Com a meditação nós reduzimos nossas fantasias e vemos a vida como ela realmente é. Então algo mágico acontece. Judith Simmer-Brown diz que é exatamente o que acontece nos nossos relacionamentos.
Amarga, amarga minha dor deve ser,
E nunca, nunca meu coração deve desistir
Em seu enorme e esmagador sofrimento por ela,
Nem uma esperança passageira me é dada
De felicidade ainda que doce, ainda que boa.
Uma grande alegria pode causar atos de bravura em mim.
Eu nada farei; tudo que quero é ELA.
—Peire de Rogiers
O amor romântico, por mais maravilhoso que seja, é o sintoma inicial de mal-estar cultural, a neurose principal da civilização ocidental
Por amor romântico quero dizer aquele que concentra no amado como um objeto de paixão, devoção e fixação. A pessoa amada torna-se a resposta para todos os problemas da vida, a fonte de toda nossa felicidade, e potencialmente, a fonte de todos nossos males. Mas, se formos honestos consigo mesmos, podemos ver que o amor romântico é um amor profundamente infeliz, viciado na miséria e sofrimento, coberto em fantasia e separação.
O amor romântico tornou-se um tipo de religião na civilização ocidental. Em seu livro de referência, O Amor e o Ocidente, Denis de Rougemont traçou o desenvolvimento do amor romântico na tradição cortês da Idade Média, descrevendo-o como uma heresia cristã. Ele menciona como nobres cristãos transferiram sua devoção do Deus inalcançável para a amada inatingível, envolvendo-a com traços idealizados, além de qualquer mulher mortal. Ele alega que essa visão do amor romântico sobrevive até hoje; mesmo agora, uma das formas mais abrangentes e não reconhecida de teísmo é nossa vida amorosa. Nós transformamos o amado em um deus, e nos apaixonamos mais pelo amor que pela pessoa amada. Ao ser amado é dado um papel específico para que ele ou ela possa permanecer um deus.
“Com a separação a fantasia do amado pode ser mantida viva. A realidade da pessoa não pode ameaçar a fantasia.”
Quais são as características dos relacionamentos românticos? Primeiramente, o amor romântico desenvolve-se na separação. O amor impossível é o mais cativante — alguém que é casado com outra pessoa, alguém que vive numa cidade distante, ou em outro aspecto de proibição. A garota ou garoto da vizinhança não é um bom candidato para uma fantasia romântica, nem seus maridos e esposas. A separação torna o coração mais apaixonado e ardente, porque com a separação a fantasia do amado pode ser mantida viva. A realidade da pessoa não pode ameaçar a fantasia. Por essa razão, muitos recém-casados tornam-se rapidamente desiludidos sobre as realidades do cotidiano da vida de casado. O namoro foi tão emocionante, mas o casamento é muito real, muito rotineiro.
Uma vez que o romance se desenvolve na separação, é excitante, mas nunca sexualmente realizado. Se alguém estiver de fato sexualmente saciado, então o romance estará ameaçado. Frequentemente, o amante escolhe a opção mística do desejo, abandonando o parceiro sexual vivo e presente pela fantasia do amor inalcançável. Os casos de amor proibido são ardentes, mas dificilmente resultam em casamento.
Em segundo lugar, o amor romântico é tremendamente impessoal. Nós procuramos o nosso “tipo”— um intelectual, um atleta, uma loira estonteante. Nosso gosto pode tornar-se muito sutil, incluindo a maneira de se vestir ou o jeito de andar do ser amado. Mas estamos apaixonados por uma fantasia; a pessoa amada não está presente. Na verdade, até ajuda a pessoa não estar muito por perto, porque pode destruir a fantasia. Tememos que o amor possa tornar-se muito concreto.
Ao fazer do amado um deus, nós induzimos um senso de carência em nós mesmos. Essa é uma falta de completude, que se manifesta como um desejo insaciável. Nos sentimos inadequados e desamparados sem um amor. Quando fazemos do amado um deus nós nunca podemos nos juntar a ele. Ficamos presos numa situação de aflitivo desejo, de carência e insegurança. É por isso que Rougemont chamou o amor romântico de heresia cristã; a paixão significa sofrimento, e desviamos nossa devoção para uma fantasia, que nos aprisiona para sempre na infelicidade.
“O amor romântico glorifica a infelicidade.”
Há um desejo pela morte no coração do amor romântico. Na mitologia clássica e na literatura, uma pessoa só possui completamente o ser amado após a morte — e vemos isso diariamente sobre brigas domésticas nos jornais. O desejo de união com o amado é a busca por uma junção, e qualquer coisa no caminho pode atrapalhar a fantasia.
Essa é a característica mais difícil de admitir: o amor romântico glorifica a infelicidade. A dor da paixão romântica é algo que achamos maravilhoso. Isso fica claro nos entretenimentos como filmes, novelas, televisão, balé, ópera e peças teatrais. Nos entretemos com a deliciosa dor de uma história romântica, e essa dor nos faz sentirmos tão vivos, tão reais, e tão convencidos do valor do amor romântico.
Quando examinamos isso cuidadosamente, podemos sentir o perigo de um culto, que glorifica a infelicidade. A tradição Shambhala fala do conceito do pôr-do-sol, que exalta os aspectos mais degradados da natureza humana e glorifica a morte. O conceito do pôr-do-sol se fixa na miséria e ignora a dignidade humana; se alimenta da tragédia e repreende o coração comum. A tradição Shambhala observa que o conceito do pôr-do-sol é uma abordagem desnecessária e inadequada para a vida humana. Ele prejudica nossa inteligência básica e integridade, e nos priva de vivermos plenamente a vida. O amor romântico é a epítome do conceito do pôr-do-sol na nossa cultura.
Então, que escolha nós temos? Nós percebemos quão infeliz o amor romântico é, mas qual outra opção existe? Todos nós experienciamos a forma como se inicia um relacionamento romântico, e as subsequentes decepção e desilusão. Nós dizemos que nos apaixonamos. Começamos a sentir a falta de sentido da fantasia, e vemos o ser amado como um estranho ou mesmo como um inimigo. Nos sentimos tão solitários e magoados.
Mas a desilusão é simplesmente o lado negativo do amor romântico. Em ambos casos estamos tão envolvidos com nossa própria fantasia que nunca realmente olhamos para a outra pessoa. Não vemos a pessoa pela qual nos apaixonamos; não vemos a pessoa com a qual terminamos o relacionamento. Ambas situações são impessoais. Marge Piercy descreve isso no seu poema “Canção-simples”:
Quando nos dirigimos a alguém nós dizemos
você é como eu
seus pensamentos são meus companheiros
palavra coincide com palavra
como é fácil ficar junto.
Quando nós deixamos alguém nós dizemos
que estranho você é
não conseguimos conversar
nunca estamos de acordo
como é difícil, penoso e exaustivo ficar junto.
Nós não somos diferentes ou parecidos
mas cada estranho em seu próprio corpo
envoltos em pele, estendendo mãos desajeitadas
e amar é uma ação
que não podemos sobreviver
a mão aberta
o olho aberto
a porta do coração aberta.
A desilusão é o lado mais positivo da moeda porque ocorre quando nossas ambições e fantasias sobre o relacionamento desmoronam. A desilusão pode ser o início do verdadeiro relacionamento. Há um tipo de perda da inocência na desilusão, que pode levar à admiração do amado por quem ele é — além da fantasia.
Manter-se na desilusão requer uma certa coragem, pois nos achamos isolados. Muitas vezes é o nosso medo da solidão que nos leva a procurar seriamente por um relacionamento; nós precisamos de alguém, qualquer um, para nos sentirmos seguros, estáveis, vivos. E aqui estamos de novo, sozinhos e desolados.
Começamos a achar que ninguém pode afastar nosso medo da solidão, já que esse é um sentimento tão familiar. Nossa solidão sempre vai surgir; mesmo o melhor relacionamento acaba, através da morte ou transformação. Quando valorizamos nossa solidão, ela se torna tão agradável. Quando sentimos e reconhecemos a solidão como base para todos nossos relacionamentos, surge uma enorme liberdade. Mas claro, isso não garante nada sobre o relacionamento em si.
Quando a solidão e a desilusão despertam em nós, o relacionamento pode ter o espaço para começar. Há um tremendo risco, porque não sabemos realmente para onde o relacionamento está indo. Tanto pode haver bons momentos, como pode haver maus momentos. O que acontece, porém, é que começamos um relacionamento com a pessoa. Podemos começar a ver o ser amado como alguém distinto de nós, e sentimos solidão no relacionamento. Anteriormente, o romance preenchia os vazios da nossa vida e nos fazia companhia. Nos sentíamos completos porque nossa fantasia preenchia todas nossas carências, ou assim imaginávamos.
Mas quando começamos a realmente ter um relacionamento com alguém, existem lacunas, existem necessidades não atendidas. Esse é o alicerce para o relacionamento. Quando há essa característica de separação e sensatez, uma química muito mágica pode surgir entre duas pessoas. É imprevisível e incerto, e não segue as orientações místicas para o amor romântico.
Quando começamos a ver a outra pessoa, surge uma nova oportunidade de um romance de uma maneira saudável. A própria distinção do ser amado pode nos atrair. É fascinante o que faz meu marido ficar bravo, o que faz ele rir. Ele realmente gosta de jardinagem, e odeia fazer compras. Um fascínio contínuo pode florescer, porque a outra pessoa está além dos nossos limites de expectativa e conceituação. Esse fascínio pode incluir momentos de depressão, desânimo e resignação. Bem como incluir momentos de bom humor, alegria e admiração. Mas isso tudo é palpável e vívido. Mesmo enquanto estamos intoxicados com a presença contínua da outra pessoa, nós somos assombrados e envoltos pela nossa própria solidão.
E, talvez surpreendentemente, exista uma possibilidade de paixão ilimitada quando você não está tentando encaixar o outro em um papel. Esta pode ser uma paixão feliz, porque não está tentando manipular o amado para preencher suas carências; é uma paixão que pode incluir a sexualidade sem medo de intimidade. Existe também uma vertigem causada por uma paixão de altitude mais elevada, porque a própria solidão permanece e é uma situação tão inescapável.
Quando você vê o relacionamento além da desilusão, você se relaciona com um mundo notavelmente vívido. Seu companheiro torna-se um símbolo ou representante de todos os cosmos. Quando ele ou ela fica bravo e diz “não”, você está realmente recebendo uma mensagem do universo. Quando dificuldades ou estresses acontecem, são muito significativos e devem ser trabalhados. Tudo que acontece no seu relacionamento pode ser uma mensagem do mundo em geral.
“Quando nos libertamos da manipulação, os relacionamentos são essencialmente arriscados. Não temos controle sobre eles.”
Parece muito mais seguro estar romanticamente envolvido. Mas se estamos, nunca podemos nos afastar da nossa consciência. Sempre estaremos envolvidos com nossos conceitos sobre o amor romântico. Desilusão é a perda da inocência. E essa perda pode na verdade nos despertar, se estivermos dispostos a continuar nesse cenário. Há uma falta de escolha que cresce quando você admira a outra pessoa por quem ela é e desiste de tentar encaixá-la na imagem da sua fantasia.
Quando nos libertamos da manipulação, os relacionamentos são essencialmente arriscados. Não temos controle sobre eles. Em um relacionamento saudável, você tenta apoiar a bondade e a dignidade da outra pessoa. Você não permite que eles acobertem a mesma situação de novo e de novo; você desiste do sentimento de traição se eles fizerem o mesmo com você. Você se dispõe a ser um lembrete suave de como as coisas são, e permite que o sejam também. Mas não há garantias sobre seus respectivos papéis.
Devemos cortar o amor romântico das nossas vidas? Claro que não. Estamos imersos em nossa cultura, e temos nossas neuroses para trabalhar. A forma inteligente de trabalhar com o amor romântico é experimentá-lo integralmente, começando com a paixão romântica, e então experienciar o desapontamento e continuar a partir daí. Devemos compreender detalhadamente o que estamos fazendo, estar conscientes da nossa tendência à ilusão quando estamos “apaixonados. ”
Existe uma energia extraordinária na nossa paixão. O amor romântico é o início da compreensão da natureza do relacionamento. Através dele criamos coragem de pular, e uma vez que estamos no oceano, aprendemos a nadar. Sem o amor romântico talvez nunca tivéssemos saltado.
SOBRE JUDITH SIMMER-BROWN
Judith Simmer-Brown é Professora Honorária de Estudos Religiosos e Meditação na Universidade Naropa e professora sênior de Budismo na tradição Shambhala.
Texto traduzido por Tamyres Bertanha do original em inglês publicado em Lions Roar disponível aqui →