Muitas pessoas têm uma visão estereotipada do budismo, firmada incessantemente pela indústria do entretenimento e publicidade, bem como pelas ondas de distorção de que já tratei em outros textos. Um dos aspectos dessa visão romântica e equivocada dos ensinamentos é a que eles estejam voltados a um tipo específico de simplicidade: um despojamento minimalista que envolveria o ambiente, o corpo e a cabeça. Em outras palavras, ambientes vazios, vidas quietas, poucas ideias.
Adicione-se aí o racismo de Carl Jung, que considerava o ocidental não sendo “passivo” o suficiente para meditar, e temos o pacote inteiro: um sonho pastoral, onde o nobre selvagem (agora o “sábio asiático” ou “figura semelhante ao Yoda”), nos livra do pesadelo distópico da velocidade e do excesso de informação. A prática se torna uma simples fuga do mundo real, como ele se apresenta – com todas as implicações políticas, sociais e pessoais disso.
No entanto, embora o budismo não tenha nada contra esses ideais bucólicos e o design minimalista, seria um exagero dizer este tipo particular de estética seja exigido dos budistas, ou mesmo que essa interpretação superficial do que é um budista corresponda aos ensinamentos do Buda ou à realidade dos praticantes. Basta alguém estudar um pouco do budismo como inserido nas culturas indiana, tibetana, chinesa ou japonesa para ver que há grandes praticantes em todas as categorias: há os que passam a vida isolados nas montanhas, e há os que se envolvem nas mais complicadas intrigas palacianas, e todo espectro no meio disso. Há prática na calma da floresta, e também no agito do campo de cremação – um lugar sem lei, onde pessoas marginalizadas, doentes e cadáveres convivem apinhados – não muito diferentemente dos grandes centros urbanos atuais.
A verdade é que há espaço para as duas práticas.
A perspectiva é sempre praticar com o que se apresenta, e não buscar a alteração de variáveis no estilo de vida. Aqui ou ali é possível alterar algo, mas isso é sempre terapêutico, e portanto, estritamente falando, não é darma – é apenas o transmigrar no samsara, não parte da prática.
Algumas pessoas interessadas no budismo são muito cuidadosas em evitar certos aspectos culturais da Ásia que porventura pareçam internalizados nos ensinamentos. De modo geral o que ocorre é que, com aspectos mais aparentemente “supersticiosos” dos ensinamentos, há uma grande desconfiança, enquanto que essa “estética zen” que os beats/hippies e Steve Jobs sugaram de sonhos românticos da Ásia pré-industrial, e então reempacotaram, e nos venderam como algo profundo, isto efetivamente passa sem exame algo. É até por vezes louvado como o que seria “autenticamente budista”.
Em outras palavras, desconfiamos de muitos aspectos legítimos, que não somos capazes de entender, e acatamos o que não passa de publicidade e visões romantizadas por ocidentais não praticantes. Isso acontece o tempo todo.
Sim, os aspectos culturais vinculados ao darma não são essenciais, e podem prejudicar a essência do budismo – algumas vezes de fato podem e devem ser abandonados com proveito. (Embora exista o caso de que somos apegados à nossa própria cultura, e é um exercício de liberação desses hábitos flexibilizar com hábitos exóticos – porém, sempre existe o risco de então se fixar a esses hábitos e transformar o budismo num mero exercício estético).
O fato é que é muito fácil decidir o que é cultural nos ensinamentos de acordo com o marketing e os próprios impulsos e vieses – muito mais difícil, e correto, seria fazer um exame imparcial, com base no que os budistas realmente fazem e no que está nos textos deixados pelo Buda.
No entanto, isso infelizmente tem se mostrado extremamente raro nesse período de adaptação dos ensinamentos.
A coisa chega ao ponto das pessoas inventarem uma espécie de budismo-Ikea, fácil de comercializar, onde há poucas peças para montar e nenhum tipo de ornamento. Uma versão utilitarista, com o preconceito secular do momento assumido como universalidade. Muitas vezes nem passa pela cabeça o ceticismo bastante útil de duvidar dessa simplicidade como um aspecto marqueteiro a ser abandonado.
Contraintuitivamente, o budismo realmente não começa simples e vai ficando complicado, mas justamente o oposto. A complexidade ou riqueza está (ou deve estar) presente justamente no início, porque nossa mente extremamente confusa e cheia de noções de todo tipo precisa, a princípio, de um antídoto semelhante a ela. De outra forma, ela simplesmente não encontra com o que trabalhar.
É por isso que muitas formas de budismo valorizam o estudo sistemático, e não só como um meio de preservar a fidedignidade dos ensinamentos, mas como um meio hábil de lidar com as várias formas de pensar, estruturadas ou não, que aparecem nas pessoas e na sociedade.
A simplicidade – pelo menos uma forma menos estereotipada dela – é de fato vista como algo superior, porém esta simplicidade natural é ostensivamente imperceptível em nosso cotidiano, estejamos relaxando na praia, meditando na montanha ou em meio ao dia a dia do escritório.
De início, nossa mente simplesmente não aceita e não consegue operar com algo que não precisa sequer ser dito, e que se for dito, não encontra ponto de apoio em nenhuma das rebarbas de nossa confusão. Se de início ouvimos sobre essa “simplicidade suprema”, não conseguimos nos deter nela nem com grande esforço – ela não faz sentido, não é crível e não nos interessa.
Se por acaso ela nos interessa, é por uma espécie de esperança vazia ou fé cega, e não por clareza e disposição verdadeiras.
Assim, de princípio, precisamos sim trabalhar com o que temos: uma mente cheia de conceitos. Fazemos isso até eles por si só perderem o interesse uns nos outros, e aí o que naturalmente pode ser reconhecido é o que nunca se ausentou, mas que não nos fazia nenhum sentido, nem nos dizia respeito – enquanto basicamente só estávamos envolvidos com todo aquele furdunço que nos parece tão natural.
Simplesmente considerar os conceitos como algo negativo e fazer uma guerra contra eles pode até ser uma estratégia viável, mas sem dúvida é uma forma inferior de encarar as coisas, e que raramente funciona. Sentar em meditação com o objetivo de “apagar” a mente simplesmente faz brotar mais daquilo que se supostamente quer evitar. O que funciona bem melhor é, usando o intelecto e adicionando a ele uma disposição sistemática, substituir os “conteúdos impuros” da mente por “conteúdos puros” – o darma, o ensinamento do Buda. Assim a mente, aos poucos, acaba mais receptiva para a simplicidade, que em sua versão genuína não é algo que pode ser artificialmente interposto perante nossa confusão. É claro, sempre alternando com o repouso da mente – sem tentar fazer nada de específico com ela por um tempo, antes de sempre voltar a refletir com cuidado sobre os tópicos que o Buda nos deixou, sempre buscando conexões com nossas experiências pessoais.
A expressão “conteúdos impuros” no último parágrafo não se está se referindo a pensamentos negativos ou ideias errôneas – mas a todos os conteúdos da mente que não estejam totalmente conectados e iluminados pela perspectiva do darma. Com a integração sistemática da visão estabelecida pela reflexão nas palavras do Buda, todos os conceitos, positivos, negativos e neutros nos levam igualmente na direção da prática. No exato momento em que o conceito surge, surge o ensinamento do Buda como um gancho, levando esse conceito para seu autorreconhecimento como algo naturalmente desconectado da “grande simplicidade”, que é a realidade. Assim os conceitos, por sua própria energia e momentum, em seu próprio tempo, sem nenhuma tentativa de alteração, aceitação ou rejeição, apenas estouram como bolhas de sabão em seu próprio âmbito.
Em outras palavras, aprendemos a lembrar do Buda, lembrar do darma, lembrar da sanga – ocorra o que ocorrer em nossa mente. Claro, essa não é uma prática de realização: é uma prática de purificação. É um modo temporário de angariar os méritos necessários para que a prática mais simples e mais sofisticada se revele sem esforço. Quando a mente está madura, mesmo os conceitos “purificados” pela perspectiva do darma naturalmente se dissipam para revelar a simplicidade luminosa. Eles não têm uma duração maior ou nem um tantinho mais realidade do que os conceitos ordinários, pelo contrário. Por sua própria natureza e conteúdo, eles possibilitam que esse desprendimento real ocorra mais facilmente, o que enfim revela a simplicidade real.
Eles nos ajudam a deixar os conceitos inalterados, ao mesmo que eles mesmos não proliferam cadeias de confusão. O darma limpa os hábitos ordinários e a si mesmo num só toque, deixando o brilho desembaraçado do estado natural nítido e estável. Com esse resultado, atingimos os dois benefícios, o benefício próprio, de usufruir a liberdade perante as aflições mentais, e manifestar uma bem-aventurança não causal, não competitiva e não esgotável, e o benefício para os outros, de espelhar perfeitamente todo exemplo e qualidades da linhagem. Isto é, nos tornarmos iguais àqueles que nos ensinaram, os budas.
Enquanto isso não é possível, no entanto, ao treinarmos o hábito de refletir sobre o darma, fazemos conceitos trabalhar a nosso favor, nos levando a sempre apenas mais darma. Reforçamos esse hábito, mesmo que saibamos que, num dado momento, naturalmente abandonaremos todos os hábitos – já de que supetão evidentemente não os conseguimos abandonar.
A situação inicial pode parecer um pouco confusa. Bastante confusa na verdade. Aceitar essa confusão, e reconhecer nossa completa impermeabilidade à simplicidade, este é o primeiro passo. Caso postulemos uma ideia de simplicidade e apenas subscrevamos a ela, como uma pessoa que tem “fé cega” faz (só que quanto a nossos próprios conceitos, nesse caso) o resultado é só distração e tédio: não somos capazes de apenas trabalhar com a confusão óbvia que se dispõe “naturalmente”, e esperamos que a mera alteração de certos aspectos externos possa vir a funcionar.
Por exemplo, entre esses aspectos meramente externos está a prática de ficar imóvel com a coluna ereta, acender um incenso (opcional) e marcar o tempo no relógio, para então fixar a mente em alguma ideia abstrata de “limpeza” mental. Ou de ampliação de foco, ou de atingir alguma tranquilidade – qualquer desses ideais vale.
Isso, sem o contexto do darma, vai se tornar apenas terapia. Isto é, transmigração no samsara para outro lugar temporário – com mérito, um lugar “um pouco melhor”. Mas e daí? Melhor marcar uma massagem ou um fim de semana na praia, é bem mais efetivo em criar condições temporárias “melhores”.
Sem encarar a confusão em primeiro lugar, nenhum método budista funciona. Se por acaso funciona, não dura mais que alguns dias – com muito mérito, semanas. Para a prática vir a ser integrada como algo sustentável e realista, é preciso aprender a lidar com a confusão. E isso exige se familiarizar com o darma e refletir sistematicamente, e integrar os ensinamentos no escopo de nossas circunstâncias pessoais.
A própria palavra “confusão” nessa altura não nos está muito clara. Pensar sistematicamente, e não só desordenadamente, na visão da simplicidade (aquela que é o resultado do caminho), é em si uma forma sofisticada de confusão. A confusão mais rasteira do caos ou do simples não entendimento pode até estar mais próxima da simplicidade – o que define isso é o mérito, não a qualidade da confusão (seja ela sistemática ou desordenada).
Em nossa cultura moderna, de forma geral, a confusão é muito inteligente e elaborada. Ela tem estrutura, exige provas, justifica nossa fé cega no eu, se disfarça como algo desvinculado de emoções (quando de fato nunca está), e é basicamente nossa intelectualidade cotidiana, nossa mente comum que tira conclusões e “sabe das coisas”.
Assim, de início, é preciso combinar os esforços de prática formal de meditação com a reflexão formal sobre os ensinamentos – em outras palavras, trabalhar com o intelecto como ele se apresenta, o que é apenas outro nome para “confusão”.
Demandar simplicidade de uma mente que basicamente vive de se auto-estruturar apenas produz uma espécie de autoritarismo ou purismo internos: “isso não”, “aquilo não” – nos afastamos das pessoas e das coisas, porque parecem ser elas as criadoras dos atritos conceituais e das dissonâncias cognitivas que nos perturbam. Sozinhos e “despojados” deixamos nossos conceitos livres para se autojustificarem em pleno autoengano – em nosso jardim zen, com nosso “budismo” sem mestres e sem comunidade. Em nosso “budismo sem religião”, e nossa mindfulness que é o plágio ridículo de uma fatia irrisória do darma.
O que acontece algumas vezes é ansiarmos por aquela simplicidade que é o resultado do budismo, o aspecto superior e incomum em iniciantes como nós, e assim queremos apenas abandonar essa confusão altamente intelectual, como se ela fosse algo meramente impuro. Particularmente, essa confusão que brota do contato com o mundo exterior, onde há essas “coisas e pessoas”.
Muito perigoso.
Dentro dessa perspectiva, o próprio darma acaba nos parecendo confuso e complicado. A própria sanga (comunidade budista), trabalho demais! Afinal, já temos todas essas ideias, e elas nunca nos ajudaram de fato, porque nos vincular a mais um conjunto particular de ideias? Estamos cansados dessas coisas todas!
Que dizer então de todo o espectro antropológico de conhecer, digamos, Tibetanos, e tentar entender o que há de diferente na perspectiva deles. Muito trabalho!
Queremos algo bem simples, poucas instruções, nada com palavras estrangeiras, e muito menos estudar algo sistematicamente, muito menos ainda colocar em cheque nossas próprias justificativas, que parecem tão amarradinhas, mas que são um castelo de cartas – e já se mostraram castelos de cartas várias vezes em nossas vidas.
Que dizer então lidar com aqueles “chatos” que estão também buscando um caminho espiritual no budismo, mas que não sabem de nada. Que tédio!
Não foram poucas as vezes que ouvi de iniciantes isso: que esperavam algo mais simples, gente mais fácil, instituições mais despojadas.
No entanto, é preciso dizer, essa perspectiva vem de mera preguiça, falta de perspectiva (pobreza mental) e falta de compaixão.
A simplicidade que é o resultado do budismo não partilha desse aspecto de torpor, e é sim uma lucidez curiosa e altamente inteligente, que não se importa em se envolver com detalhes – de fato está aberta para todo e qualquer tipo de elaboração.
Mesmo as práticas “inferiores”, como oferecer incenso ou fazer prostrações, se tornam cada vez mais profundas quando aceitamos essa riqueza. A simplicidade não é corrompível por qualquer aparente elaboração. A fixação numa ideia de simplicidade em detrimento dessa riqueza, porém, se mostra apenas uma perspectiva mundana, nada interessante.
Caso a pessoa tenha mesmo a perspectiva última, a prática de prostrações dessa pessoa é uma manifestação da perspectiva última! Se alguém mantém uma visão particular e conceitual do que seria a perspectiva última, e evita práticas aparentemente inferiores como o refúgio em corpo (a prostração), essa pessoa está apenas nadando numa piscina muito mal-cheirosa de autoengano. Não tem, de fato, darma em lugar algum da perspectiva dessa pessoa.
É só preguiça. Quem tem a perspectiva última, e pode espelhar as qualidades dos budas, pode ter um único traço de preguiça?
Mais do que isso, caso busquemos certo tipo de simplicidade meio fosca, sem nitidez – uma mera ideia romântica de estar livres desse sofrimento todo – o que encontramos é a cama gostosa de um animal de estimação. Muitas pessoas podem de fato achar essa ideia aconchegante de “liberação” muito interessante. Porém, na visão budista o renascimento como um animal, mesmo um animal querido que passa toda sua vida em conforto (e a “simplicidade” de comida, sono e fazer cocô e xixi), é encarado como algo bastante problemático. Se der para evitar, melhor. Os animais não são seres despertos que reconhecem a natureza das coisas e que então encontram uma satisfação além das condições – um potencial peculiar do reino humano –, e tampouco são capazes de ajudar muitos seres com exemplo e ensinamentos. Eles até extraordinariamente fazem isso, mas de forma muito limitada. Então, essa simplicidade de ter comida e uma cama aconchegante (até morrer) não é de forma alguma o objetivo do budismo.
Quando muito, a perspectiva errônea da simplicidade tenta promover uma versão “vida de bicho” que tenha algum aspecto atemporal (que não tenha fim) – o que é uma espécie de ideia de “céu”, mas muito mais absurda e fraca do que a das tradições que postulam um céu. Afinal, não queremos nem pensar na morte muitas vezes muito sofrida de nossos animais de estimação – e da mesma forma, não pensamos no fim extremamente sem sentido e sofrido de nossas próprias práticas sem lucidez.
Sim, há muitos budistas contemporâneos e também históricos que confundem essa “caminha quentinha” de animal com o nirvana. E também é certamente por isso que alguns veem nas ideias asiáticas a noção de “passividade”. Caso o sonho da pessoa seja mesmo se tornar um bichinho quieto e “feliz” (porque tem comida e cama), parece que a acusação de passividade faz todo sentido e é amplamente justa. (E se Jung via isso no temperamente asiático, sinto dizer, é por isso que digo que ele estava sendo apenas racista ao fazer esse comentário.)
Muitos meditadores de fato fazem de sua meditação nada mais do que um reino animal, quando muito, com uma esperança de infinitude – que nesse caso acaba sendo apenas não encarar a morte e a transmigração inevitável de qualquer estado temporário em nome de uma fé cega. Isso em parte se deve ao fato de que eles não fizeram reflexões mínimas sobre sua condição e sobre a confusão cotidiana em suas mentes. Eles apertam uma espécie de botão de “pausa” com que tiram férias do intelecto, e chamam isso de lucidez. É um engano profundo e perigoso, que pode levar a muita perda de tempo.
Evidentemente, o extremo oposto dessa atitude é o budismo de apenas leitura, ou o mero exercício acadêmico em torno do budismo. Nesse caso, em vez de trabalhar com a confusão, nos aliamos a ela – e isso apenas perpetua a raiz do sofrimento, que são nossos hábitos. Mais perigoso ainda, porque quando o darma é desvirtuado dessa forma, criamos hábitos que nos fazem perder a possibilidade de usar o darma como ele deve mesmo ser usado – ficamos viciados em encarar o darma como apenas outro conceito. Assim, nossos hábitos emocionais e intelectuais podem lidar com toda a terminologia do budismo sem jamais integrar um só elemento de forma vivencial.
Apenas estudar de fato não garante absolutamente nada.
É por isso que no budismo criticamos os que “meditam como ursos” e os que apenas estudam. Não é que meditar ou estudar sejam coisas ruins, é que meditar e estudar com a perspectiva errada é até pior do que não meditar ou não estudar.
Além desses dois extremos de ficar brincando com o lixo ou o esconder embaixo do tapete, há o aspecto de descartá-lo com cuidado. Isso aparentemente dá mais trabalho, mas é a única coisa viável a se fazer. O lixo aqui são nossos hábitos, entre eles o aprisionamento a conceitos.
Pode parecer que algo assim – descartar o lixo apropriadamente – tenha pouco glamour, e certamente não tem apelo marqueteiro, mas aquela “simplicidade além dos extremos” diz respeito a apenas isso: se envolver com o darma enquanto instituição, enquanto ensinamento sistemático, enquanto convívio com outros praticantes e professores – aceitar toda a “complicação” desses elementos como um antídoto para a complicação reforçada das próprias presunções. Usar os hábitos do darma para lidar com os hábitos comuns. Ninguém tem apego à pá do lixo ou ao aspirador, mas sem eles fica bem difícil limpar a casa.
Você usa e aí guarda num armariozinho e os tira de vista, porque eles realmente não são nada especial quando não se está justamente lidando com a sujeira. Naquele momento, eles são tudo. Depois, são absolutamente desnecessários.
Quando o refúgio começa a operar, aos nos aproximarmos do Buda que está além de estar dentro ou fora de nós, então a semente da “simplicidade que não se corrompe perante a elaboração” aos poucos nos permite transformar o que quer que surja em caminho.
Quando nesse caminho a acumulação de mérito e sabedoria ganha momentum e vem a desabrochar naturalmente, passamos a reconhecer o que quer que surja como pensamentos como a sabedoria do Buda, o que quer que surja como som como o ensinamento do Buda, e o que quer que surja como aparência como o corpo do Buda.
Nisso não há nenhuma noção de transmigração ou terapia – não há nenhum “lugar melhor” para onde se ir.
Nisso apenas há o desabrochar da simplicidade perfeita das coisas como elas são, sem adendos.
Padma Dorje é praticante budista e autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos. Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org.