Você está tentando tratar uma questão com seu colega de trabalho ou com sua companheira. Num momento, o rosto dela está aberto, ela está sorrindo. No momento seguinte, uma nuvem embaça seus olhos e seu queixo enrijece de tensão.
O que você está percebendo?
Alguém o critica. Criticam seu trabalho, sua aparência ou seu filho. Em momentos como esse, o que você sente? Há um gosto familiar na sua boca, há um cheiro familiar. Ao se dar conta disso, você sente que essa experiência vem acontecendo desde sempre.
A palavra Tibetana para isso é shenpa. Geralmente é traduzida como “apego”, mas uma tradução mais descritiva poderia ser “fisgada”. Quando a shenpa nos fisga é como se ficássemos “colados”. Poderíamos chamar de shenpa “esta sensação de “colamento”. É uma experiência de todo dia. Mesmo um pontinho no seu pullover novo pode levá-lo a ela. Num nível mais sutil, sentimos um aperto, uma tensão, uma sensação de fechamento. Em seguida, vem uma vontade enorme de nos retirar, não queremos mais estar onde estamos.Essa é a qualidade da fisgada. Aquela sensação de aperto tem o poder de nos fisgar para a auto- depreciação, culpa, raiva, ciúmes e outras emoções que levam a palavras e ações que acabam por nos envenenar.
Lembra daquele conto de fadas em que sapos pulavam da boca da Princesa cada vez que ela dizia coisas más? É como a sensação de ser fisgado. Contudo não paramos – não podemos parar – porque ainda estamos habituados a associar o que quer que estejamos fazendo ao alívio do nosso próprio desconforto. Essa é a síndrome da shenpa. A palavra “apego” não traduz completamente o que está acontecendo. É uma qualidade de experiência que não é fácil de descrever mas que todo mundo conhece bem. Geralmente a shenpa é involuntária e vai direto à raiz do por quê sofremos.
Alguém nos olha de certa maneira, ou ouvimos uma certa canção, sentimos um certo cheiro, entramos em certo aposento e bum. A sensação não tem nada a ver com o presente, e apesar disso ela está lá. Quando estivemos praticando reconhecer a shenpa em Gampo Abbey, descobrimos que alguns de nós podiam senti-la até mesmo quando uma determinada pessoa simplesmente sentava próximo de nós na mesa de jantar.
A shenpa floresce na insegurança motivada por vivermos num mundo que está sempre mudando. Experimentamos essa insegurança como um fundo de leve desconforto e inquietação. Todos nós queremos alguma espécie de alívio para esse desconforto, então nos voltamos para o que nos dá prazer – comida, álcool, drogas, sexo, trabalho ou compras. Com moderação o que nos dá prazer pode ser muito delicioso. Podemos apreciar seu sabor e sua presença em nossa vida. Mas quando lhe atribuímos poder com a idéia de que nos trará conforto, removerá nossa inquietude, somos fisgados.
Desse modo, também poderíamos chamar de shenpa o “impulso” – o impulso de fumar um cigarro, de comer demais, de tomar outro drinque, de saciar nossa dependência qualquer que seja ela. Às vezes a shenpa é tão forte que sentimos vontade de morrer ao obter esse alivio de curto prazo dos sintomas. O momento atrás do impulso é tão forte que nós nunca nos livramos do padrão habitual de buscar o conforto no veneno. Este não necessariamente tem que envolver uma substância; pode ser dizer coisas mesquinhas ou se aproximar de tudo com uma mente crítica. Essa é a maior fisgada. Alguma coisa aciona o gatilho de um velho padrão que preferiríamos não sentir, nos retesamos e engatamos em críticas e queixumes. Isso nos proporciona uma satisfação ofegante e uma sensação de controle que oferece alivio de curto prazo ao desconforto.
“Aqui vai um exemplo rotineiro de shenpa. Alguém diz uma palavra má pra você e então algo em você tensiona – isso é a shenpa. Então se inicia uma espiral em direção à baixa auto-estima, ou você culpa esse alguém, ou fica com raiva, ou começa a denegrir a si mesmo. E talvez, se você tiver algum vício forte, você vai direto pra ele para encobrir o sentimento ruim que surge quando aquela pessoa disse a palavra ruim pra você. Esta é uma palavra má que te captura, que te algema. Outras palavras más podem não afetar você, mas estamos falando aqui onde uma toca sua ferida – isso é uma shenpa. Alguém lhe critica – criticam seu trabalho, sua aparência, seu filho – e, lá vem, shenpa: aparece quase ao mesmo tempo.”~ Pema Chödron
Aqueles de nós com dependências fortes sabem que trabalhar com padrões habituais começa com a disposição de reconhecer completamente nosso impulso e em seguida disposição de não atuar a partir dele. Esse não atuar é chamado abster-se. Tradicionalmente é conhecido como renúncia. Não renunciamos ou nos abstemos da comida, do sexo, do trabalho ou de relacionamentos em si. Renunciamos e nos abstemos da shenpa. Quando falamos sobre abster-se da shenpa, não estamos falando de tentar jogá-la fora; estamos falando de tentar ver a shenpa claramente e experimentá-la. Se pudermos ver a shenpa exatamente quando começamos a nos fechar, quando sentirmos o aperto, existe a possibilidade de agarrar o impulso de fazer a coisa habitual e não fazê-la.
Sem a prática da meditação isso é quase impossível de fazer. Geralmente, não capturamos o aperto até que tenhamos saciado o impulso de coçar nosso comichão de alguma maneira habitual. E, a menos que equiparemos o abster-se com bondade amorosa e amizade para conosco, abster-se dá a impressão de vestir uma camisa de força. Lutamos contra ela. A palavra Tibetana para renúncia é shenlock, que significa virar a shenpa de cabeça para baixo, sacudindo-a. Quando sentirmos o aperto, de alguma forma temos que saber como abrir o espaço sem sermos fisgados para nosso padrão habitual.
Ao praticar com a shenpa, primeiro tentamos admiti-la. O melhor lugar para fazê-lo é na almofada de meditação. A prática da meditação sentada nos ensina como nos abrir e relaxar para o que quer que surja, sem escolher ou selecionar. Ela nos ensina a experimentar o desconforto, o aperto, a coceira da shenpa. Treinamos em sentar quietos com nosso desejo de coçar. É assim que aprendemos a interromper a reação em cadeia dos padrões habituais que de outra maneira governarão nossas vidas. É assim que enfraquecemos os padrões que nos mantêm fisgados no desconforto que nós confundimos com conforto. Rotulamos o rodopio “pensando” e voltamos para o momento presente. Até mesmo na meditação experimentamos a shenpa.
Consciência de si mesmo e dos próprios processos mentais que é, talvez, o desafio central de boa parte das práticas “espirituais”. Shenpa, neste contexto, é uma nova perspectiva, uma palavra que define — e, assim, nos ajuda a entender — o momento-chave de perda do livre viver.
Vamos supor, por exemplo que na meditação você se sentiu sereno e aberto. Os pensamentos vierem e se foram mas não o fisgaram. Eram como nuvens no céu que se dissolviam quando você os reconhecia. Você foi capaz de voltar ao momento sem uma sensação de luta. Em seguida você é fisgado naquela experiência tão agradável: “Eu fiz certo, consegui acertar. É como tinha que ser, é o modelo.” Ser apanhado dessa maneira constrói arrogância e no reverso dela constrói pobreza, porque sua próxima sessão não será nada daquilo. Na verdade sua sessão”má” é muito pior agora porque você foi fisgado na “boa”. Você sentou lá e foi discursivo: ficou obcecado por alguma coisa em casa, no trabalho. Você se preocupou e se atormentou; foi apanhado com medo ou raiva. No fim da sessão você se sentiu desanimado – foi “mau”, e só há você para culpar.
Há alguma coisa inerentemente errada ou certa na experiência da meditação?
Somente a shenpa. A shenpa que sentimos para a “boa” meditação nos fisga no que ela “deve” ser e com isso somos conduzidos pela shenpa a como ela não “deve” ser. No entanto a meditação é apenas o que ela é. Somos apanhados em nossa idéia dela: isso é a shenpa. Essa colada é a raiz da shenpa. Nós a chamamos pegada do ego ou auto-absorção. Quando somos fisgados na idéia da experiência má, a auto-absorção fica mais forte. É por isso que, como praticantes, somos ensinados a não nos julgar, para não sermos apanhados no bom ou mau.
O que realmente precisamos fazer é tratar as coisas como elas são. Aprender a admitir a shenpa nos ensina o significado de não estar apegado a esse mundo. Não estar apegado não tem nada a ver com esse mundo. Tem a ver com a shenpa – sermos fisgados pelo que associamos com conforto. Tudo o que estamos tentando fazer é não sentir nosso desconforto. Mas quando fazemos isso nunca chegamos à raiz da prática. A raiz é experimentar a coceira, assim como o impulso de coçar e então não atuar sobre ele.
Se estamos dispostos a praticar dessa maneira todo o tempo, o prajna começa a aparecer. Prajna é a visão clara. É a nossa inteligência inata, nossa sabedoria. Com o prajna, começamos a ver claramente toda a reação em cadeia. À medida que praticarmos, a sabedoria se torna uma força mais poderosa que a shenpa. Por si só, ela tem o poder de interromper a reação em cadeia.
O prajna não está envolvido com o ego. Sua sabedoria se baseia na bondade fundamental, na abertura, na equanimidade – que corta a auto-absorção. Com o prajna podemos ver o que o espaço vai nos mostrar. Ação habitual, que está baseada no ego é exatamente o oposto – a compulsão de preencher o espaço ao nosso estilo particular. Alguns de nós fechamos o espaço martelando nossos mesmos pontos; outros tentando suavizar as águas.
Fomos ensinados que tudo que surge é fresco, a essência da realização. Esta é a visão básica. Mas como ver tudo que surge como a essência da realização quando a realidade é que temos um trabalho a fazer? A chave é olhar para dentro da shenpa. O trabalho que temos que fazer é descobrir se estamos tensos, fisgados ou “excitados”. Essa é a essência da realização. Quanto mais cedo captarmos isso, mais fácil será trabalhar com a shenpa, mas até mesmo captar isso quando já estivermos excitados é bom. Às vezes temos que percorrer todo ciclo até que vejamos o que estamos fazendo. O impulso é tão forte, a fisgada tão profunda, o padrão habitual tão colado que tem vezes que não podemos fazer nada sobre isso.
Entretanto, há alguma coisa que podemos fazer na realidade. Podemos isentar na almofada de meditação e repassar a história. Talvez comecemos lembrando a sensação de excitamento e entremos em contato com ela. Olhamos claramente a shenpa em retrospecto; Também ajuda muito ver a shenpa surgindo em habitozinhos, quando a fisgada ainda não é tão profunda.
Os budistas estão falando da shenpa quando dizem, “Não se deixe apanhar no contentamento: observe a qualidade que está por trás – a colada, o desejo, o apego” . A meditação sentada nos ensina a ver aquela tangente antes de cair nela. Ela basicamente se resume à instrução “rotule-o pensando”. Treinar isso na almofada onde é relativamente fácil e agradável fazê-lo, é a maneira de nos preparar para ficarmos quando estivermos excitados.
Em seguida podemos treinar em ver a shenpa onde quer que estejamos. Diga alguma coisa a outra pessoa e talvez você sentirá aquela tensão. Em vez de ser apanhado numa história sobre como você está certo ou como você está errado, tome isso como uma oportunidade de estar presente com a qualidade da fisgada.
Use isso como uma oportunidade de estar com o aperto sem atuar sobre ele. Deixe o treinamento ser a sua base. Você também pode praticar reconhecendo a shenpa na natureza. Praticar se sentando quieto e captando o momento em que se fecha. Ou praticar numa multidão, olhando uma pessoa de cada vez. Quando você está em silêncio, o que o fisga é o diálogo mental. Você fala consigo mesmo sobre maldade ou bondade: eu-mau ou eles-maus, isso-certo ou aquilo-errado. Simplesmente veja isso como uma prática. Você ficará intrigado como involuntariamente se fechará e será fisgado de uma maneira ou de outra. Apenas continue rotulando aqueles pensamentos e volte para a imediatez da sensação. É a maneira de não seguir a reação em cadeia.
Uma vez que estejamos conscientes da shenpa, começamos a notá-la em outras pessoas. Vemo-las se fechando. Vemos que elas foram fisgadas e que nada irá penetrá-las agora. Naquele momento temos o prajna. A inteligência básica surge quando não somos apanhados escapando do nosso próprio desconforto. Com o prajna podemos ver o que está acontecendo com os outros; podemos ver quando eles estão sendo fisgados. Em seguida podemos dar algum espaço à situação. Uma maneira de fazê-lo é abrindo o espaço no local através da meditação. Fique quieto e coloque sua mente na respiração. Segure sua mente no lugar com grande abertura e curiosidade para com essa pessoa. Fazer uma pergunta é outra maneira de criar espaço em volta daquela sensação de colamento. Assim como adiar a discussão para outra hora.
No Mosteiro, temos muita sorte de todo mundo estar entusiasmado em trabalhar com a shenpa. Muitas palavras que tenho tentado usar se tornaram munição para as pessoas usarem contra elas próprias. Mas sentimos uma espécie de alegria trabalhando com a shenpa, talvez porque a palavra não nos seja familiar. Podemos reconhecer o que está acontecendo com visão clara, sem nos apontarmos. Como ninguém gosta particularmente de ter sua shenpa apontada, as pessoas no Mosteiro combinaram, “Quando você me vir sendo fisgado, só puxe sua orelha e se eu o vir sendo fisgado, farei o mesmo”. Ou se você o vir em você mesmo e eu não tiver captado, pelo menos dê um sinalzinho de que talvez esta não seja a hora de continuarmos a discussão. É dessa a maneira que estamos nos ajudando uns aos outros a cultivar prajna, visão clara.
Poderíamos pensar em todo esse processo em termos dos 4 Rs: reconhecer a shenpa, refrear (abster-se) o coçar, relaxar no impulso que motiva o coçar e então resolver continuar interrompendo nossos padrões habituais como esse pelo resto de nossas vidas. O que você faz quando não faz a coisa habitual? Você se deixa ficar com seu impulso. É como você se põe mais em contato com a avidez e com a vontade de fugir. Você relaxa nele. Em seguida, resolve continuar praticando dessa maneira.
Trabalhar com a shenpa nos suaviza. Uma vez que vemos como somos fisgados e como somos arrastados pelo momento não tem como ser arrogantes. O segredo é continuar vendo. Não deixar que a suavidade e a humildade se transformem em auto-depreciação. É apenas uma outra fisgada. Por virmos fortalecendo toda a situação habitual por um longo, longo tempo não podemos espera desfazê-la do dia para a noite. Não é um assunto para um tiro só. É preciso bondade amorosa para reconhecer; é preciso prática para abster-se; é preciso disposição para relaxar; é preciso determinação para continuar treinando dessa maneira. Ajuda lembrar que podemos experimentar dois bilhões de espécies de coceiras ou sete quatrilhões de tipos de comichão, mas só existe realmente uma única raiz da shenpa – a aderência do ego. Experimentamo-la como aperto e auto-absorção.
Ela tem graus de intensidade. As ramificações shenpas são todos os nossos diferentes estilos de coçar o comichão. Recentemente vi um cartoon com três peixes nadando em volta de um anzol. Um peixe está dizendo para o outro, “o segredo é não grudar”. É um cartoon shenpa: o segredo é – não morda o anzol. Se nós pudermos nos apanhar no lugar onde o impulso de morder é forte podemos, pelo menos, ter uma perspectiva maior do que está acontecendo. Praticando dessa maneira, ganhamos confiança em nossa própria sabedoria. Isso começa a nos conduzir a um aspecto fundamental do nosso ser – amplidão, calor e espontaneidade.
Texto de Pema Chödron.
Pema Chödrön é uma monja, que pratica na tradição do budismo tibetano. Foi uma discípula de Chögyam Trungpa Rinpoche, cujos ensinamentos ela continua a disseminar entre estudantes ocidentais do mundo inteiro. Nascida na cidade de Nova York, em 1936, Pema tem 2 filhos adultos e 2 netos. Formada pela Universidade da Califórnia, em Berkeley, foi professora primária por muitos anos, no Novo México e na Califórnia. Pema já havia passado dos 30 anos quando se ligou pela primeira vez aos ensinamentos budistas. Em 1971, ela viajou para os Alpes franceses, onde encontrou o Lama Chime Rinpoche, com quem estudou por muitos anos. Tornou-se uma noviça em 1974, enquanto estudava com Lama Chime, na Inglaterra.
O primeiro encontro de Pema com seu guru-raiz, Chögyam Trungpa Rinpoche, foi em fevereiro de 1972. Lama Chime encorajou-a a trabalhar com Trungpa Rinpoche e foi com ele que Pema, finalmente, se ligou mais profundamente. Pema estudou com Trungpa Rinpoche de 1974 até a morte de dele, em 1987, recebendo dele sua ordenação plena em 1981. Pema continuou a estudar com grandes mestres das linhagens Kagyü e Nyingma do budismo tibetano.
Atualmente, Pema é professora residente na abadia Gampo, um centro monástico situado em uma área de duzentos acres, à beira-mar, sobre as falésias do cabo Breton, na Nova Escócia, no Canadá. Pema é uma Acharya (professor senior) de Shambhala International e, quando não está em retiro fechado, na abadia Gampo, viaja pela Europa, Austrália e América do Norte, ensinando a grandes audiências.
Pema Chödrön é a autora de “Comece onde você está“, Editora Sextante, “Os lugares que nos assustam” e “Quando tudo se desfaz”, Editora Gryphus.
Mais Pema Chödrön: