Superando as preferências: liberdade perante os automatismos Padma Dorje

Muitas vezes tomamos nossos gostos e preferências como a base de nossa identidade. Assumimos ser alguém que, quase sempre, livremente escolhe isto em detrimento daquilo. No entanto, muitas vezes, se por acaso queremos mudar algum hábito arraigado, logo percebemos que nossa liberdade não é tão comum. Entre acharmos que já somos livres e nos acomodarmos, ou encontrarmos o desespero e o autoengano perante os obstáculos internos, o que o budismo fala da escravidão a estruturas mentais?

Superando as preferências

Vedanā é um termo importante dentro do budismo. Geralmente traduzido como “sensação”, refere-se a uma resposta automática perante os objetos dos sentidos – tanto os 5 sentidos físicos quanto os objetos do sentido mental, os pensamentos e emoções. Isto é, sentimos as coisas como boas, ruins ou neutras – temos como que “receptores” prontos em nossas estruturas cognitivas, sem controle ou entendimento sobre o que está acontecendo.

A tradução literal do termo é essa, “sensação”, no sentido da reação interna que algo nos produz, e de acordo com essas três categorias gerais (sensação boa, ruim e neutra). Adiantando uma interpretação menos literal, como estas estruturas que reagem de um jeito ou de outro aos objetos o fazem automaticamente, podemos dizer que vedanā quer dizer inclinações ou preferências, ou até mesmo respostas cognitivas e emocionais automáticas quanto a objetos. Em outras palavras, entendemos melhor vedanā quando posteriormente naturalmente reificamos essas tendências como parte de nossa identidade, já que, em certa medida, acreditamos que somos aquela pessoa que fica feliz ao ouvir certo tipo de música, sentir certo odor ou provar certa comida, ou interagir com certo tipo de indivíduo, de certo gênero, com certas características.

Mas precisamos ter certo cuidado conceitual, porque é evidente que existe valor na discriminação, no uso do intelecto para coisas como pesar juízos e deliberar – esse não é o ponto aqui. Isto é, os ensinamentos do Buda claramente explicitam que devemos ser capazes de discernimento ético, isto é, decidir o que é certo e errado – bem como examinar os próprios ensinamentos de forma isenta. Não é uma simples tolice passiva.

Com base em preferências, podemos até mesmo nos aproximar (ou afastar) da tradição budista, ou de uma comunidade budista particular, porque a coisa toda nos produz uma sensação boa, ruim ou neutra. Porém, este é o modo frívolo dos seres confusos. O melhor modo de discernir, a única forma isenta, seria ir além de nossos automatismos em termos de sensações internas. Sem isso, nem mesmo a prática de meditação seria possível, já que ela é por vezes tediosa, dolorosa ou desagradável – bem como podemos nos apegar a certos estados meditativos prazerosos, o que também é um obstáculo à prática. Portanto, é preciso reconhecer há um elemento de honestidade para consigo mesmo em termos de como justificamos nossas preferências, e paulatinamente aprender a discernir entre o que é impulso automático e injustificado, e o que é discernimento.

Neste momento, quase nossa cognição inteira está estruturada para funcionar de acordo com parcialidades e falta de liberdades. O uso da palavra automatismo é adequado. Assim, é óbvio que nossos juízos e discernimentos vão estar maculados por preferências e inclinações – o ponto aqui é reconhecer isso e trabalhar na direção de superar quaisquer respostas automáticas, de forma a atingir uma cognição isenta – que o budismo chama de “cognição pura” ou sabedoria. Para isto, praticamos o refino de nosso “instrumento epistêmico”, isto é, limpamos as lentes do microscópio, estabilizamos a câmera, posicionamos as luzes de modo apropriado: em outras palavras, passamos por um processo de cultivo de faculdades mentais favoráveis que recebe o nome de “meditação”, de forma a estabelecer uma cognição fidedigna, não distorcida por superficialidades e tendências.

A primeira vista pode parecer que esta seria apenas uma questão de sentimentos versus razão, como a tradição ocidental, e particularmente a tradição romântica em sua crítica ao racionalismo iluminista, sempre tenta priorizar. Refreamos as paixões, e então o exame frio da pura racionalidade pode finalmente ocorrer. Meditaríamos para sermos mais “racionais” e menos emocionais. Porém, na visão budista os automatismos estão potencialmente igualmente presentes nos pensamentos e nos sentimentos. A tradição asiática não faz uma distinção aguda entre sentimentos e razão – e não só porque os sentimentos nunca estão livres de fragmentos e arroubos de justificação, e as razões nunca estão livres de correntes ocultas de energia, seja inspiração ou teimosia – mas porque ambos são potencialmente livres, e geralmente condicionados e um tanto automáticos.

O romantismo também tentou imputar ao budismo a pureza de uma experiência pura, quase irracional, uma intuição “nova era”, em que os sentimentos gostosinhos falam mais do que qualquer coisa. O budismo tem vários tipos de experiências não conceituais, mas o fato é que, a princípio, e por um bom tempo, o que importa é substituir pensamentos e emoções maculados, habituais, por pensamentos e emoções positivos. Isso não quer dizer “bonzinhos”, quer dizer coerentes, e que se coadunam com viver bem e se portar e pensar de acordo com isso. Compaixão não é algo em que nos engajamos apenas para sermos legais, ou mesmo apenas para viver melhor – embora isso também aconteça. Compaixão é um fator mental que, se desenvolvido, ajuda a produzir uma mente mais imparcial e mais aberta – é um aspecto saudável da operação da mente, para usar jargão terapêutico. Tanto fatores intelectuais quanto emocionais contribuem para a cognição pura, na medida em que eles se coadunam com as qualidades inerentes da cognição desembaraçada. Com base no cultivo de tais qualidades é possível penetrar no laboratório da mente e fazer a prática necessária para uma imparcialidade livre de fixações. Livre de nossos próprios “gostos”.

 

Nossa condição humana

A primeira reflexão a que somos convidados a fazer no budismo é sobre a preciosidade do nascimento humano. O sentido profundo dessa reflexão é entender que somos seres livres em potência, mas nossa autonomia não é garantida. Uma das tragédias de nossa cultura moderna – e não que isso estivesse ausente antes, mas hoje é culturalmente homogeneizado – é a crença de que já somos, agora, isentos e livres.

Como um exemplo, muitas vezes na discussão política surge a ideia de que, no sistema capitalista temos a liberdade de escolher, pelo menos os produtos que consumimos – bem como na democracia estabelecida dentro desse sistema podemos escolher quem nos lidera, através do voto. Podemos ou não criticar ideologias, mas é óbvio que qualquer um entende que a palavra “liberdade” muitas vezes foi usada como slogan de propaganda.

Porém, o fato é que a indústria da publicidade e relações públicas rende um bocado de dinheiro, e se podemos aprender algo com o capitalismo é que as coisas, nesse sistema, só prosperam se “funcionam”. Ao observarmos as pesquisas que unem publicidade e, digamos, indústria alimentícia, vemos que produtos são continuamente aperfeiçoados para se aproveitar de nossas fragilidades – automatismos, tais como as inclinações – isto é, de nossa falta de liberdade adventícia. Nosso potencial pleno, bem como a própria sobrevivência do planeta, não é interessante para quem anseia por mais consumidores e bons “recursos humanos”.

Não só nossas preferências são abusadas como fragilidades a serem exploradas, como há uma indústria toda especializada nos mecanismos que moldam e estabelecem estes hábitos de um jeito e de outro. Esse conhecimento não é um misticismo asiático longínquo: é o dia a dia de um escritório de publicidade. Eles não operam as camadas extremamente sutis, e é claro não dissipam a ignorância, mas efetivamente operam num nível bastante sofisticado, anterior aos vedanās. Tudo que um bom agente da indústria de publicidade e relações públicas quer é fomentar inclinações específicas numa população para favorecer seu cliente, e para isso ele estuda as expectativas e estruturas mentais do público alvo e desenha uma campanha que transforme as estruturas cognitivas do público na direção para que ele foi contratado. É visto como perfeitamente natural alocar rios dinheiro para isto, e quase todo mundo acha perfeitamente normal viver num mundo em que a maior parte das interações públicas e entre os seres humanos, e com a cultura, acaba tendo uma finalidade puramente comercial.

Os mais ardentes defensores desse processo como algo moralmente neutro dizem que a função precípua da publicidade é informar, e que um processo natural de competição instaura “os melhores mundos mentais possíveis” – que curiosamente, embora lidem com seres humanos, supostamente se encaixam perfeitamente com as prerrogativas da produção e da competição entre empresas.

 

Suco natural de caixinha

E seria fácil dizer que esse é um processo racional ou emocional, apenas – mas é essencialmente um processo de reforço de hábitos. Certas tendências maleáveis são manipuladas, mas hábitos mais arraigados já estão presentes.

É importante dizer: não precisa haver uma grande conspiração em que homens maus planejam cuidadosamente como destruir o ambiente, ou estejam unidos em torno de outro objetivo que passe pela destruição da felicidade humana e do ambiente. O processo todo é tão impessoal como a evolução darwinista. Todos os elementos da engrenagem de reificação dos automatismo são vítimas – do especulador ao CEO, do criador ao publicitário, do engenheiro ao trabalhador na linha de produção, do vendedor ao consumidor.

Samsara – a experiência cíclica em que operamos cegamente por automatismos – é como sempre foi, e nesse sentido, não há inimigos. Nossa circunstância atual é só uma série exponencial de proliferações dos mesmos processos “naturais” que sempre ocorreram. E isso está dentro da argumentação ideológica da eficiência via competição – ora, a articulação de que tudo isso se trata de um processo natural.

E aqui vem uma pequena informação que pode ser muito embasbacante para a maioria das pessoas. Só porque um processo é natural, isto não significa que ele é bom. Bom para você, para os outros, para o ambiente. Tecnicamente, isso se chama falácia naturalista.

De fato, é muito difícil entender o conceito de natural. O conceito de natural tem uma definição ideológica, que fica fácil de perceber nos rótulos dos produtos. Houve um tempo em que os sabores artificiais eram uma novidade intensa e divertida, e ninguém se importava em colocar no rótulo, bem grande, que o cheiro e sabor semelhante ao do morango era fruto da criação de um químico esperto. Os anos foram passando, as perspectivas foram mudando, e hoje o rótulo “natural” ou “integral” vende melhor. Então critérios arbitrários são estabelecidos para definir o que pode, ou não, ser chamado de “natural” e colocado na prateleira.

Quando lemos “natural” e “liberdade”, hoje, estão mais do que tudo nos vendendo uma ideologia. (E o leitor mais flexível pode contra argumentar que esses termos são muito usados também pelo budismo. Sim, o budismo tenta reciclar e fazer um uso subversivo da linguagem da propaganda: porque também é tudo que os seres entendem hoje.)

 

Os senhores que por vidas incontáveis nos aprisionam

Na visão teísta mais tradicional, o próprio mundo não é nada natural, porque ele é uma criação de Deus. E alguém pode dizer “ah, mas se foi criado por Deus, não poderia ter nenhuma artificialidade!” Não obstante, teologia é algo mais complexo do que isso, e as visões mais cogentes vão precisar explicar coisas como a existência do mal no mundo, e coaduná-la com suas expectativas sobre o criador, acabando por criar conceitos como “livre-arbítrio”. Assim a criação precisa ser separada e diferente do criador, e se torna inevitavelmente uma espécie de artificialidade.

Para a visão moderna da ciência, por outro lado, não é nem um pouco assim. Para a ciência, o que existe, existe naturalmente. Algumas visões deístas na origem do entendimento moderno de ciência são puramente mecanicistas: Deus deu a corda num processo, e agora tudo se desenrola como ele projetou, e os cientistas só examinam as engrenagens na tentativa de entender a mente divina. Independente disso, hoje com ou sem esse Deus distante, ciência ainda é “filosofia natural”. A definição de natural aqui é “as coisas que se apresentam, mais ou menos como se apresentam, fazendo essas coisas que elas fazem, mais ou menos determinadamente”.

A percepção do cientista, é claro, é automaticamente isenta – até a comunidade científica intervir e provar que não é.

Não é de surpreender que o materialismo realista do fisicalismo monista tenha dificuldade em achar fundamentações éticas. Qualquer tipo de monismo vai encontrar problemas com a definição de artificialidade: transgênicos são um processo desenvolvido por seres humanos, que são estruturas naturais. Nada que um ser humano faz poderia ser, no fundo, “artificial”. E então definições como natural e artificial se tornam apenas rótulos publicitários, absolutamente arbitrários.

Algumas versões do teísmo, como o gnosticismo, dizem que o criador desse mundo é um falso criador. O verdadeiro criador seria aquele que fez o Jardim do Éden, que aí sim é verdadeiramente natural. Este mundo aqui, com nossos corpos de carne e com urubus à espreita, foi criado por um embusteiro e trapaceiro – e daí ter tantos problemas e sofrimentos. Através do conhecimento direto (gnosis), vamos reconhecer o reino divino como ele efetivamente é, e dissolver essa aparição grosseira produzida por um ilusionista.

Esta percepção do gnosticismo acabava, em alguns extremos mais subversivos, retratando a própria instituição da Igreja como braços desse pseudo-criador malévolo. Os clérigos tradicionais eram considerados uma hierarquia demoníaca preservando ensinamentos confusos que nos prendem ao mundo. Não é de admirar que o gnosticismo tenha sido suprimido – eles eram meio hippies.

Na ficção científica mais antiga, como em Admirável Mundo Novo e 1984 e THX 1138, advindas das tensões totalitárias do início do séc. XX, vimos governos controlando a mentalidade das pessoas. É como o gnosticismo aplicado ao pensamento pós-holocausto. Uma hierarquia de demônios, encabeçada por um líder carismático, agora nos encerra não numa bíblia, instituição e criação falsas, mas na guerra global e no campo de concentração. Com o fim da guerra, e a advertência do presidente Thurman sobre haver um risco real das indústrias militares tomarem o controle do governo dos EUA, a figura do governo como demiurgo gnóstico na ficção científica foi paulatinamente trocada pela corporação. São empresas, muitas vezes representadas por máquinas, que prendem os seres na Matrix, ou produzem drones e o Robocop.

Para o budismo, todas essas visões são paranoias desnecessárias. Nossos inimigos não são externos. A máquina totalitária da visão errônea que preside a tortura no mundo condicionado é o apego ao eu. Existem seres de todo tipo que se aproveitam de nossa fragilidades, mas é nossa a responsabilidade ter entregue as rédeas de nossa condição interna a esse demiurgo sutil chamado “eu”.

 

A espada de sabedoria

Para o budismo, este mundo em que há coisas que a ciência examina e mesmo vedanās, não é natural. Ele é produzido pela ignorância. Em certo sentido é possível dizer que a ignorância cria tudo – mas “criar”, na perspectiva budista, é por si só um conceito que faz parte de uma visão ignorante.

A diferença essencial entre o budismo e o gnosticismo é que o conhecimento direto (a raiz linguística da palavra inclusive é a mesma: esta coisa meio “nh”: prajnya, jnana, gnosis, knowledge, conhecimento) implica uma não separação ou não diferença entre este mundo que se apresenta para a ignorância e o mundo que se apresenta para a sabedoria. A distinção é meramente de perspectiva, a substância é a mesma. Mais do que isso, só há perspectiva, não há substância alguma. A noção de substância é uma das ideologias falsas do eu.

Para o budismo, seres demoníacos que exploram nossas fragilidades cognitivas, como publicitários ou governos corruptos, não são o problema mais relevante. O problema mais relevante é que nós mesmos ainda temos essas fragilidades. Os senhores que nos exploram são nossos próprios hábitos cognitivos distorcidos através de maus hábitos mentais, ao longo de muito tempo, liderados pelo apego ao eu.

Quando alguém considera bem isso, não pode ficar realmente chateado de ouvir um ensinamento budista que diga que precisamos superar nossos gostos e inclinações – “puxa, mas eu não vou poder preferir sorvete de morango?” Nosso primeiro impulso é pensar que o Buda esta querendo tirar de nós tudo que somos, porque nos identificamos, primariamente, com esses impulsos. O que eu sou sem essas tendências? A mesma coisa, só que agora livre.

Ainda assim, é importante reiterar: o discurso público, e nosso entendimento de nós mesmos, é que já somos livres. E quando seguimos nossas sensações – nossas inclinações e preferências – estamos agindo com um discernimento que é nosso, já que sabemos o que é melhor para nós mesmos. Todo mundo sabe, olhe para os raros momentos de hesitação, em que desconfiamos de que algo não está totalmente certo. Modo geral, os seres – animais, criminosos, trabalhadores, transeuntes, estão no piloto automático, dotados da mais aguçada certeza de que estão agindo livremente.

O ensinamento budista é claro: a liberdade, a isenção perante os automatismos, não é comum. Ela é possível, mas demanda análise, antídotos, a geração deliberada e paulatina de novos hábitos – isto é, cultivo, prática, meditação.

Se a pessoa tem uma mente que realmente precisa de inimigos, como no gnosticismo, em certos ativismos políticos, e assim por diante, há certas práticas vajrayana que transformam a prática de meditação num campo de batalha contra o apego ao eu. Essa é também uma perspectiva válida e extraordinária, mas é incomum para quem começa no darma.

De modo geral, para vencer os senhores que nos aprisionam por vidas incontáveis, basta repousar no estado natural – que aqui significa, superar artificialidades tais como os vedanās, por mais que agora nos pareçam naturais. A espada autossurgida da cognição pura corta pela raiz as proliferações de automatismos. E assim eliminamos nossas fragilidades, e passamos a trabalhar para eliminar as fragilidades dos outros.

 

Que eu mesmo e todos os seres encontremos disposição e oportunidade para encarar os obstáculos mais ocultos e estudar em detalhes – com textos raiz, comentários e um professor qualificado para dirimir dúvidas – as estruturas cognitivas tais como os 12 elos da originação dependente, os 5 agregados e os 51 fatores mentais listados pelo Abidarma-samucaya. Que em conjunto com o estudo, nos engajemos alegre e intensamente nas práticas de cultivo de estabilização e discernimento. Que assim nos desembaracemos dos grilhões das aflições mentais e da feitoria imemorial dos hábitos funestos e obscurecimentos cognitivos – todos impedimentos para a fruição na felicidade simples da inteligência compassiva da ausência de qualquer artifício. Que todos nos encontremos na vividez detalhada da mandala de um só sabor.

eduardo-pinheiro-1Padma Dorje é praticante budista e autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos.  Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org.

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