me que tentar suprimir o funcionamento natural da minha mente era, na melhor das hipóteses, uma solução temporária. Na pior das hipóteses, se deliberadamente tentasse mudar minha mente, na verdade eu só estaria reforçando minha própria tendência de me fixar em pensamentos e sentimentos como se fossem inerentemente reais.
A mente está sempre ativa, sempre gerando pensamentos, da mesma forma que um oceano constantemente gera ondas. Não podemos parar nossos pensamentos, da mesma forma que não podemos parar as ondas do oceano. Repousar a mente em seu estado natural é muito diferente de tentar parar os pensamentos. A meditação budista não implica, de maneira alguma, fazer com que a mente fique vazia. Não há como atingir uma meditação sem pensamentos. Mesmo se você conseguisse parar seus pensamentos, não estaria meditando; somente estaria em um estado parecido com o de um zumbi.
Por outro lado, você pode perceber que, assim que olha para um pensamento, uma emoção ou uma sensação, ele desaparece como um peixe que subitamente se distancia nadando para águas mais profundas. Isso também é bom. Na verdade, é ótimo. A medida que você mantém esse senso de pura atenção ou consciência, mesmo quando pensamentos, sentimentos e assim por diante escapam, você está vivenciando a clareza e a vacuidade da verdadeira natureza de sua mente. A verdadeira questão da meditação é repousar na consciência pura, independentemente de algo ocorrer ou não. Não importa o que surgir para você, limite-se a ficar aberto e presente ao que surgir, e deixe que se vá. E, se nada ocorrer, ou se os pensamentos sumirem antes de você notá-los, repouse nessa clareza natural.
Como o processo da meditação poderia ser mais simples do que isso?
Outro ponto a levar em consideração é que, apesar de nos apegarmos a idéias de que algumas experiências são melhores, mais adequadas ou mais produtivas do que outras, na verdade, não há pensamentos bons ou pensamentos ruins. Existem apenas pensamentos. Assim que um grupo de neurônios fofoqueiros começa a produzir sinais que traduzimos como pensamentos ou sentimentos, outro grupo começa a comentar: “Ah, aquele foi um pensamento vingativo. Que pessoa ruim você é” ou “Você está com tanto medo, você deve mesmo ser incompetente”. A meditação é mais um processo de consciência sem julgamentos. Quando meditamos, adotamos a perspectiva objetiva de um cientista em relação à nossa própria experiência subjetiva. Isso pode não ser fácil no início. A maioria de nós é treinada na crença de que, se pensar que algo é bom, isso é bom e, se pensar que algo é ruim, isso é ruim. Mas, enquanto praticamos observar nossos pensamentos irem e virem, essas distinções rigorosas começam a se desfazer. O senso comum nos diz que tantos eventos mentais surgindo e desaparecendo no espaço de um minuto não podem todos ser verdadeiros.
Se continuarmos a nos permitir nos conscientizar da atividade de nossas mentes, gradualmente acabaremos por reconhecer a natureza transparente dos pensamentos, emoções, sensações e percepções que no passado consideramos sólidos e reais. É como se camadas de poeira e sujeira aos poucos fossem limpas da superfície de um espelho. A medida que nos acostumamos a olhar para a superfície límpida de nossas mentes, podemos ver através de toda a fofoca sobre quem e o que pensamos que somos e reconhecemos a essência iluminada de nossa verdadeira natureza.
POSTURA FÍSICA
Grande sabedoria reside no corpo.
– The Hevajra Tantra, traduzido para o inglês por Elizabeth M. Callahan
O Buda ensinou que o corpo é o suporte físico da mente. A relação entre ambos é como a relação entre um copo e a água que ele contém. Se você colocar um copo na borda de uma mesa ou sobre uma superfície que não seja plana, a água vai mudar de posição ou possivelmente vai entornar para fora do copo. Mas, se você colocar o copo em uma superfície plana e estável, a água nele contida permanecerá perfeitamente estável.
Do mesmo modo, a melhor forma de permitir que a mente repouse é gerando uma postura física estável. Em sua sabedoria, o Buda forneceu instruções para alinhar o corpo de uma forma equilibrada que permite que a mente permaneça relaxada e alerta ao mesmo tempo. Ao longo dos anos, esse alinhamento físico tornou-se conhecido como a postura dos sete pontos de Vairocha-na, um aspecto do Buda que representa a forma iluminada.
O primeiro ponto da postura é criar uma base estável para o corpo, o que significa, se possível, cruzar as pernas de modo que cada pé repouse na coxa da outra perna. Se não conseguir fazer isso, você pode cruzar um pé sobre a coxa oposta, repousando o outro sob a coxa oposta. Se não se sentir confortável em nenhuma dessas posições, cruze as pernas. Você pode também se sentar confortavelmente em uma cadeira, com seus pés repousando de forma equilibrada no chão. O objetivo é criar uma fundação física que seja ao mesmo tempo confortável e estável. Se sentir muita dor nas pernas, você não poderá repousar sua mente porque ficará preocupado demais com a dor. É por isso que existem tantas opções disponíveis em relação a esse primeiro ponto.
O segundo ponto é repousar suas mãos no colo logo abaixo do umbigo, com as costas de uma das mãos repousando na palma da outra. Não importa qual mão esteja colocada sobre a outra e você pode trocar de posição a qualquer momento durante a prática – se, por exemplo, a palma coberta ficar quente depois de um tempo. Também é possível repousar as mãos com as palmas para baixo sobre os joelhos.
O terceiro ponto é permitir um pouco de espaço entre os braços e o torso. Os textos budistas clássicos se referem a isso como “manter seus braços como um abutre”, posição que pode facilmente ser confundida com espaçar suas escapulas (omoplatas), como se você fosse algum tipo de ave predatória.
Um dia, quando ensinava em Paris, eu estava andando por um parque quando vi um homem sentado de pernas cruzadas no chão, batendo os ombros repetidamente como se fossem asas, para frente e para trás. Quando passei por ele, ele me reconheceu como um monge (os robes vermelhos são inconfundíveis) e me perguntou: “Você medita?”
“Sim”, assenti.
“Você tem algum problema com a meditação?”, ele perguntou. “Não muito”, eu disse.
Nós ficamos por um momento sorrindo um para o outro – afinal, era um belo dia de Sol em Paris — e, então, ele disse: “Gosto muito da meditação, mas há uma instrução que me deixa louco.” Naturalmente, perguntei qual era o problema.
“A posição dos braços”, ele respondeu, um pouco envergonhado. “É mesmo?”, retruquei. “Como você aprendeu a meditar?”
“Em um livro”, ele respondeu.
Eu perguntei o que o livro dizia sobre a posição dos braços.
“Dizia que você deve manter seus braços como as asas de um abutre”, ele disse e começou a bater seus ombros para trás e para frente, tal como o vira fazer quando me aproximei. Depois de observá-lo bater os braços por alguns segundos, pedi para ele parar.
“Deixe-me dizer uma coisa eu disse. “O verdadeiro ponto dessa instrução é manter um pouco de espaço entre os braços e o tronco, só o suficiente para se certificar de que seu peito esteja aberto e relaxado, de modo que você possa respirar bem e livremente. Os abutres em repouso sempre mantêm um pouco de espaço entre as asas e os corpos. É isso que a instrução significa. Não há necessidade de bater seus braços. Afinal, você só está tentando meditar. Você não está tentando voar.”
A essência desse ponto da postura física é encontrar equilíbrio entre seus ombros, de modo que um não fique abaixo do outro, ao mesmo tempo em que mantém seu peito aberto para permitir algum “espaço” para respirar. Algumas pessoas têm braços muito longos ou torsos muito largos — especialmente se tiverem passado muito tempo se exercitando em uma academia. Se você por acaso se incluir nessa categoria, não se force a manter artificialmente um pouco de espaço entre os braços e o tronco. Permita que seus braços repousem naturalmente, de modo que não comprimam o peito.
O quarto ponto da postura física é manter sua coluna o mais ereta possível – como dizem os textos clássicos, “como uma seta”. Mas também aqui é importante encontrar o equilíbrio. Se você tentar se sentar ereto demais, acabará se voltando para frente, com todo o corpo tremendo de tensão. Já vi isso acontecer muitas vezes com alunos que estavam preocupados demais em fazer com que suas colunas ficassem absolutamente eretas. Por outro lado, se você se permitir ficar relaxado demais, quase certamente acabará comprimindo os pulmões, o que dificultará a respiração e pressionará vários órgãos internos, o que pode ser uma fonte de desconforto físico.
O quinto ponto envolve deixar o peso de sua cabeça repousar igualmente sobre o pescoço, de modo que não comprima a traquéia ou que a cabeça não fique para trás comprimindo as vértebras, os sete pequenos ossos na parte superior de sua coluna, o que se mostra vital para transmitir os sinais neuronais das partes inferiores de seu corpo para o cérebro. Quando encontrar a posição que lhe é adequada, provavelmente notará que seu queixo está pendendo um pouco mais na direção do pescoço do que o normal. Seja ficou sentado na frente do computador por horas com a cabeça levemente inclinada para trás, você imediatamente entenderá como se sentirá mais confortável ao fazer esse simples ajuste.
O sexto ponto refere-se à boca, que deve repousar naturalmente, de modo que seus dentes e lábios fiquem levemente separados. Se possível, você pode permitir que a ponta da língua toque gentilmente o céu da boca, logo atrás dos dentes. Não force a língua a tocar o céu da boca; apenas permita que ela gentilmente repouse lá. Se sua língua for curta demais para alcançar o palato sem esforço, não se preocupe. O mais importante é permitir que a língua repouse naturalmente.
O último ponto da postura de meditação envolve os olhos. A maioria das pessoas que são iniciantes na meditação sente-se mais confortável se mantiver os olhos fechados. Elas consideram que é mais fácil, dessa forma, permitir que a mente repouse e vivenciar um senso de paz e tranqüilidade. Não há problemas com isso no começo. Uma das coisas que aprendi, entretanto, é que manter os olhos fechados facilita o apego a um senso artificial de tranqüilidade.
Assim, mais cedo ou mais tarde, depois de alguns dias de prática, é melhor manter seus olhos abertos ao meditar, de modo que possa ficar alerta, desperto e vigilante. Isso não significa olhar diretamente para frente sem piscar, mas apenas manter os olhos abertos como normalmente ficam ao longo do dia.
Na verdade, a postura dos sete pontos de Vairochana é um conjunto de orientações. A meditação é uma prática pessoal e cada pessoa é diferente da outra. O mais importante é encontrar para si o equilíbrio apropriado entre a tensão e o relaxamento.
Há também uma postura de meditação breve, de dois pontos, que pode ser adotada em situações nas quais pode ser inconveniente ou impossível adotar totalmente a postura mais formal, de sete pontos. As instruções são muito simples: apenas mantenha sua coluna ereta e repouse o corpo da forma mais solta e relaxada possível. A postura de meditação de dois pontos é muito útil ao longo do dia, enquanto você conduz as atividades diárias, como dirigir, andar pela rua, fazer compras ou cozinhar. Essa postura de dois pontos, por si só, quase automaticamente produz um senso de consciência descontraída — e a melhor parte é que, quando assume essa postura, ninguém vai notar que você está meditando!
POSTURA MENTAL
Se a própria mente que está emaranhada em uma série de nós for solta, ela, com certeza, será libertada.
Os mesmos princípios por trás de encontrar uma postura física descontraída e alerta se aplicam a encontrar o mesmo tipo de equilíbrio em sua mente. Quando sua mente estiver naturalmente equilibrada entre o relaxamento e a atenção, suas qualidades inatas emergem de modo espontâneo. Essa foi uma das coisas que aprendi durante aqueles três dias que passei sentado sozinho em meu quarto no retiro, determinado a observar minha mente. Sentado, fiquei me lembrando de como meus professores tinham me dito que, quando a água fica calma, a lama, a sujeira e outros sedimentos gradualmente se separam e repousam no fundo, dando-lhe uma chance de ver a água e tudo o que passar por ela de modo muito claro. Da mesma forma, se você permanecer em um estado de relaxamento mental, o “sedimento mental” de pensamentos, emoções, sensações e percepções naturalmente se acalma e a clareza inerente da mente é revelada.
Como no caso da postura física, o ponto essencial da postura mental é encontrar um equilíbrio. Se sua mente estiver tensa ou concentrada demais, você acabará ficando ansioso em ser um bom meditador. Se sua mente estiver solta demais, você acaba levado pelas distrações ou caindo em uma espécie de embotamento. O melhor é achar um caminho intermediário entre a grande tensão motivada pela perfeição e um tipo de desencanto como “Ah, não, preciso meditar”. A abordagem ideal é entregar-se à liberdade de se lembrar que não importa se sua prática é boa ou ruim. O importante é a intenção de meditar. Só isso já é o suficiente.
SIMPLESMENTE REPOUSAR: O PRIMEIRO PASSO
Observe naturalmente a essência do que ocorrer. KARMA CHAGMEY RINPOCHE,
O BUDA RECONHECIA QUE NÃO existem duas pessoas exatamente iguais, que todos nós nascemos com uma combinação única de habilidades, qualidades e temperamentos. Como uma demonstração de sua grande visão e compaixão, ele foi capaz de desenvolver uma enorme variedade de métodos por meio dos quais todas as pessoas podem chegar à experiência direta de sua verdadeira natureza e libertar-se totalmente do sofrimento.
A maioria dos ensinamentos do Buda foi elaborada espontaneamente de acordo com as necessidades das pessoas que estavam perto dele em um dado momento. A habilidade de reagir espontaneamente na forma correta é uma das marcas de um mestre iluminado — o que funciona muito bem enquanto o mestre iluminado estiver vivo. Depois que o Buda morreu, entretanto, seus primeiros alunos tiveram de descobrir um meio de organizar esses ensinamentos espontâneos, de forma que pudessem ser utilizados pelas gerações seguintes. Felizmente, os primeiros seguidores do Buda eram muito bons em criar classificações e categorias e conseguiram encontrar uma maneira de organizar asvárias práticas de meditação que o Buda ensinou em duas categorias básicas: métodos analíticos e métodos não-analíticos.
Os métodos não-analíticos costumam ser ensinados primeiro por fornecerem os meios para acalmar a mente. Quando a mente está calma, é muito mais fácil conscientizar- se dos vários pensamentos, sentimentos e sensações sem se prender a eles. As práticas analíticas envolvem olhar diretamente para a mente no meio da experiência e são normalmente ensinadas depois que a pessoa adquire prática em aprender a repousar a mente simplesmente como ela é. Além disso, como a experiência de observar diretamente a mente pode provocar muitas questões, as práticas analíticas são mais bem conduzidas sob a supervisão de um professor que tenha sabedoria e experiência para compreender essas questões e fornecer respostas que sejam unicamente adequadas a cada aluno. Por esse motivo, aqui, as práticas de meditação nas quais desejo me concentrar são as relacionadas ao ato de repousar e acalmar a mente.
Em sânscrito, a abordagem não-analítica é conhecida como shamata. Em tibetano, ela é chamada de shinay, uma palavra composta de duas sílabas: shi, que significa “paz” ou “tranqüilidade”, e nay, que significa “residir” ou “ficar”. Assim, essa abordagem é conhecida como permanecer em calma — apenas permitindo que a mente repouse calmamente da forma como ela é. Trata-se de um tipo básico de prática por meio do qual repousamos naturalmente a mente em um estado de consciência relaxada para permitir que a natureza da mente se revele.
MEDITAÇÃO SEM OBJETO
Corte a raiz de sua própria mente: repouse na pura consciência.
— TlLOPA, Ganges Mahãmudrã,
Na primeira vez em que meu pai me ensinou sobre repousar naturalmente a mente, “na pura consciência”, eu não fazia idéia do que ele estava falando. Como eu poderia “repousar” minha mente sem ter nada sobre o que ela pudesse repousar?
Felizmente, meu pai já viajara um pouco ao redor do mundo, já conhecera algumas pessoas e conversara com elas sobre suas vidas, seus problemas e sucessos. Essa é uma das grandes vantagens de vestir os robes budistas. As pessoas tendem a pensar que você é sábio ou importante e ficam mais dispostas a se abrir e lhe contar detalhes sobre suas vidas.
O exemplo que meu pai usava sobre repousar a mente veio de algo que ele ouviu do recepcionista de um hotel, que sempre ficava feliz em terminar seu dia de trabalho, o qual consistia em ficar atrás de um balcão por oito horas, recebendo e despedindo-se de pessoas, ouvindo suas reclamações sobre os quartos e argumentando interminavelmente sobre as despesas em suas contas. Ao final do turno, o recepcionista estava tão exausto que tudo o que queria era chegar em casa e tomar um longo banho quente. E, depois do banho, ele ia para o quarto, deitava-se na cama, soltava um suspiro profundo e relaxava. As próximas horas eram só dele: sem precisar ficar de pé vestindo um uniforme, sem ouvir reclamações e sem olhar para o computador para confirmar reservas e checar a disponibilidade dos quartos.
E isso significa repousar a mente em uma meditação shinay sem objeto: como se você tivesse acabado, naquele instante, um longo dia de trabalho. Simplesmente relaxe. Você não precisa bloquear os pensamentos, as emoções ou as sensações que surgirem, mas também não precisa segui-los. Somente repouse no presente aberto, limitando- se a permitir que o que tiver de acontecer aconteça. Se os pensamentos ou as emoções surgirem, permita-se conscientizar-se deles. A meditação shinay sem objeto não significa deixar que sua mente vagueie sem objetivo por fantasias, memórias ou divagações. Ainda há uma presença da mente que pode ser aproximadamente descrita como um centro de consciência. Você pode não estar se fixando em algo específico, mas ainda está consciente, ainda presente para o que acontece aqui e agora.
Quando meditamos nesse estado sem objeto, estamos, na verdade, repousando a mente em sua clareza natural, inteiramente indiferentes à passagem dos pensamentos e das emoções. Essa clareza natural – que está além de qualquer compreensão dualista de sujeito e objeto — está sempre presente para nós da mesma forma que o espaço está sempre presente. Em certo sentido, a meditação sem objeto implica aceitar quaisquer nuvens e neblina que podem obscurecer o céu e, ao mesmo tempo, reconhecer que o céu em si permanece inalterado mesmo quando é obscurecido. Se você já viajou de avião, provavelmente já notou que, acima das nuvens, neblina ou chuva, o céu está sempre aberto e claro. Isso parece muito comum. Da mesma forma, a natureza búdica está sempre aberta e clara mesmo quando os pensamentos e as emoções a obscurecem. Apesar de poder parecer muito comum, todas as qualidades de clareza, vacuidade e compaixão estão contidas nesse estado.
A prática shinay sem objeto é a abordagem mais básica para repousar a mente. Você não precisa observar seus pensamentos ou emoções — práticas que discutirei mais adiante — e não precisa tentar bloqueá-los. Tudo o que você precisa fazer é repousar na consciência de sua mente desempenhando suas funções com um tipo de inocência infantil, um senso de empolgação: “Uau! Veja quantos pensamentos, sensações e emoções estão passando pela minha consciência neste exato momento!”
Em certo sentido, a prática shinay sem objeto é similar a olhar para a grande extensão de espaço, em vez de se concentrar nas galáxias, estrelas e planetas que se movem nele. Os pensamentos, as emoções e as sensações vão e vêm na consciência, da mesma forma que galáxias, estrelas e planetas se movimentam pelo espaço. Da mesma forma como o espaço não é definido pelos objetos que se movem nele, a consciência não é definida ou limitada pelos pensamentos, emoções, percepções e assim por diante que ela apreende. A consciência simplesmente é. E a prática shinay sem objeto envolve repousar no fato de a consciência ser. Algumas pessoas consideram a prática muito fácil; outras a consideram muito difícil. Trata-se mais de uma questão de temperamento individual do que de competência ou habilidade.
As instruções são simples. Se você estiver praticando formalmente, é melhor manter a postura dos sete pontos da melhor forma possível. Se você não puder manter uma postura formal — se estiver dirigindo, por exemplo, ou andando pela rua —, então mantenha a coluna ereta e o resto do corpo relaxado e equilibrado. Em seguida, permita que sua mente relaxe em um estado de pura consciência do presente. Inevitavelmente, todos os tipos de pensamentos, sensações e sentimentos passarão pela sua mente. É o que se espera, já que você não treinou para repousar a mente. É como dar início a um programa de treinamento com pesos em uma academia de ginástica. No começo, você consegue levantar apenas algumas centenas de gramas em algumas poucas repetições antes de seus músculos se cansarem. Mas, se continuar a se exercitar, gradualmente você perceberá que consegue levantar mais peso e fazer mais séries.
Da mesma forma, aprender a meditar é um processo gradual. No começo, você pode ser capaz de permanecer parado somente por alguns segundos de uma vez antes que pensamentos, emoções e sensações comecem a borbulhar na superfície. A instrução básica é não seguir esses pensamentos e emoções, mas apenas se conscientizar de tudo o que se passa em sua consciência, como ela é. Não importa o que passar pela sua mente, não se concentre nisso e não tente suprimir nada. Limite-se a observar à medida que vem e vai.
Quando seguir um pensamento, você perde o contato com o que está ocorrendo aqui e agora, e começa a imaginar todo tipo de fantasias, julgamentos, memórias e outros cenários que não têm nada a ver com a realidade do momento presente. E, quanto mais você se permite prender-se a esse tipo de passeio mental, mais fácil se torna desviar-se da amplitude do presente momento.
O propósito da meditação shinay é lenta e gradualmente romper esse hábito e permanecer em um estado de consciência presente — aberto a todas as possibilidades do momento presente. Não se critique ou se condene quando se pegar seguindo os pensamentos. O fato de você se ter apanhado revivendo um evento passado ou projetando-se no futuro é suficiente para trazê-lo de volta ao momento presente e fortalecer sua intenção de meditar. Sua intenção de meditar enquanto estiver envolvido na prática é um fator crucial.
Também é importante proceder lentamente. Meu pai tomava muito cuidado ao dizer a seus novos alunos, incluindo a mim, que a abordagem mais efetiva no começo é repousar a mente por períodos muito curtos várias vezes ao dia. De outra forma, ele dizia, você corre o risco de se entediar ou se desapontar com seu progresso e acabar desistindo de tentar. “De gota em gota”, os textos antigos dizem, “um copo se enche”. Assim, quando começar, não imponha a si mesmo uma meta ambiciosa de se sentar para meditar por vinte minutos. Em vez disso, tente praticar um minuto ou até meio minuto — utilizando aqueles poucos segundos nos quais você se encontra disposto a ou até desejando fazer uma pausa da agitação do dia- a-dia para observar sua mente, em vez de se perder em divagações. Praticando dessa forma, “uma gota por vez”, você se verá gradualmente se libertando das limitações mentais e emocionais que são a fonte de fadiga, decepção, raiva e desespero e descobrirá dentro de si uma fonte ilimitada de clareza, sabedoria, diligência, paz e compaixão.
Trecho do Livro ”A Alegria de Viver – Descobrindo o Segredo da Felicidade”de Mingyur Rinpoche.