Trecho do livro ”Felicidade – A pratica do Bem Estar” de Matthieu Ricard.
Se as paixões são os grandes dramas da mente, as emoções são os seus atores. Durante toda nossa vida, atravessando nosso espírito como um rio tumultuado, elas determinam incontáveis estados de felicidade e infelicidade. É desejável domar esse rio, acalmá-lo? É possível fazê-lo? Se sim, como? Certas emoções nos fazem desabrochar, enquanto outras sabotam o nosso bem-estar. Há, ainda, aquelas que nos fazem definhar.
Em vez de distinguir entre emoções e pensamentos, o budismo está mais voltado à compreensão de quais tipos de atividade mental levam ao bem-estar, o nosso próprio e o dos outros, e quais são nocivos, especialmente a longo prazo. Isto é, na verdade, muito coerente com aquilo que as ciências cognitivas nos mostram sobre o cérebro e a emoção. Não se pode propriamente falar de “centros emocionais” no cérebro. Cada região associada a algum tipo de emoção também está associada a um aspecto cognitivo. Os circuitos neuronais que veiculam as emoções estão intimamente ligados aos que veiculam a cognição. Esse arranjo anatômico é coerente com a visão budista, segundo a qual esses processos não podem ser separados: as emoções aparecem em um contexto de ações e pensamentos, quase nunca estão isoladas dos outros aspectos da experiência. Deve-se notar que isso contradiz a teoria freudiana, segundo a qual poderosas emoções, como a cólera e o ciúme, por exemplo, podem surgir sem a presença de qualquer conteúdo cognitivo e conceitual particular.
O IMPACTO DAS EMOÇÕES
Derivada do verbo latino emovere, que significa “mover”, a palavra emoção é atribuída a todo sentimento que faz a mente entrar em movimento, seja na direção de um pensamento nocivo, seja na de um neutro ou positivo. Para o budismo, a emoção é aquilo que condiciona a mente e faz com que ela adote uma determinada perspectiva, uma certa visão das coisas. Não se trata sempre de um acesso ou uma explosão emocional que, de maneira repentina, surge na mente – definição que estaria mais próxima daquilo que os cientistas estudam como emoção.
A forma mais simples de estabelecer distinções entre as nossas emoções consiste em examinar a sua motivação (a atitude mental e o objetivo escolhido) e os resultados. Se uma emoção fortalece a nossa paz interior e nos ajuda a buscar o bem dos outros, ela é positiva ou construtiva; se ela destrói a nossa serenidade, perturba profundamente a nossa mente e quer ferir os outros, é negativa ou perturbadora. Quanto ao resultado, ou às consequências, o único critério é o bem ou o sofrimento que engendramos por meio dos nossos atos, palavras e pensamentos, a nós mesmos e aos outros. É isso que diferencia, por exemplo, a “cólera santa” – a indignação causada por uma injustiça que testemunhamos – da fúria engendrada pelo desejo de ferir alguém. A primeira libertou povos da escravidão, da dominação e nos leva às passeatas para transformar o mundo; destina-se a fazer cessar a injustiça o mais rapidamente possível, ou conscientizar alguém dos erros que está cometendo. A segunda só gera sofrimentos.
Se a motivação, o objetivo visado e as consequências são positivas, pode-se utilizar meios apropriados, seja qual for a aparência que tenham. A mentira e o roubo geralmente são atos nocivos e, portanto, à primeira vista, repreensíveis; mas podemos também mentir para salvar a vida de uma pessoa perseguida por um assassino, ou furtar as reservas alimentares de um potentado egoísta para alimentar habitantes de uma vila que estejam morrendo de fome. Por outro lado, se a motivação é negativa e o objetivo nocivo ou egoísta, mesmo recorrendo a meios aparentemente respeitáveis os atos são negativos. Como disse o poeta tibetano Shabkar: “O homem compassivo é gentil mesmo quando está irado; o homem que não tem compaixão mata com um sorriso”.
POR QUE FALAMOS EM “EMOÇÕES NEGATIVAS”?
Segundo o budismo, o termo “emoção negativa” não implica necessariamente que a emoção em questão esteja associada a um sentimento desagradável que faça com que nos afastemos ou o rejeitemos, como é o caso da repugnância. Ao contrário, ela pode estar ligada à atração, ao desejo ávido e obsessivo. Esse termo também não envolve a ideia de negação ou recusa. O adjetivo “negativo” significa menos felicidade, lucidez e liberdade interior. Ele qualifica toda emoção que é fonte de tormentos para nós e para os que estão ao nosso redor. Do mesmo modo, uma emoção ou fator mental “positivo” não supõe que vejamos a vida cor-de-rosa, mas contribui para sukha.
Essas noções nos remetem a um dogma ou a um código moral editado por uma instância suprema, mas nos levam diretamente ao próprio coração dos mecanismos da felicidade e do sofrimento. Todos nós já passamos por esta experiência: quando damos livre curso ao ciúme, o resultado não se faz esperar – não temos mais um instante de paz e criamos um inferno para os outros. A nossa primeira reação não deve consistir apenas em abafar a emoção negativa, mas compreender as razões pelas quais ela não tem nenhum efeito positivo.
A simples compreensão mental mudará alguma coisa? No momento em que uma pessoa se dedica a refletir, geralmente sem estar sob o efeito de uma emoção forte, ela não tem como produzir efeitos positivos ou negativos sobre essa emoção. Contudo, isso permitirá que ela compreenda que deve ficar atenta quanto ao processo repetitivo dos sofrimentos engendrados pelas emoções negativas e terminará por compreender que se queima toda vez que põe a mão no fogo.
A palavra tibetana nyön-mong (klesha em sânscrito) designa um estado mental perturbado, atormentado e confuso, que nos “aflige a partir de dentro de nós”, do nosso interior. Observemos o ódio, o ciúme ou a obsessão no instante em que nascem: é indiscutível que eles nos causam um profundo mal-estar. De outro ponto de vista, as ações e as palavras que esses estados inspiram, na maioria das vezes, têm a intenção de fazer mal a alguém. Em contrapartida, os pensamentos de bondade, ternura e tolerância nos dão alegria e coragem, abrem a nossa mente e nos libertam interiormente. Eles ainda nos estimulam na direção da benevolência e da empatia.
Além disso, as emoções perturbadoras tendem a distorcer a nossa percepção da realidade e nos impedem de vê-la como realmente é. O apego idealiza o seu objeto, o ódio demoniza-o. Essas emoções nos levam a acreditar que a beleza e a feiúra são inerentes às pessoas e coisas, quando é a mente que decide se elas são “atraentes” ou “repulsivas”. Essa compreensão errônea abre uma brecha entre a aparência das coisas e a sua realidade, obscurece o nosso julgamento e nos leva a pensar e agir como se essas qualidades não dependessem da nossa maneira de vê-las. Já as emoções e estados mentais “positivos” (segundo a acepção budista) reforçam a nossa lucidez e a precisão do nosso raciocínio, na medida em que se baseiam em uma apreciação mais exata da realidade. Assim, o amor altruísta reflete a interdependência íntima que existe entre todos os seres, entre a nossa felicidade e a dos outros, e está em harmonia com a realidade, enquanto que o egocentrismo cava um fosso cada vez mais profundo entre nós e os outros.
O essencial, portanto, é identificar os tipos de atividade mental que conduzem ao “bem-estar”, ao sofrimento, mesmo que esses últimos nos concedam breves momentos de prazer. Esse exame requer uma avaliação sutil da natureza das emoções. Por exemplo, o deleite que experimentamos ao fazer uma observação inteligente mas maliciosa é considerado negativo. Já a nossa satisfação, ou até a tristeza, por não podermos aliviar o sofrimento que testemunhamos de maneira alguma atrapalha a busca de sukha, visto que tais emoções nos encorajam a cultivar com desapego a capacidade de ajudar e inspiram a determinação de colocá-la em prática. Qualquer que seja o caso, a análise mais segura é sempre obtida por meio da introspecção e da auto-observação.
A primeira etapa dessa análise consiste em identificar o modo como surgem as emoções. Isso requer o cultivo de uma atenção dirigida ao desenrolar das atividades mentais, acompanhada de uma tomada de consciência que permita distinguir entre as emoções destrutivas e aquelas que favorecem o desenvolvimento da felicidade. Essa análise, realizada muitas e muitas vezes, é a preliminar indispensável para a transformação de estado mental perturbado. Para conseguir essa transformação, o budismo prescreve um rigoroso e prolongado treino de introspeção, processo que implica a estabilização da atenção e o aumento da lucidez. Essa disciplina tem afinidade com o conceito de “atenção voluntária e sustentada”, de William James, o fundador da psicologia moderna. Mas enquanto James duvidava da possibilidade de desenvolver e manter essa atenção voluntária por mais do que alguns segundos, os meditadores budistas descobriram que é possível desenvolvê-la consideravelmente. Uma vez que, pela prática, tenhamos acalmado os nossos pensamentos, clarificado e concentrado a nossa mente, estamos aptos para examinar a natureza das nossas emoções e outros estados mentais de maneira muito eficaz.
A curto prazo, certos processos mentais com a avidez, a hostilidade e a inveja podem concorrer para nos ajudar na obtenção daquilo que julgamos ser desejável ou atraente. Falamos das vantagens da raiva e do ciúme para a preservação da espécie humana. A longo prazo, porém, eles são nocivos tanto para o nosso desenvolvimento quanto para o das outras pessoas. Cada episódio de agressividade e ciúme representa um recuo em nossa busca da serenidade e da felicidade.
O único objetivo do budismo ao tratar das emoções é nos liberar das causas fundamentais do sofrimento. Parte-se do princípio de que certos eventos mentais são perturbadores, não importando a intensidade ou o contexto em que surjam. Esse é o caso dos três processos mentais considerados como os “venenos” mentais básicos: o desejo, no sentido de “sede”, ânsia, avidez que atormenta; o ódio, desejo de ferir, de fazer sofrer; e a ilusão, que deforma a nossa percepção da realidade. O budismo geralmente acrescenta a esses três estados mentais o orgulho e a inveja; juntos eles constituem os cinco venenos maiores, aos quais se associam de sessenta estados mentais negativos. Os textos sagrados se referem também a “oitenta e quatro mil emoções negativas”. Elas não são especificadas em detalhe, mas esse número simbólico dá uma ideia da complexidade da mente humana e nos convida a compreender que os métodos para transformar a mente devem se adaptar à enorme variedade de disposições mentais. É por essa razão que o budismo fala das “oitenta e quatro mil portas” que levam ao caminho da transformação interior.
EXERCÍCIO: Acalmar a mente e olhar para dentro
Sente-se em uma posição confortável. O seu corpo deve permanecer em uma postura ereta, mas não tensa, mantenha os olhos semicerrados. Respire durante cinco minutos, prestando atenção no entrar e sair do ar que acontece por meio da sua respiração. Sinta que os pensamentos caóticos aos poucos vão se aquietando. Quando os pensamentos surgem, não tente nem bloqueá-los nem fazer com que se multipliquem. Simplesmente continue a observar a sua respiração.
Em seguida, em vez de prestar atenção àquilo que vê ou escuta no mundo externo, volte a sua “visão” para dentro e “olhe” para a mente em si. “Olhar”, aqui, significa observar a sua própria consciência ou atenção, não o conteúdo dos seus pensamentos. Deixe a mente suavemente chegar ao repouso, como um viajante cansado que encontra um prado verdejante e aprazível onde pode sentar-se um pouco.
Então, com um profundo sentimento de apreço, pense no valor da existência humana e no seu potencial extraordinário, pronto para desabrochar. Perceba, também, que esta vida precisa não durará para sempre e que é essencial fazer dela o melhor possível. Examine sinceramente aquilo que é mais importante, para você, na vida. O que você precisa atingir, ou o que deve descartar, para conseguir o bem-estar autêntico e viver uma existência plena de significado? Quando os fatores que contribuem para a felicidade verdadeira estiverem claros para você, imagine que eles desabrocham, florescendo na sua mente. Decida-se a alimentá-los dia após dia.
Finalize a sua meditação fazendo com que pensamentos de bondade pura envolvam todos os seres vivos.
EMOÇÕES PERTURBADORAS: OS REMÉDIOS
O desejo, o ódio e as outras paixões são inimigos sem mãos, sem pés; não são nem bravos nem inteligentes; como pude tornar-se escravo deles?
Entrincheirados em meu coração, eles me atingem à vontade, e eu nem mesmo me irrito; que vergonha dessa paciência absurda!
SHANTIDEVA
Para o budismo, dominar a mente consiste, entre outras coisas, em ser capaz de entender as emoções e como elas funcionam, não deixar que as emoções se manifestarem sem discriminação. Uma torrente cujas margens foram estabilizadas pode manifestar seu vigor sem devastar os campos adjacentes. Como neutralizar o poder alienante das emoções conflituosas sem se tornar insensível ao mundo, sem tirar da vida as suas riquezas? Se nos contentarmos em relegar essas emoções ao esquecimento, nas profundezas do inconsciente, elas ressurgirão com força ainda maior na primeira oportunidade, continuando a fortalecer as tendências que perpetuam o conflito interior. O ideal, ao contrário, é permitir que tais emoções se formem e se desfaçam sem deixar nenhum vestígio na mente. Os pensamentos e as emoções continuarão a surgir, mas sem proliferar, vão perdendo assim o seu poder de escravizar-nos.
Poderíamos argumentar que as emoções conflituosas – a raiva, o ciúme, a avidez – são aceitáveis porque são naturais e não há necessidade de interferir nelas. Mas a doença também é um fenômeno natural. Não nos conformamos com ela nem a recebemos como um integrante desejável da vida. É tão legítimo agir contra as emoções perturbadoras quanto tratar de uma doença. Afinal de contas, essas emoções negativas não são doenças? À primeira vista, esse paralelo pode aparecer excessivo, mas um olhar mais atento revela que ele está longe de ser infundado, já que grande parte da confusão interior e do sofrimento nascem de uma série de emoções perturbadoras que enfraquecem o nosso “sistema imunológico mental”, enquanto que o bem-estar duradouro surge do cultivo das emoções positivas e da sabedoria.
A ESPIRAL DAS EMOÇÕES
Não poderíamos deixar as emoções negativas desaparecerem por si mesmas? A experiência mostra que, como uma infecção que não é tratada, essas emoções ganham mais força quando permitimos que elas sigam o seu curso. Deixar explodir a raiva, por exemplo, tende a criar um estado de instabilidade psicológica que só nos torna ainda mais irascíveis. As conclusões de vários estudos psicológicos contradizem a ideia de que dar livre expressão às emoções alivia as tensões acumuladas. Na verdade, do ponto de vista fisiológico acontece exatamente o contrário: quando evitamos que a raiva se expresse, a pressão arterial diminui, e sobe quando temos um acesso de fúria.
Ao expressarmos todas as nossas emoções negativas, desenvolvemos atos que nos dominarão assim que a carga emocional atingir o seu limite crítico. Além disso, teremos cada vez menos controle e explodiremos de raiva com maior facilidade. Isso resultará naquilo que se chama comumente de “má índole”, acompanhada de um sofrimento crônico.
Estudos comportamentais mostraram que as pessoas que conseguem equilibrar melhor as suas emoções (controlando-as sem repressão) são também as que mais manifestam comportamentos altruístas quando deparam com o sofrimento alheio. A maioria das pessoas hiperemotivas está mais preocupada com a sua própria angústia diante dos sofrimentos temidos do que com a maneira pela qual podem remediá-los.
Porém, não se pode concluir a partir de tais constatações que devemos abafar ou reprimir as nossas emoções. Isso redundaria em evitar que elas se manifestassem e ao mesmo tempo nós as deixaríamos intactas, sem transformá-las, como bombas-relógio nos cantos obscuros da nossa mente – o que não passa de uma solução temporária e doentia. Os psicólogos asseveram que uma emoção reprimida pode casar graves problemas mentais e físicos, portanto, é preciso evitar a todo custo que as emoções se voltem contra nós mesmos. Por outro lado, expressá-las de maneira extremada e sem controle também pode dar origem a explosões mortais, cujos exemplos mais comuns são o assassinato, as matanças e as guerras. Podemos morrer de apoplexia em um acesso de cólera, ou consumir-nos em desejos obsessivos. Todos esses casos ocorrem porque fomos incapazes de estabelecer o diálogo correto com as nossas emoções.
É POSSÍVEL LIBERAR-SE DAS EMOÇÕES NEGATIVAS?
Poderíamos pensar que a ignorância e as emoções negativas são inerentes ao fluxo da consciência e que tentar livrar-nos delas é como lutar contra uma parte de nós mesmos. Mas o aspecto mais fundamental da consciência, a pura faculdade de conhecer – aquilo que chamamos de qualidade “luminosa” da mente -, não contém ódio nem desejo. Um espelho reflete tanto a face raivosa quanto a sorridente. A própria qualidade desse espelho permite que apareçam nele incontáveis imagens sem que qualquer delas lhe pertença. Na verdade, se a face raivosa fosse intrínseca ao espelho, poderia ser vista o tempo todo e isso impediria o surgimento de outras imagens. De forma semelhante, a qualidade fundamental da cognição, que é a natureza luminosa da mente, permite o surgimento dos pensamentos. No entanto, nenhum desses pensamentos pertence à natureza fundamental da mente. A experiência da introspecção mostra, ao contrário, que as emoções negativas são estados mentais transitórios que podem ser aniquilados pelas emoções positivas que lhes são opostas, agindo como antídotos.
Portanto, é preciso começar pelo reconhecimento de que as emoções aflitivas são prejudiciais ao nosso bem-estar. Essa avaliação não se baseia somente na distinção dogmática entre o bem e o mal, mas sim na observação das repercussões a curto e a longo prazo de certas emoções, em nós mesmos e nos outros. No entanto, o mero fato de reconhecer os efeitos nefastos das aflições mentais não basta para superá-las. Tendo chegado a essa percepção, é necessário ainda familiarizar-se com cada antídoto – a bondade como antídoto para o ódio, por exemplo – até que a ausência de ódio se torne uma segunda natureza.
A palavra tibetana gom, em geral traduzida por “meditação”, significa “familiarização”, e a palavra sânscrita bhavana, também traduzida por “meditação”, significa “cultivo”. Com efeito, meditar não é sentar-se à sombra de uma árvore e relaxar para usufruir de um momento de pausa na maçante rotina diária, mas familiarizar-se com uma nova visão das coisas, um novo modo de gerir os seus pensamentos, de perceber as pessoas e experienciar o mundo dos fenômenos.
O budismo ensina vários métodos para conseguir essa “familiarização”. Os três principais são os antídotos, a liberação e a utilização. O primeiro consiste em aplicar um antídoto específico para cada emoção negativa. O segundo nos permite desembaraçar ou “liberar” a emoção quando, ao olhar diretamente para ela, conseguimos dissolvê-la assim que surge. O terceiro método consiste em usar a força natural de cada emoção como um catalisador para a transformação interior. A escolha de um método ou de outro depende do momento, das circunstâncias e das capacidades da pessoa que o utiliza. Todos eles têm em comum um ponto essencial e a mesma meta: ajudar-nos a deixar de ser vítimas das emoções conflitivas.
O USO DE ANTÍDOTOS
O primeiro método, como já dissemos, consiste em neutralizar as emoções aflitivas com a ajuda de um antídoto específico, da mesma maneira como neutralizamos os efeitos destrutivos de um veneno com um soro, ou de um ácido com uma base. Um dos pontos fundamentais enfatizados pelo budismo é que os dois processos mentais opostos não podem surgir ao mesmo tempo. Podemos oscilar rapidamente entre o amor e o ódio, mas não podemos sentir no mesmo instante de consciência o desejo de fazer o mal e o bem a alguém. Esses dois impulsos são tão opostos entre si quanto a água e o fogo. Como escreveu o filósofo Alain: “Um movimento exclui o outro; quando você estende uma mão amiga, exclui o punho fechado.”
Da mesma maneira, treinando a mente para o amor altruísta, pouco a pouco eliminamos o ódio, porque esses dois estados mentais podem alternar-se, mas não coexistir no mesmo instante. Assim, quanto mais cultivamos a bondade, menos espaço há para o ódio na nossa paisagem mental. É importante começar pelo aprendizado de quais são os antídotos que correspondem a cada emoção negativa e depois cultivá-los. Esses antídotos são para o psiquismo o que os anticorpos são para o organismo.
Dado que o amor altruísta age como um antídoto direto contra o ódio, quanto mais o desenvolvemos mais diminuirá em nós o desejo de fazer mal a alguém, até o ponto de desaparecer. Não é uma questão de reprimir o ódio, mas de voltar a mente para algo oposto: o amor e a compaixão. Seguindo uma prática budista tradicional, inicie reconhecendo a sua própria aspiração à felicidade. Em seguida, estenda esse sentimento àqueles que você ama e depois a todas as pessoas (amigos, inimigos e desconhecidos). Pouco a pouco, o altruísmo e a bondade impregnarão sua mente até se tornarem uma segunda natureza. Desse modo, treinar o pensamento altruísta é uma proteção duradoura contra a animosidade e agressão crônicas e favorece uma prontidão genuína para agir em benefício dos outros.
É também impossível a coexistência da cobiça, ou o desejo apaixonado, e do desapego – que permite experimentar a paz interior e a serenidade. O desejo só pode se desenvolver quando permitimos que ele reine sem limites, a ponto de monopolizar a mente. A armadilha, neste caso, é que o desejo e o prazer, seu aliado, estão longe de ter o aspecto horrível da raiva. São até muito sedutores. Mas os fios sedosos e insinuantes do desejo, que no início parecem tão leves, logo se tensionam, e as roupas suaves que o urdiram tornam-se uma camisa-de-força. Quanto mais lutamos, mas apertada ela fica.
Nos piores casos, o desejo pode nos levar a buscar a satisfação a qualquer custo; quanto mais ela parece estar longe de nós, mais fazemos dela uma obsessão. Por outro lado, quando contemplamos os seus aspectos perturbadores e voltamos a mente para o desenvolvimento da calma interior, a obsessão ligada ao desejo se dissolve como os flocos de neve expostos ao sol. Não nos enganemos: não se trata, aqui, de deixarmos de amar aqueles com quem compartilhamos a nossa vida ou de nos tornarmos indiferentes a eles, mas de nos prendermos às pessoas e às situações como uma atitude possessiva, misturada com um profundo sentimento de insegurança. Se pararmos de projetar todas as insaciáveis exigências dos nossos apegos sobre as pessoas, poderemos amá-las mais e sentir um genuíno interesse e preocupação pelo seu verdadeiro bem-estar.
Quanto à raiva, ela pode ser neutralizada pela paciência. Isso não requer que fiquemos passivos, mas que tomemos a decisão de nos afastar do domínio das emoções destrutivas. Como explica Dalai Lama: “A paciência protege a nossa paz de espírito diante da adversidade. […] É uma pessoa deliberada [o contrário de uma reação impensada] às fortes emoções e aos pensamentos negativos que tendem a surgir quando encontramos algo que nos faz mal”
Para dar outro exemplo, a inveja e o ciúme provêm da incapacidade fundamental de se alegrar, de ficar feliz com o sucesso de outrem. Exacerbado, o ciúme se torna violento e destrutivo. Como fazer quando caímos vítimas dessas imagens torturantes? O ciumento, o invejoso, abandonando-se a um automatismo mórbido, se regozija mentalmente com cenas que “colocam o dedo na ferida”. Toda possibilidade de felicidade fica, então, excluída. Se restar um mínimo de lucidez para reconhecer essa tendência, é necessário fazer a escolha corajosa do antídoto certo e deixar de lado por algum tempo essas imagens, sem reforçá-las. É útil, portanto, gerar empatia e amor altruísta, e com a ajuda do tempo, o ciúme e a inveja nos parecerão apenas um sonho ruim.
Poderíamos objetar: “Isso seria perfeito em um mundo ideal, mas os sentimentos humanos não são por natureza ambivalentes? Podemos amar e sentir ciúme ao mesmo tempo. A complexidade e a riqueza dos nossos sentimentos são tais que podemos sentir emoções contraditórias no mesmo momento.” Mas as emoções em questão são incompatíveis de verdade, como o calor e o frio? Podemos sentir amor profundo por um companheiro ou uma companheira e ao mesmo tempo desprezá-los porque estão nos traindo. Mas isso é realmente amor? No sentido em que o definimos, o amor é a vontade de que a pessoa que amamos seja feliz e compreenda as causas dessa felicidade. Amor verdadeiro e ódio não podem coexistir, porque aquele almeja a felicidade do outro, e este, a sua infelicidade. O apego, o desejo e a possessividade costumam acompanhar o amor, mas não são o amor. Podem coexistir com o ódio porque não são o seu oposto. Há estados mentais que são definitiva e completamente incompatíveis: o orgulho e a humildade, a inveja e a alegria, a generosidade e a avareza, a calma e a agitação. Nenhuma ambivalência é possível entre esses pares. Por meio da introspecção, seremos capazes de distinguir as emoções que aumentam a nossa alegria de viver das que a diminuem.
LIBERAR AS EMOÇÕES
O segundo método é a liberação. Ele consiste em perguntar se, em vez de tentar combater cada emoção aflitiva com seu antídoto específico, não podemos usar um antídoto único que venha a agir em um nível mais fundamental sobre todas as nossas aflições mentais. Não é nem possível nem desejável reprimir a atividade natural da mente, e seria vão e doentio tentar bloquear os pensamentos; por outro lado, ao examinarmos as emoções, percebemos que elas são fluxos dinâmicos desprovidos de qualquer substância intrínseca – o que o budismo chama de “vacuidade” de existência real dos pensamentos. O que aconteceria se, em vez de contra-atacar uma emoção perturbadora com o seu oposto – a raiva com a paciência, por exemplo – nós contemplássemos ou examinássemos a natureza da própria emoção em si?
Imagine que você está sendo dominado por um sentimento de raiva muito forte. Parece não haver saída senão deixar-se levar por ela. Mas vamos observá-la com atenção: ela não é nada mais do que um pensamento. Quando você vê uma grande nuvem escura, em um céu carregado e tempestuoso, essa nuvem parece ser tão sólida que quase podemos pensar em nos sentar nela. Mas se estivermos voando perto dessa nuvem, veremos que não se pode pegá-la; ela não é nada senão vapor e vento. Examinemos mais de perto a raiva. A experiência da raiva é como uma febre alta. É uma condição temporária, e você não precisa se identificar com ela. Quanto mais você olhar para a raiva desta maneira, mais ela se evaporará diante dos seus olhos, como gelo sob os raios do sol.
De onde vem a raiva? Como ela se desenvolve? Pra onde ela vai quando desaparece? O que podemos dizer com certeza é que ela nasce na mente, permanece na mente o tempo que durar e, por fim, é também na mente que ela se dissipa. Como as ondas que surgem e se dissolvem no oceano. Ao examinarmos a raiva, não encontramos nada que seja consistente ou substancial, nada que possa explicar a tirânica influência que ela exerce sobre nós. É necessário fazer essa indagação para não ficarmos fixados no objeto da raiva e dominados pela emoção destrutiva. Por outro lado, se percebermos que a raiva não tem qualquer substância em si mesma, ela irá perder toda a sua força. Eis o que diz a esse respeito Khyentse Rimpoche:
Lembre-se que um pensamento é apenas o produto da conjunção fugaz de numerosos fatores e circunstâncias. Ele não existe por si mesmo. Quando um pensamento surge, reconheça que ele é, por natureza, vazio. Ele imediatamente perceberá o poder de suscitar o pensamento seguinte e a cadeia de ilusão chegará ao fim. Reconheça essa vacuidade dos pensamentos e deixe que eles repousem por um instante na mente relaxada, de maneira que a claridade natural dessa ente permaneça límpida e inalterada.
É a isso que o budismo dá o nome de liberação da raiva no momento em que ela surge. Conseguimos isso pelo reconhecimento da sua vacuidade, da sua falta de existência própria. Essa liberação se produz espontaneamente, como a imagem de um esboço desenhado na superfície da água que mencionei antes. Ao proceder assim, não reprimimos a raiva, mas neutralizamos o seu poder de transformar-se na causa de sofrimento.
Quase sempre, só chegamos a fazer essa análise e compreender tudo isso depois que a crise passou. Aqui, é necessário que reconheçamos a natureza vazia da raiva do bem no momento em que ela emerge. Graças a essa compreensão, os pensamentos não têm mais a oportunidade de se encadear, formando um fluxo obsessivo e opressivo. Eles atravessam a mente sem deixar vestígio, como o vôo de um pássaro que não deixa rastros no céu.
Esta prática consiste, portanto, em concentrar a sua atenção na própria raiva, em vez de fixá-la sobre o seu objeto. Em geral não conseguimos considerar nada além desse objeto, atribuindo-lhe um caráter intrinsecamente detestável e encontrado nele uma justificativa para a raiva. Mas se observamos a cólera em si, ela acaba por se dissolver sob o olhar interior. Pode ressurgir, é verdade, mas à medida que nos habituamos a esse processo de liberação, a emoção fica cada vez mais transparente e, com o tempo, a irascibilidade acaba por desaparecer.
Esse método pode ser usado para todas as aflições mentais; ele nos ajuda a construir uma ponte entre o exercício da meditação e as nossas ocupações cotidianas. Uma vez acostumados a olhar para os pensamentos no momento em que surgem e a permitir que eles se dissipem antes de dominarem a mente, tornar-se-á muito mais fácil permanecer no controle da situação e gerir as emoções conflituosas no seio da nossa vida ativa. Para estimular a nossa vigilância e o nosso esforço, devemos tentar lembrar-nos do amargo sofrimento que as emoções destrutivas nos infligem.
USAR AS EMOÇÕES COMO CATALISADORES
O terceiro método para neutralizar as emoções aflitivas é o mais sutil e o mais delicado. Quando olhamos de perto para as nossas emoções, descobrimos que, tal como as notas musicais, elas são compostas de numerosos elementos, ou harmônicos. A raiva nos incita à ação e permite que superemos alguns obstáculos. Ela apresenta também outros aspectos como clareza, foco, vivacidade e eficácia que não são, em si mesmos, maléficos. O desejo possui um elemento de bem-aventurança e felicidade que é distinto do apego; o orgulho dá confiança em si mesmo, firmeza, decisão e elimina a hesitação, sendo um excelente sentimento quando não vira arrogância; a inveja incita determinação para agir, o que não pode ser confundido com a insatisfação doentia que está vinculada a ela.
Por mais difícil que seja separar esses vários aspectos, é possível reconhecer e usar as facetas positivas de um pensamento considerado negativo. Com efeito, o que é nocivo na emoção é o eu fictício por meio do qual nos identificamos com ela. Nos agarramos à emoção vendo-a como algo real. Inicia-se, então, por causa desse eu fictício, uma reação em cadeira durante a qual a centelha inicial, que é a claridade e o foco, transforma-se em raiva e hostilidade. A habilidade que nos vem da experiência meditativa nos ajuda a intervir antes que essa reação se inicie.
As emoções não são inerentemente perturbadoras, apesar de parecerem assim a partir do momento em que nos apegamos e identificamos com elas. A pura consciência, que é a fonte de todos os eventos mentais, não é boa nem ruim em si mesma. Os pensamentos tornam-se perturbadores somente quando o processo de “fixação” é posto em andamento, quando nos apegamos às qualidades que atribuímos ao objeto da emoção e ao eu que está sentindo.
Tendo aprendido a evitar essa fixação, não é necessário colocar em cena antídotos externos; as próprias emoções agem como catalisadores para nos liberar da sua influência nociva. Isso acontece porque o nosso ponto de vista mudou. Quando caímos no mar, é a própria água que nos faz boiar, que nos sustenta e permite que nademos até a costa. Mas é necessário sabermos nadar – ou seja, termos habilidade necessária para explorar as emoções, beneficiando-nos de seus aspectos positivos, sem nos deixar afogar em seus aspectos negativos.
Esse tipo de prática requer grande domínio da linguagem das emoções. Permitir que emoções poderosas se expressem sem se tornar presa delas é brincar com fogo, ou antes, tentar apanhar uma jóia que está na cabeça de uma serpente. Se formos bem-sucedidos, a nossa compreensão da natureza da mente aumentará; se falharmos, seremos dominados pelas qualidades negativas da raiva e o seu poder sobre nós ficará ainda mais forte.
TRÊS TÉCNICAS, UM OBJETIVO
Vimos como podemos contra-atacar cada emoção negativa como o seu antídoto específico; depois, como o reconhecimento da natureza vazia dos pensamentos pode neutralizar qualquer emoção aflitiva; e ainda como é possível utilizar a emoção negativa de modo positivo.
As contradições, aqui, são apenas aparentes. Esses métodos são maneiras diferentes de abordar o mesmo problema e de chegar ao mesmo resultado: não nos tornarmos vítimas das emoções aflitivas e do sofrimento a que elas em geral nos conduzem. Da mesma maneira, é fácil imaginar várias formas de evitar o envenenamento por uma planta tóxica. Podemos usar antídotos específicos para neutralizar os efeitos de cada veneno. Podemos identificar, no nosso sistema imunológico, a origem da nossa vulnerabilidade a esses venenos e, então, com apenas um procedimento, fortalecer esse sistema para adquirir resistência universal a todos eles. Podemos, por último, analisar os venenos, isolar as diversas substâncias que os compõem e descobrir que alguns, aplicados na dosagem apropriada, têm qualidades medicinais.
O mais importante é que em todos os casos atingimos a mesma meta: não sermos mais escravos das emoções negativas e progredir quanto à liberação do sofrimento. Cada uma dessas técnicas é como uma chave; pouca diferença faz se ela é feita de ferro, de prata ou de ouro, contanto que abra a porta para a liberdade.
É preciso não esquecer, no entanto, que a fonte das emoções perturbadoras é o apego ao ego. Para ficarmos livres do sofrimento interior, de uma vez por todas, não basta liberarmos das emoções em si; é necessário erradicar o apego ao ego. Isso é possível? Sim, porque, como vimos, o ego existe como mera ilusão. Um conceito ou uma ideia falsa podem ser dissolvidos pela sabedoria que reconhece que o ego é desprovido de existência intrínseca.
AS EMOÇÕES NO TEMPO
Às vezes as emoções podem ser tão poderosas que não deixam nenhum espaço para a reflexão, e é impossível lidar com elas no momento em que eclodem. Paul Ekman fala de um período “refratário”, durante o qual só registramos aquilo que justifica a nossa raiva ou qualquer outra emoção forte7. Ficamos impermeáveis a qualquer coisa que poderia nos ajudar a compreender que o objeto da nossa raiva não é tão odioso quanto pensamos.
Eis como Alain descreve este processo: “As paixões nos colocam numa armadilha. Um homem tomado pela raiva representa, dentro de si, uma tragédia dramática e intensamente iluminada, onde se expõem todas as faltas do seu inimigo, seus estratagemas, suas preparações, seu desprezo, seus planos para o futuro. Tudo é interpretado conforme a lente da raiva, que fica, assim, fortalecida” . Em tais casos não há outra escolha senão trabalhar com essas emoções depois de elas terem se aquietado. Só depois que as ondas da paixão cessam é que chegamos a ver como a nossa visão das coisas estava distorcida. É somente nesse momento que nos surpreendemos, vendo como as nossas emoções nos manipularam e levaram ao erro. Pensávamos que a nossa raiva era justificada mas, para ser legítima, devia ter feito mais bem do que mal, o que raramente é o caso. A “raiva positiva”, ou antes, indignação, pode quebrar o status quo de uma situação inaceitável ou fazer alguém compreender que está agindo de um modo que fere outra pessoa; mas essa raiva, inspirada no altruísmo, é rara. O que quase sempre acontece é que a nossa raiva machuca alguém e nos deixa depois em um castelo de profunda insatisfação. Nunca devemos subestimar o poder da mente de criar e cristalizar mundos de ódio, ganância, ciúme, euforia ou desespero.
Tendo obtido alguma experiência, podemos lidar com as emoções negativas antes que elas cheguem à superfície. É possível antever o seu surgimento e aprender a distinguir as que trazem sofrimento das que contribuem para a felicidade. As técnicas que descrevemos podem nos ajudar a administrar melhor as nossas emoções, que pouco a pouco deixarão de nos ter sob seu domínio. Para prevenir os incêndios florestais no tempo da seca, o guarda-florestal abre aceiros, faz provisões de água e permanece alerta. Ele sabe muito bem que é mais fácil extinguir uma centelha de fogo do que um gigantesco braseiro.
Em um terceiro momento, com conhecimento cada vez maior sobre a mente conseguiremos lidar com as nossas emoções com maestria, no mesmo instante em que surgem e enquanto se expressam. É assim, como vimos, que as emoções que nos afligem são “liberadas” no momento em que emergem. Elas já não poderão mais semear confusão na mente ou converterem-se em palavras e atos que geram sofrimentos. Esse método exige perseverança, porque não estamos acostumados a tratar os pensamentos dessa maneira.
Contrariamente ao que poderíamos pensar, o estado de liberdade interior em relação às emoções não leva nem à apatia nem à indiferença. A vida não perde as suas cores. O que ocorre é que, em vez de sermos um joguete dos nossos pensamentos, nossas disposições e nossos humores aflitivos, nos tornamos os seus mestres. Não como um tirano que exerce um controle incansável e obsessivo sobre os seus súditos, mas como um ser humano que é livre e senhor do seu próprio destino.
Nesse ponto, os estados mentais conflituosos dão lugar a um rico leque de emoções positivas, que interagem com os outros seres, tendo como base uma apreensão fluida da realidade. A sabedoria e a compaixão tornam-se a influência predominante, guiando os nossos pensamentos, palavras e atos.
EXERCÍCIO Liberação direta das emoções
Traga à sua mente uma situação em que você sentiu muita raiva e tente reviver essa experiência. Quando a raiva surgir, focalize sua atenção nela mesma, em vez de olhar para o objeto da raiva. Não se deixe assimilar por essa raiva, mas olhe para ela como se fosse um fenômeno separado. Ao manter-se apenas nessa observação da raiva em si mesma, veja que ela pouco a pouco se dissolve sob os seus olhos.
Mas pode ser que ela continue surgindo em sua mente, e você se sinta incapaz de pacificá-la. Ela segue assim tão vívida e forte porque a sua mente, indefesa, fica sendo levada como objeto do seu ressentimento. Esse objeto se torna uma espécie de alvo e, cada vez que você volta a ele, uma centelha mental é disparada e a emoção se acende novamente. Você sente que é como se ela invadisse a sua mente, como se você tivesse sido capturado em um círculo vicioso. Em vez de prestar atenção no “alvo”, volte sua atenção para a emoção em si mesma. Você verá que a raiva não conseguirá se sustentar, e logo ficará sem força alguma.
Use a experiência que você adquiriu nas sessões de meditação e tente aplicar esse processo de liberação na sua vida diária. Depois de algum tempo, a sua raiva ficará cada vez mais transparente, e a sua irritabilidade desaparecerá.
Pratique do mesmo modo com o desejo obsessivo, a inveja e outras emoções dolorosas.
UM TRABALHO A LONGO PRAZO
A maior parte das pesquisas atuais da área da psicologia que têm como objeto de estudo o controle das emoções concentra-se em como dirigir e modular as emoções depois de que elas já invadiram a nossa mente. O que está faltando, ao que parece, é o reconhecimento de que uma atenção mais desenvolvida e uma clareza mental – a “presença mental” do budismo – podem desempenhar papel central nesse processo de controle. Reconhecer a emoção no exato momento em que ela surge, compreender que ela não é nada mais do que um pensamento – desprovido de existência intrínseca -, permitir que ela se dissipe de maneira a evitar a reação em cadeira a que via de regra daria origem são atitudes que estão no cerne da prática contemplativa budista.
Em obra recente, Paul Ekman, que participa há muitos anos dos encontros entre o Dalai Lama e importantes cientistas promovidos pelo Mind and Life Institute, enfatiza a utilidade de se considerar com atenção as sensações emocionais, como na vigilância e na presença desperta do budismo. Ele considera que essa é uma das maneiras mais práticas de administrar as emoções, ou seja, decidir se queremos ou não expressá-las em palavras e em atos.
Sabemos que a maestria em qualquer disciplina, música, medicina, matemática etc., requer treinamento intensivo. No entanto, parece que no Ocidente – com exceção da psicanálise, cujos resultados são, na melhor das hipóteses, incertos, e o processo, doloroso – não é comum que sejam empreendidos esses esforços persistentes que visam, a longo prazo, transformar os estados emocionais e o temperamento. A própria meta da psicanálise é diferente da estabelecida pela psicologia positiva ou pelo budismo, que buscam não apenas “normalizar” o nosso modo neurótico de funcionar no mundo. A condição considerada como “normal” é, nos dois casos, apenas o ponto de partida, não o objetivo. A nossa vida vale muito mais do que isso! Disse-me certa vez Martin Seligman: “O melhor que ela [a psicanálise] pode fazer é nos levar de menos dez para zero”.
Assim, a maior parte dos métodos conhecidos pela psicologia ocidental para modificar de maneira duradoura os estados efetivos diz respeito sobretudo ao tratamento de estados patológicos. Diz um artigo recente escrito por psicólogos ocidentais e budistas:
Com poucas e notáveis exceções – entre as quais o desenvolvimento da “psicologia positiva” – nenhum esforço tem sido realizado no sentido de cultivar atributos positivos da mente em indivíduos que não estejam sofrendo de problemas mentais. É importante sublinhar o fato de que o treinamento para se obter a excelência em qualquer domínio requer uma dose considerável de prática. As abordagens ocidentais não incluem esse esforço persistente e a longo prazo para se fazer mudanças duradouras nos estados ou traços emocionais. Nem mesmo a psicanálise chega a requerer um trabalho de décadas, como o que os budistas consideram necessário para cultivas sukha.
Esse esforço, no entanto, é muito desejável. Precisamos nos livrar das toxinas mentais e, ao mesmo tempo, cultivar os estados da mente que contribuem para o equilíbrio emocional e asseguram o bom desenvolvimento de uma mente saudável. Grande parte das emoções conflituosas são problemas mentais. Uma pessoa possuída por um ódio feroz ou uma inveja obsessiva não pode, em sã consciência, ser considerada alguém que tem uma mente sadia, mesmo que não seja candidata aos tratamentos psiquiátricos. Como essas emoções estão integradas à nossa vida cotidiana, a importância e a urgência de lidar com elas parecem não estar tão claras quanto deveriam. Como resultado, a ideia de treinar a mente não figura entre as preocupações que pressionam o homem moderno, como o trabalho, as atividades culturais, os exercícios físicos e o lazer.
O ensino dos valores humanos é em geral considerado uma incumbência da religião ou da família. A espiritualidade e a vida contemplativa são reduzidas, assim, a meros complementos vitamínicos da alma. Os conhecimentos filosóficos que adquirimos são quase sempre distantes da nossa prática, e cabe ao indivíduo escolher suas próprias regras da vida. Mas em nossa época, a pseudoliberdade de fazer tudo o que passa pela cabeça e a falta de referências deixam o indivíduo infeliz desamparado. As considerações abstratas em geral incompreensíveis da filosofia contemporânea, somadas ao ritmo febril da vida cotidiana e à supremacia da diversão e do entretenimento, deixam pouco lugar para a busca de uma fonte de inspiração autêntica quanto à direção que podemos dar à nossa vida. O Dalai Lama enfatiza: “Gostaríamos que a espiritualidade fosse fácil, rápida e barata.” Ou seja, inexistente. É o que Chögyam Trungpa denominou de “materialismo espiritual”. Pierre Hador, especialista em filosofia antiga, sublinha que “a filosofia não é senão um exercício preparatório para a sabedoria” e que uma verdadeira escola filosófica corresponde antes de tudo a determinada escolha de vida.
É necessário reconhecer que oferecemos uma resistência fenomenal à mudança. Não falamos apenas da alegria e do vigor com que a nossa sociedade adota como tendência as novidades superficiais, mas de uma inércia profunda no que tange a qualquer transformação genuína do nosso modo de ser. A maior parte do tempo não queremos nem ouvir falar da possibilidade de mudar e preferirmos tratar com escárnio aqueles que buscam soluções alternativas. Ninguém quer ser raivoso, ciumento ou orgulhoso, mas cada vez que cedemos a essas emoções, usamos a desculpa de que isso é normal, que faz parte dos atos e baixos da vida.
Então, por que mudar? Seja você mesmo” Divirta-se bastante, compre um carro novo, mude de ares, consiga uma nova amante, tenha tudo, farte-se de tudo o que é estúpido e supérfluo, mas acima de tudo, jamais toque no essencial, porque isso exige um trabalho duro, um esforço verdadeiro. Uma atitude como essa seria justificada se estivéssemos satisfeitos com o nosso destino. Mas estamos mesmo? Citando Alain mais uma vez: “Os insanos são mestres no proselitismo e, principalmente relutam em curar-se”.
Como o ego é recalcitrante e revolta-se cada vez que a sua hegemonia é ameaçada, preferimos proteger esse parasita que nos é tão caro e nos perguntamos o que seria da nossa vida sem ele – não ousamos nem pensar! Eis uma lógica do tormento bastante curiosa.
E, no entanto, uma vez que iniciamos o nosso trabalho de introspecção, descobrimos que a transformação não é nem de longe tão dolorosa quanto havíamos imaginado. Ao contrário, tão logo decidimos empreender metamorfose interior, mesmo que tenhamos que passar por algumas dificuldades, percebemos nesse trabalho uma alegria que faz de cada passo uma nova satisfação. Temos o sentimento de adquirir uma liberdade e uma força interior cada vez maiores, que se traduzem em uma diminuição das nossas angústias, dos nossos medos e das nossas ansiedades. O sentimento de insegurança dá lugar a uma confiança repleta de alegria de viver, e o egoísmo crônico, a um altruísmo amistoso.
Um dos meus professores, o falecido Sandrak Rimpoche, viveu mais de trinta anos na fronteira montanhosa entre o Nepal e o Tibete. Ele me contou que, quando iniciou seus retiros, ainda adolescente, passou por anos muito difíceis. As suas emoções eram tão poderosas, principalmente os desejos, que ele chegou a pensar que ficaria louco (quando me falou sobre isso, tinha um grande sorriso na face). Mas depois, pouco a pouco, foi se familiarizando com as várias maneiras de tratar as emoções e conseguiu uma perfeita liberdade interior. Desde então, cada momento da vida foi, para ele, uma experiência de pura alegria. E isso era visível! Ele foi uma das pessoas mais simples, alegres, serenas e reconfortantes que conheci. Eu tinha a impressão de que nada poderia afetá-lo; era como se as dificuldades exteriores passassem por ele como gotas d’água deslizando sobre uma pétala de rosa. Quando falava, seus olhos ficavam brilhando de alegria, deliciados, e ele parecia tão leve, tão vivaz que eu pensava que ele iria sair voando como um passarinho.