RESPONSABILIDADE UNIVERSAL

Acredito que cada um de nossos atos tem uma dimensão universal. Por  causa disso, a disciplina ética, a conduta íntegra e um discernimento cuidadoso são elementos decisivos para uma vida feliz e significativa. Vamos agora examinar essa proposição no que refere à comunidade em geral.

No passado, as famílias e as pequenas comunidades podiam existir de forma mais ou menos independente umas das outras. Se levassem em conta o bem-estar dos vizinhos, tanto melhor, mas eram capazes de sobreviver bastante bem isoladas. Não é mais assim. A realidade atual tão complexa e, ao menos no plano material, tão claramente interligada, que é preciso ver as coisas sob novo ângulo. A economia moderna ilustra isso de modo significativo. Uma quebra na bolsa de valores de um dos lado do globo pode ter conseqüências diretas sobre as economias de países situados do lado oposto. De maneira semelhante, nossas conquistas tecnológicas são agora de tal ordem, que nossas atividades têm um efeito indiscutível no meio ambiente. E o próprio tamanho da população mundial remete para o fato de não podermos mais nos permitir ignorar os interesses dos outros. Esses interesses estão na realidade tão entrelaçados, que, ao atender aos nossos interesses, estamos beneficiando os dos outros, mesmo que não tenha sido essa a nossa intenção. Quando duas famílias utilizam a mesma fonte de água, cuidar para não fique poluída é uma atitude que beneficia ambas.

Em vista disso, estou convencido de que é imprescindível cultivarmos o que chamo de responsabilidade universal. Talvez não seja esta a tradução exata do termo tibetano que tenho em mente, chi sem, que significa, literalmente, “consciência” (sem) universal (chi). Embora em tibetano a idéia de responsabilidade esteja mais implícita do que expressa formalmente, não há dúvida de que está presente. Quando digo que, através da consideração pelo bem-estar dos outros, podemos – e devemos -desenvolver uma noção de responsabilidade universal, não estou firmando que cada um seja diretamente responsável pela ocorrência de – para citar um exemplo – guerras e fome em diferentes partes do mundo. É verdade que faz parte da prática do budismo lembrarmos constantemente nosso dever de servir a todos os seres sensíveis de todos os universos. De modo semelhante, os deístas reconhecem que a devoção a Deus implica devotar–se também ao bem-estar de todas as Suas criaturas. Mas é evidente que certas coisas, como a pobreza de uma única aldeia a dez mil quilômetros de distância, estão completamente fora do alcance de um só indivíduo. A questão não é, portanto, admitir culpa, mas, outra vez, reorientar nossos corações e mentes para os outros. Desenvolver uma noção de responsabilidade universal – da dimensão universal de cada um de nossos atos e do igual direito de todos os outros à felicidade – é desenvolver uma disposição de espírito na qual preferimos aproveitar qualquer oportunidade de beneficiar os outros do que apenas cuidar de nossos restritos interesses pessoais. E apesar de sermos apenas capazes de nos preocuparmos com o que está fora de nosso alcance, aceitamos isso como parte das limitações da vida e nos concentramos em fazer o que podemos.

Uma das grandes vantagens de desenvolver essa noção de responsabilidade universal é nos tornarmos sensíveis a todos os seres – e não só aos que estão mais perto de nós. Passamos a ver melhor a necessidade de cuidar antes de tudo daqueles membros da família humana que sofrem mais. Reconhecemos a necessidade de procurar não causar divergências entre nossos semelhantes. E nos tornamos mais conscientes da importância imensa de promover um estado de satisfação.

Quando negligenciamos o bem-estar dos outros e ignoramos a dimensão universal de nossos atos, fazemos uma distinção entre nossos interesses e os interesses dos outros. Não nos damos conta da uniformidade da família humana. Sem dúvida, é fácil apontar numerosos fatores que se opõem a essa noção de unidade: diferenças de crença religiosa, de língua, de costumes, de culturas, etc. Se, porém, damos demasiada ênfase a diferenças superficiais e por causa delas fazemos rígidas discriminações, não há como evitar um acréscimo de sofrimento e desgaste para nós e para os outros. O que não faz sentido. Já temos problemas demais neste mundo. Todos, sem exceção, temos de enfrentar a morte, a velhice e as doenças, sem falar nas perdas e decepções. Estas não temos mesmo como evitar. Não é o bastante? Para que criar problemas desnecessários por causa de maneiras diferentes de pensar ou peles de cores diferentes?

Avaliando essas realidades, vemos que a ética e a necessidade pedem uma mesma reação. Para superar nossa tendência de ignorar as necessidades e direitos dos outros, precisamos continuamente lembrar a nós mesmos o que é óbvio: que basicamente todos somos iguais. Eu venho do Tibet, e a maioria dos leitores deste livro não será de tibetanos. Se eu encontrasse cada leitor em pessoa e olhasse para ele com cuidado, verificaria que quase todos têm de fato características superficialmente diferentes das minhas. Se me concentrasse nessas diferenças, iria com certeza ampliá-las e transformá-las em algo importante. Mas o resultado seria ficarmos mais distantes do que próximos. Se, ao contrário, eu olhasse para cada um como alguém de minha própria espécie – um ser humano como eu, com um nariz, dois olhos, etc. -, ignorando diferenças de for-ma e cor, a noção de distância automaticamente se dissiparia. Eu veria que somos feitos da mesma carne humana e que, além disso, assim como eu quero ser feliz e não sofrer, todos eles também querem. Ao reconhecer isso, eu me sentiria naturalmente inclinado para eles. E a consideração por seu bem-estar viria quase que espontaneamente.

Entretanto, embora a maioria das pessoas esteja disposta a aceitar a necessidade de unidade dentro de seu próprio grupo e, junto com isso, a necessidade de levar em consideração o bem-estar dos outros, a tendência é descuidar-se do resto da humanidade. Ao fazê-lo, deixamos de lado não só a natureza interdependente da realidade mas a própria realidade de nossa situação. Se fosse possível um grupo, ou uma raça, ou uma nação, adquirir satisfação e realização completas mantendo-se totalmente independente dentro dos limites de sua própria sociedade, então talvez se pudesse argumentar que a discriminação dos forasteiros é justificável. Mas não é o caso. Na realidade, neste nosso mundo moderno, não se considera mais que os interesses de uma comunidade em particular estejam confinados a suas próprias fronteiras.

Cultivar a noção de satisfação é, portanto, crucial para que se mantenha uma coexistência pacífica. A insatisfação traz a cobiça, que nunca pode ser saciada. Se o que o indivíduo procura é por natureza infinito, como a qualidade da tolerância, a satisfação passa a ser irrelevante: quanto mais estimulamos nossa capacidade para a tolerância, mais tolerantes nos tornamos. No que se refere a qualidades espirituais, a satisfação não é necessária, pois é desejável que estejamos sempre em busca de crescimento. Mas se o que buscamos é finito, o perigo é que, ao conquistálo-, não fiquemos satisfeitos. No caso do desejo da riqueza, ainda que a pessoa conseguisse tomar conta da economia de todo um país, é muito provável que em seguida começasse a pensar em conquistar a de outros países. O desejo pelo que é finito nunca é de fato satisfeito. Por outro lado, quando desenvolvemos a satisfação, nunca nos decepcionamos nem nos desiludimos.

A falta de satisfação – que vem a ser a ganância – planta a semente da inveja e da competitividade agressiva e leva a uma cultura de excessivo materialismo. A atmosfera negativa que estabelece cria um contexto propício a todos os tipos de doenças sociais que trazem sofrimento aos membros da comunidade. Se a ganância e a inveja não tivessem efeitos colaterais, talvez fossem um problema a ser resolvido por apenas aquela comunidade. Porém, mais uma vez, este não é o caso. Em particular, a falta de satisfação é uma das origens da destruição de nosso meio ambiente e, conseqüentemente, dos males causados a outros. Que outros? Principalmente os pobres e os fracos. Em uma mesma comunidade, os ricos podem mudar de endereço, digamos, para evitar os efeitos dos altos níveis de poluição, mas os pobres não têm escolha.

Também os povos de nações mais pobres, que não têm recursos para lidar com este tipo de problema, sofrem por causa dos excessos das nações ricas, além de terem de enfrentar os problemas resultantes da poluição gerada por sua tecnologia atrasada. As próximas gerações certamente vão sofrer. E nós também. Como? Temos de viver em um mundo que estamos ajudando a criar. Se a nossa opção é não modificar nosso comportamento com relação à igualdade de direitos dos outros, muito em breve começaremos a sofrer as conseqüências negativas dessa atitude. Imaginem a poluição produzida por mais dois bilhões de carros, por exemplo.

Afetaria todos. Sendo assim, a satisfação não é meramente uma questão ética. Se desejamos evitar o aumento do sofrimento, isto é uma questão de necessidade. Esta é uma das razões por que acredito que a cultura de incessante crescimento econômico precisa ser questionada. Do meu ponto de vista, ela promove insatisfação e acarreta um grande número de problemas, tanto sociais quanto ambientais. A devoção irrestrita ao desenvolvimento material costuma vir acompanhada pelo descaso por suas implicações para a comunidade mais ampla. Mais uma vez, a questão não é haver uma defasagem entre o Primeiro e o Terceiro Mundos, Norte e Sul, desenvolvidos e subdesenvolvidos, ricos e pobres, se é imoral e errada. São as duas coisas. De certa forma, o mais significativo é o fato de essa desigualdade ser uma fonte de dificuldades para todos. Se a Europa, por exemplo, constituísse o mundo inteiro e não um lugar onde vivem dez por cento da população mundial, a ideologia predominante de crescimento sem fim talvez fosse justificável. Porém, o mundo não é só a Europa, e em outros lugares há gente passando fome. E onde existem desequilíbrios tão profundos as conseqüências são negativas para todos, mesmo que não sejam diretas, já que os ricos também sentem os sintomas da pobreza em suas vidas diárias: as câmeras de vigilância e as grades protetoras nas janelas denunciam a perda de tranqüilidade.

A responsabilidade universal também nos leva a um compromisso com o princípio da honestidade. O que quero dizer com isso? Podemos pensar em honestidade e desonestidade nos, mesmos termos da relação entre aparência e realidade. As vezes eles são concomitantes, mas muitas vezes não. Porém, quando são, isso é honestidade como a entendo. Somos honestos quando nossas ações são o que parecem ser. Quando aparentamos ser o que na realidade não somos, despertamos suspeitas que se transformam em medo. E o medo é algo que todos queremos evitar. Inversamente, quando nossa interação com os que nos estão próximos é aberta e sincera em tudo o que dizemos, pensamos e fazemos, ninguém precisa ter medo de nós. Isso vale tanto para as pessoas quanto para as comunidades. Quando compreendemos a importância da honestidade em tudo o que fazemos, constatamos que, em última análise, não há diferença entre as necessidades individuais e as necessidades de toda a comunidade. Os números diferem, mas o desejo e o direito de ninguém ser enganado são os mesmos. Portanto, quando assumimos o nosso compromisso pessoal com a verdade, ajudamos a diminuir o nível de desentendimentos, dúvidas e temores da sociedade. De uma forma modesta mas significativa, criamos condições para um mundo mais feliz.

A questão da justiça está intimamente ligada tanto à  responsabilidade universal quanto à questão da honestidade. A justiça implica a obrigação de agir quando se tem consciência da injustiça. Não o fazer é um erro, se bem que não seja um erro que nos torne intrinsecamente maus. Se a hesitação provém do egocentrismo, porém, temos aí um problema. Se nossa reação à injustiça é perguntar: “O que vai acontecer comigo se eu me manifestar? Talvez isso indisponha as pessoas contra mim”, nossa atitude é antiética porque não estamos levando em conta as implicações mais amplas de nosso silêncio. É também inadequado e pouco salutar no que se refere ao direito dos outros de evitar o sofrimento e serem felizes. 0 mesmo se aplica – talvez com mais propriedade – quando governos ou instituições afirmam que “isso cabe a nós” ou “essa é uma questão interna”. Nessas circunstâncias, manifestar-se é não só um dever pessoal como sobretudo um serviço que se presta aos outros.

Pode-se alegar que nem sempre é possível agir assim, que precisamos ser “realistas”. Nossa situação talvez não nos permita agir em todas as ocasiões de acordo com nossas responsabilidades. Nossas famílias podem ser prejudicadas se, por exemplo, protestarmos contra alguma injustiça. Contudo, mesmo tendo de considerar a realidade diária de nossas vidas, é imprescindível manter uma perspectiva mais abrangente. Temos de avaliar nossas necessidades individuais com relação às necessidades dos outros e examinar como nossas ações e omissões vão afetá-las a longo prazo. É difícil criticar aqueles que temem por seus entes queridos. Mas de vez em quando será necessário correr riscos para beneficiar a comunidade em geral.

A noção de responsabilidade pelos outros também significa que, como indivíduos e como uma sociedade de indivíduos, temos o dever de zelar por cada membro de nossa sociedade. Indistintamente, seja qual for a sua capacidade física ou mental. Como nós, eles têm direito à felicidade e a não sofrer. É preciso evitar a todo custo que aqueles que padecem cruelmente sejam isolados como se fossem um estorvo. O mesmo se aplica aos doentes e marginalizados. Afastá-los seria acrescentar-lhes mais sofrimento. Se estivéssemos na mesma situação, gostaríamos de contar com a ajuda dos outros. Precisamos, portanto, criar garantias para que os enfermos e incapacitados jamais se sintam desamparados, rejeitados ou desprotegidos. Creio, na verdade, que a afeição que demonstramos a tais pessoas é a medida de nossa saúde espiritual não só no plano individual como no da sociedade como um todo.

Posso parecer irremediavelmente idealista com toda essa conversa sobre responsabilidade universal. Seja como for, é uma idéia que venho expondo publicamente desde minha primeira visita ao Ocidente, em 1973. Naquela época havia muito ceticismo a respeito. Nem sempre era fácil despertar o interesse das pessoas para o conceito de paz mundial. Fico satisfeito ao observar que, hoje em dia, uma quantidade cada vez maior de pessoas começa a reagir de modo favorável a essas idéias.

Sinto que os muitos acontecimentos extraordinários que a humanidade vivenciou no decorrer do século XX deram-lhe mais maturidade. Nas décadas de 50 e 60, e em alguns lugares mais recentemente, muita gente achava que os conflitos deveriam ser resolvidos com guerras. Hoje, apenas uma minoria ainda pensa assim. Enquanto no início do século muitos acreditavam que o progresso e o desenvolvimento dentro da sociedade deveriam ser obtidos à custa de estrita e opressiva arregimentação política, o colapso do fascismo, seguido mais tarde pelo desaparecimento da chamada Cortina de Ferro, revelou que o projeto era inviável. Foi mais uma lição da História provando que a ordem imposta pela força tem vida curta. Além disso, o consenso (também entre alguns budistas) de que ciência e espiritualidade são incompatíveis já não se mantém com tanta firmeza. Atualmente, à medida que se aprofundam os conhecimentos científicos sobre a natureza da realidade, essa percepção vai mudando. Por causa disso, as pessoas estão começando a demonstrar mais interesse por aquilo que chamei de nosso mundo interior, ou seja, a dinâmica e as funções da consciência, ou espírito: nossos corações e mentes. Houve também em todo o mundo um aumento da conscientização ambiental e um reconhecimento cada vez maior de que nem os indivíduos nem as nações podem resolver seus problemas sozinhos, de que precisamos uns dos outros.

Para mim, tudo isso são avanços encorajadores que decerto terão conseqüências de grande projeção. Um outro fato que muito me estimula é que, seja qual for o método de implementação, ao menos já se admite claramente a necessidade de buscar soluções não-violentas para os conflitos dentro de um espírito reconciliador. Há também, como já observamos, uma aceitação crescente da universalidade  dos direitos humanos e da necessidade de admitir a diversidade em áreas de importância comum, como a das questões religiosas, por exemplo. Acredito que isso reflete a percepção de que é imprescindível ampliar a perspectiva devido à diversidade da própria família humana. Como resultado de todas essas coisas, e apesar do sofrimento que continua sendo imposto a pessoas e povos em nome de ideologias, de religiões, do progresso, do desenvolvimento ou da economia, uma nova esperança está surgindo para os oprimidos. Não há dúvida de que será difícil produzir paz e harmonia genuínas, mas percebe-se nitidamente que isso pode ser feito. O potencial está aí. E seu fundamento é a noção da responsabilidade de cada indivíduo por todos os outros.

 – Dalai Lama no livro ”Ética Para o Novo Milênio”

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