Por Pema Chodron, no livro ”O Salto”.
Nada é estático ou permanente. Nisso estamos incluídos. Sabemos que carros e tapetes, camisas novas e aparelhos de DVD são passageiros, porém estamos menos dispostos a pensar nessa impermanência quando se refere a nós ou a outras pessoas. Temos uma visão muito sólida de nós mesmos e visões fixas das outras pessoas. Mas, se olharmos com mais atenção, veremos que não somos nem um pouco estáticos. Na verdade, somos tão mutáveis como um rio. Por conveniência, chamamos o fluxo constante de água do rio Mississipi ou rio Nilo da mesma forma como nos chamamos Jack ou Helen. No entanto, esses rios não são iguais nem mesmo por uma mínima fração de segundo. As pessoas também seguem um fluxo, nossos pensamentos, emoções e moléculas estão sempre mudando.
Caso escolha sentir-se sempre consciente do momento presente diante de qualquer acontecimento, da energia da vida, de outras pessoas e desse mundo, depois de algum tempo perceberá que está receptivo e presente a algo mutável. Por exemplo, se estiver de fato aberto e receptivo a outra pessoa, é uma revelação perceber que na sexta-feira estávamos diferentes de como nos estamos na segunda-feira, que cada um de nós pode ser visto de um ângulo novo a qualquer dia da semana. Mas, se a pessoa for seu pai ou irmão, seu sócio ou chefe, em geral, nós bloqueamos e os vemos sempre da mesma forma. Temos tendência a rotular as pessoas como irritantes, tediosas, uma ameaça à nossa felicidade e segurança, inferiores ou superiores; e isso se estende além do nosso círculo fechado de conhecidos em casa ou no trabalho.
Esse hábito de rotular as pessoas pode ocasionar preconceito, crueldade e violência; e em qualquer momento ou lugar em que o preconceito, crueldade e violência se manifestarem, se estiverem direcionados de uma pessoa para outra ou entre grupos, ou de pessoas para grupos, existe um tema recorrente: “Essas pessoas têm uma identidade fixa e não são iguais a mim”. Podemos matar alguém ou ser indiferente às atrocidades cometidas contra ele porque “não passa de um haji”, ou “é apenas uma mulher”, ou “ele é homossexual”. Podemos preencher o espaço vazio com qualquer estigma racial, qualquer rótulo desumano a ser usado contra aqueles a quem consideramos diferentes.
Existe outra maneira de olhar os outros, em uma tentativa de nos libertarmos de nossas ideias rígidas e ter curiosidade em relação à hipótese que nada nem ninguém permanece igual. Esse processo começa, é claro, quando ficamos curiosos e eliminamos as histórias limitadas que criamos a respeito de nós mesmos. Depois, temos de estar presentes perante qualquer coisa que nos aconteça. Acho útil pensar que sentimentos como tristeza, raiva ou preocupação, prazer, alegria ou satisfação é a energia dinâmica e fluida da vida manifestando-se. Isso modifica a resistência à minha experiência. Em razão de praticar essa abordagem há muitos anos, passei a ter confiança no potencial da receptividade aberta, na consciência e percepção do mundo e na dignidade de todos os seres. E já constatei que o modo com o qual vemos e tratamos os outros revela essa nobreza.
No livro The Search for a Nonviolent Future, de Michael Nagler, há uma história que ilustra esse tema. Refere-se a um casal judeu, Michael e Julie Weisser, mas poderia ter sido qualquer vítima de preconceito e violência. Os Weisser morvam em Lincoln, Nebraska, onde Michael tinha um papel proeminente na sinagoga, e Julie era enfermeira. Em 1992, eles começaram a receber telefonemas ameaçadores e bilhetes da Ku Klux Klan. É claro que a Klan agia ilegalmente na época e não era tolerada na cidade, no entanto ela os estava ameaçando. A polícia lhes disse que provavelmente era o trabalho de Larry Trapp. Ele era o Grande Dragão, o chefe da Klan, na cidade. Michael e Julie Weisser conheciam a reputação de Trapp como a de um homem cheio de ódio. E sabiam que andava de cadeira de rodas por ter ficado inválido há alguns anos, em decorrência de um espancamento.
Todos os dias, a voz de Larry no telefone ameaçava matá-los, destruir a propriedade deles, e prejudicar a família e os amigos. Então, um dia, Michael decidiu, com o apoio de Julie, tomar uma providência. No telefonema seguinte, quando Larry Trapp os ameaçava, ele esperou uma oportunidade para falar. Ele sabia que Trapp andava com dificuldade pela cidade com a cadeira de rodas e quando conseguiu falar lhe ofereceu uma carona até a mercearia. Trapp não falou por alguns instantes e, depois, ao dizer que “Bem, posso me virar, mas obrigado por perguntar”, a raiva tinha desaparecido de sua voz.
Porém, os Weisser tinham em mente uma ideia mais ambiciosa do que apenas terminar essa tortura: eles queriam libertar Larry Trapp do tormento do seu preconceito e raiva. Começaram a ligar para ele, dizendo que se precisasse de ajuda eles estariam dispostos a auxiliá-lo. Logo depois, foram ao seu apartamento levando um jantar feito em casa, e os três passaram a se conhecer melhor. E ele começou a pedir ajuda. Um dia, quando chegaram para visitá-lo, Trapp tirou um anel do dedo e o deu a eles. Era um anel nazista. Com esse gesto, ele rompia sua associação com a Ku Klux Klan e disse aos Weisser: “Eu denuncio tudo que apoiam. Mas não odeio as pessoas das organizações… Se odiasse todos os Klasmen porque são Klasmen… continuaria a ser um racista”. Em vez de substituir um preconceito por outro, Larry Trapp escolheu eliminar sua mentalidade intolerante.
Assim como Larry Trapp, todos nós temos preconceitos, e é muito comum justificá-los ao se manifestarem. Nossas ideias rígidas a respeito “deles” surgem com rapidez, e isso cada vez mais causa grande sofrimento. Esse é um hábito muito antigo, um hábito nocivo, uma reação universal ao sentimento de estar ameaçado. É possível olharmos para esse hábito com compaixão e receptividade, sem intensifica-lo e fortalece-lo. Podemos captar a energia poderosa de nosso medo, de nossa raiva – a energia de tudo que podemos sentir – como um movimento natural da vida e nos tornarmos íntimos dela, suportando-a sem reprimi-la, sem reagir, sem deixar que ela nos destrua ou a alguém mais. Nesse sentido, qualquer experiência converte-se na oportunidade perfeita para conectar nossa bondade natural, no apoio perfeito para permanecer aberto e receptivo à energia dinâmica da vida. Apesar de essa ideia ser radical, sei que podemos escolher não acionar a reação em cadeia da shenpa. Qualquer coisa que vivenciemos, não importa quão desafiadora possa ser, pode se tornar um caminho aberto para o nosso despertar.
Algumas vezes, em uma situação de fato ameaçadora, não há muito o que possamos fazer ou dizer para ajudar alguém, mas sempre podemos tentar conscientizarmo-nos do momento presente e não morder o anzol. Há pouco tempo, recebi uma carta do meu amigo Jarvis Master, um prisioneiro condenado à morte, na qual me contou que há muitos momentos de tanta violência na prisão que tudo o que ele pode fazer é não prejudicar ninguém e não cair nas garras da força sedutora da agressão. As histórias nem sempre têm um final feliz.
Se você exercer uma profissão em que interage com pessoas violentas, sabe que não é fácil evitar ser fisgado. Mas podemos perguntar: “Como posso lidar com pessoas de quem discordo com uma mente aberta?”; “Como posso ver e ouvir com mais profundidade, além das minhas ideias fixas?”; “Como posso tratar pessoas que estão em um ciclo de violência, que se magoam, como seres humanos como eu?” Sabemos que se abandonarmos alguém com as nossas ideias preconcebidas, com nossas mentes e corações fechados, nunca conseguiremos nos comunicar genuinamente, e podemos com facilidade exacerbar a situação e fomentar mais sofrimento.
Subjacente ao ódio, subjacente a qualquer ato ou palavra cruel, ou ao desprezo por outro se humano, há sempre o medo, um medo totalmente infundado. Esse medo é maleável. Ele ainda não se congelou em uma posição rígida. Por mais que o detestemos, o medo não obrigatoriamente provoca agressão ou o desejo de ferir a nós mesmos e aos outros. Quando sentimos medo ou ansiedade, ou qualquer sentimento infundado, ou ao percebermos que o medo já está nos causando pensamentos como “tenho de me vingar” ou “preciso recorrer ao meu vício para escapar”, pense nesse momento como neutro, um momento que pode seguir em qualquer direção. Temos o tempo inteiro de escolha diante de nós. Voltamos aos antigos hábitos destrutivos ou encaramos nossas experiências como uma oportunidade e apoio para ter um novo relacionamento com a vida?
A consciência e a percepção básicas e a abertura natural estão sempre disponíveis. Essa abertura não precisa ser fabricada. Ao fazermos uma pausa, quando sentimos a energia do momento, diminuímos o ritmo, propiciamos um intervalo, e atraímos a abertura autoexistente. Isso não requer um esforço especial. Está disponível a qualquer instante. Como Chögyam Trungpa observou, “A abertura assemelha-se ao vento. Se abrir suas portas e janelas, ele entrará”.
A próxima vez que se irritar, experimente olhar para o céu. Vá até a janela em sua casa ou no escritório e olhe o céu. Uma vez, li uma entrevista de um homem que contou que, durante a Segunda Guerra Mundial, ele sobreviveu à prisão em um campo de concentração japonês olhando para o céu, as nuvens movendo-se e os pássaros voando. Isso lhe deu confiança na bondade da vida, apesar das atrocidades que testemunhava.
Em geral, quando somos fisgados, estamos tão absorvidos por nossa história que perdemos a perspectiva. Quando nos defrontamos com a dificuldade da situação dolorosa em casa, no trabalho, na prisão, na guerra, onde quer que seja, nossa perspectiva com frequência fica muito reduzida, até mesmo microscópica. Temos o hábito automático da introversão. Ao reservar um instante para olhar o céu ou alguns segundos para sentir a energia fluida da vida, passamos a ter uma perspectiva maior – a de um universo casto, onde somos um ponto minúsculo no espaço, e que o espaço sem fim e sem início está sempre à nossa disposição. Assim, poderemos entender que nossa situação difícil é passageira e que temos a escolha de fortalecer nossa reações habituais ou nos libertarmos. A atitude de estar aberto e receptivo aos acontecimentos é sempre mais importante do que se exaltar e acrescentar mais agressão ao planeta e poluição à atmosfera.
Qualquer coisa que aconteça é a oportunidade certa para mudar a tendência básica de ser fisgado, de ficarmos estressados, de fecharmos nossas mentes e corações. Sempre que se conscientizar, sentir ou pensar é o estímulo perfeito para fazer uma mudança fundamental em direção à abertura. A abertura natural tem o poder de dar sentido à vida e de nos inspirar. Com apenas um momento de percepção da presença da abertura natural, aos poucos notamos que a inteligência e a cordialidade naturais também são presentes. É o mesmo que abrir a porta para a amplidão, o tempo infinito e a magia do lugar onde estamos.
Ao acordar de manhã, mesmo antes de sair da cama, se estiver amedrontado ou talvez mortalmente entediado com a rotina de sua vida, abra os olhos e respire fundo três vezes. Fique onde está. Quando você está em fila de espera, faça um intervalo em sua mente discursiva. Você pode olhar suas mãos e respirar, olhar pela janela para a rua ou para o céu. Não importa o que olhar ou se vai prestar atenção a um detalhe. Você pode deixar que a experiência seja um contraste de ser aprisionado, deixe-a ser um pipocar em uma bolha, algo momentâneo.
Quando meditamos, todas as vezes que percebemos que estamos pensando e que deixamos nossos pensamentos dispersarem-se, nesse instante a abertura está à nossa disposição. Chögyam Trungpa chamava isso de “libertar-se de uma mente fixa”. Sempre que a respiração dissipa-se no espaço, essa abertura está disponível. Em qualquer momento em que se concentrar no imediatismo de sua experiência, você pode olhar para o chão ou para o teto, ou apenas sentir suas nádegas sentadas na cadeira. Você entende o que e eu quero dizer? Você é capaz de estar presente. Em vez de alienar-se, ou de se aprisionar, absorto em seus pensamentos, planejamentos, preocupações, preso no casulo onde não tem acesso aos seus sentidos perceptivos, aos sons e às visões, ao poder e à mágica do momento, você pode escolher fazer uma pausa. Quando fizer um passeio no campo, na cidade, ou em qualquer lugar, pare de vez em quando. Paute sua vida por esses instantes.
Na vida moderna é tão fácil ficarmos absorvidos, em especial por computadores, televisão e celulares. Eles são hipnotizadores. Enquanto estivermos no piloto automático, movidos por nossos pensamentos e emoções, nós nos sentiremos oprimidos. Não faz muita diferença se estarmos em um centro tranquilo de meditação ou no lugar mais agitado e envolvente. Em qualquer situação, é possível fazer uma pausa e atrair a abertura natural. Cada vez mais, seremos capazes de abrir espaço para conscientizarmos-nos de onde estamos, de perceber como nossa mente é ampla. Encontre uma maneira de acalmar-se. Encontre uma forma de relaxar sua mente e faça isso com frequência, com muita, muita frequência ao longo do dia, não só quando se sentir fisgado, mas o tempo inteiro.
A questão decisiva é que nos relacionamos com a vida tal como ela se apresenta no momento e não mais tarde quando as circunstâncias melhoram. Podemos sempre nos conectar com a abertura de nossas mentes. Devemos usar nossos dias para despertar em vez de voltar a dormir. Tente fazer essa abordagem. Comprometa-se a fazer uma pausa durante o dia sempre que possível. Dê um tempo para sua percepção mudar e para vivenciar a energia natural da vida como ela se manifesta no momento exato. Isso pode causar mudanças radicais em sua vida pessoal, e, se estiver preocupado com a situação do mundo, essa é uma maneira de usar todos os momentos para ajudar a modificar o clima agressivo em direção à paz.