Lembrar-se da morte para enriquecer cada instante da vida | Matthieu Ricard.

Lembra-te de que há dois tipos de fanáticos: os que não sabem que têm que morrer, e aqueles que esqueceram de que estão vivos.

PATRICK DECLERK

 A morte, tão distante e tão próxima… Distante, porque sempre a imaginamos vindo um pouco mais tarde; próxima, porque pode nos atingir a qualquer momento. Se a nossa morte é certa, a hora em que chega é imprevisível. Quando ela se apresenta, não há eloquência que possa persuadi-la a esperar, não há poder que possa detê-la, não há riqueza que possa comprá-la, nem beleza que possa seduzi-la:

 Como o rio que corre para o mar,

Como o sol e a lua que escorregam para os montes do poente,

Como os dias e as noite, as horas, os instantes que foge,

A vida humana se escoa inexoravelmente.

LEMBRAR-SE DA MORTE PARA ENRIQUECER CADA INSTANTE DA VIDA

Como enfrentar a morte sem voltar as costas à vida? Como podemos pensar nela sem entrar em desespero e sem temê-la? Etty Hillesum escreveu: “Ao excluirmos a morte da nossa vida, não vivemos plenamente, e ao acolher a morte no coração da nossa vida, fazemos com que esta cresça e se enriqueça.” De fato, a maneira como vemos a morte tem um impacto considerável na nossa qualidade de vida. Algumas pessoas ficam aterrorizadas, outras preferem ignorá-la, e outras ainda a contemplam para apreciar melhor cada instante que passa e reconhecer aquilo que vale a pena ser vivido. Aceitar a morte como parte da vida serve de estímulo para a diligência e para evitar que desperdicemos o nosso tempo com distrações vãs. Gampopa, o sábio tibetano do século XII, escreveu: “No começo, devemos temer a morte como um cervo que tenta escapar de uma armadilha. A meio caminho, é preciso não ter nada de que se arrepender, como o camponês que trabalhou com cuidado a sua terra. No final, é preciso que estejamos felizes, como alguém que cumpriu uma grande tarefa”.

É melhor aprender a tirar proveito do medo que a morte inspira do que ignorá-lo. Não precisamos viver com uma preocupação lancinante com a morte, mas devemos permanecer conscientes da fragilidade da existência, para não deixarmos de dar valor ao tempo que nos resta para viver. A morte muitas vezes ataca sem aviso. Podemos estar gozando de boa saúde, desfrutando uma boa refeição com amigos, num lugar belíssimo e, no entanto, vivendo nossos momentos finais. Deixamos para trás os nossos amigos, as conversações interrompidas, a nossa refeição pela metade, os nossos planos inacabados.

Não ter nada de que se arrepender? Aquele que aproveitou ao máximo o potencial extraordinário que a vida humana lhe ofereceu, por que teria ele algo de que se arrepender? Com tempo bom ou ruim, o fazendeiro que trabalhou, semeou e ceifou a sua colheita não se arrepende de nada, sabe que fez o seu melhor. Só podemos nos censurar por aquilo que não fizemos. Alguém que usou cada segundo da sua vida para se tornar uma pessoa melhor e para contribuir para a felicidade dos outros, pode legitimamente morrer em paz.

 “E EU NÃO SEREI MAIS, E NADA MAIS SERÁ”

 A morte se parece com uma chama que se extingue,uma gota de água que a terra absorve? Se é este o caso, como afirmou: “Portanto, a morte, o mais aterrorizador dos males, não é nada para nós já que, quando existimos, a morte ainda não está presente, e quando ela está presente, nós não existimos”. Mas e se a aventura não para por aí, se a morte é apenas uma transição e a nossa consciência continuará a vivenciar incontáveis estados de existência? Teremos que enfrentar essa importante passagem – não nos concentrando no nosso medo do sofrimento desse momento, mas adotando uma atitude altruísta e pacífica, livre do apego às posses e aos nossos entes queridos.

De qualquer modo, é claro que é preferível viver serenamente os nossos meses ou momentos finais, e não com angústia. De que serve se torturar com o pensamento de deixar para trás os nossos entes queridos e as nossas posses, e ficar obcecado com a decadência do nosso corpo? Como explica Sogyal Rimpoche: “A morte representa a destruição suprema e inevitável daquilo a que mais nos apegamos: nós mesmos. Vemos claramente, portanto, até que ponto os ensinamentos sobre o não-ego e a natureza da mente podem nos ajudar.”  à medida que a morte se aproxima, então, o melhor é adotar uma atitude serena, altruísta e desapegada. Dessa maneira evitamos fazer da morte um tormento mental ou uma provação física.

Não devemos esperar até o último minuto para nos prepararmos, porque dificilmente esse será o momento certo para decidir seguir em uma jornada espiritual. “Você não se envergonha”, escreveu Sêneca, “de reservar para si só o que sobra da vida e de deixar para a sabedoria somente aquele tempo que não pode ser dedicado a nenhum outro assunto? Como é tarde começar a viver só no momento em que é preciso deixar de viver”!  É agora que precisamos nos engajar nesse caminho, enquanto temos o corpo e a mente saudáveis. Escutemos Dilgo Khyentse Rimpoche:

 A flor da juventude nos preenche de um vigor sadio, e queremos

desfrutar intensamente da vida. Com um entusiasmo indomado,

nos esforçamos para aumentar nossa fortuna e nosso poder.

Alguns não hesitam em prejudicar os interesses alheios para atingir seus objetivos. Mas no instante da nossa morte, compreendemos o quanto eram vãs essas atividades febris. Será muito tarde, ai!, para voltar atrás. Nada serve mais no momento da morte, a não ser a experiência espiritual que tenhamos adquirido ao longo da vida. Rápido! Pratiquemos antes que a velhice nos prive das nossas faculdades físicas e intelectuais.

A MORTE DOS OUTROS

Como podemos lidar com a morte das outras pessoas? Se a morte de uma pessoa querida às vezes é sentida como um trauma irreparável, há um outro modo de vê-la que não tem nada de mórbido, porque uma “boa morte” não é necessariamente trágica. No Ocidente contemporâneo, as pessoas tentam de toda maneira desviar o olhar diante da morte. Ela é disfarçada, encoberta, tornada asséptica para aparecer mais aceitável. Cimo não há nenhum meio material de evita-la, preferimos removê-la totalmente do campo da nossa consciência. Ao fazer isso, ela fica ainda mais chocante quando por fim acontece, porque estamos despreparados para enfrentá-la. Enquanto isso a vida cai se escoando, dia após dia, e se não aprendermos a descobrir um sentido nela, a cada momento, tudo não terá sido mais do que desperdício de tempo.

Na Europa, no tempo do Antigo Regime, a família inteira se reunia em torno daquele que estava morrendo, os padres administravam o sacramento, e ele dizia as suas últimas palavras. Ainda hoje – no Tibete, por exemplo – quase sempre as pessoas morrem na companhia da família ou dos amigos. Isso permite também que as crianças vejam que a morte é uma parte natural da vida. Se um mestre espiritual está presente à cabeceira da pessoa que está morrendo, a morte vem serenamente, e os entes queridos são reconfortados. Se, além disso, essa pessoa tem experiência na prática espiritual, ninguém tem motivo para se preocupar. Muitas vezes as pessoas que voltam de uma cremação dizem: “Tudo correu muito bem.” Logo em seguida à cremação de uma amigo – um budista americano que morrei em Katmandu -, um embaixador americano no Nepal me disse que nunca tinha assistido a um funeral tão tranquilo.

A MORTE DO SÁBIO

O sábio goza de um tipo muito especial de liberdade: preparado para a morte, ele aprecia, a cada momento, a riqueza e a generosidade da vida. Ele vive cada dia como se fosse o único. Esse dia, naturalmente, se torna o mais precioso da sua existência. Quando olha para o pôr-do-sol, pergunta a si mesmo: Será que verei o sol levantar-se novamente, amanhã de manhã?” Ele sabe que não tem tempo a perder, que o tempo é precioso e que seria tolice desperdiçá-lo com coisas insensatas. Quando a morte finalmente chega, ele morre tranquilamente, sem tristeza ou arrependimento, sem apego ao que está deixando para trás. Ele deixa esta vida como a água que se eleva no azul do céu… Escutemos a canção do eremita Milarepa:

Com medo da morte, fui para as montanhas,

Meditei muitas e muitas vezes sobre a hora incerta da sua chegada,

E tomei o baluarte da natureza imortal e imutável.

Agora estou além de todo o medo da morte.


”Trecho do livro Felicidade – A pratica do Bem Estar”

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