A FELICIDADE É POSSÍVEL?
Trecho do Livro ”Felicidade – A pratica do Bem Estar”
A liberdade exterior que conseguiremos depende exatamente do grau de liberdade interior que possamos ter desenvolvido num dado momento.
E, se essa é uma visão correta da liberdade, nossa principal energia deve ser concentrada em obter a reforma interior.
MAHATMA GANDHI
Certamente já encontramos em algum momento da vida pessoas que vivem felizes e exalam felicidade. Esse estado parece permear todos os seus gestos e palavras com uma qualidade e força que são impossíveis de ignorar. Alguns afirmam, sem conflito ou ostentação, ter conseguido atingir uma felicidade que reside dentro deles e independe do que a vida lhes proporciona. Para pessoas assim, de acordo com Robert Misrahi, “a felicidade é uma forma e o significado total de uma vida que se considera plena e cheia de sentido, e que se experiência como tal”.
Mesmo sendo raro encontrar estados de constante realização como esse, pesquisas mostram que, se as condições de vida forem especialmente opressivas, a maior parte das pessoas se diz satisfeita com a qualidade de vida que tem (nos países desenvolvidos, esse índice é de 75%).
Seria contraproducente rejeitar essas pesquisas que refletem a opinião de centenas de milhares de pessoas entrevistadas ao longo de dezenas de anos. No entanto, faz todo o sentido questionar a natureza dessa felicidade a que se referem os participantes desses estudos. O fato é que a satisfação média que eles afirmam ter se mantém estável porque nos países desenvolvidos as condições materiais de vida são, em geral, excelentes. Por outro lado, essa felicidade é muito frágil. Se apenas uma dessas condições deixar de estar presente, por exemplo, devido à perda de uma pessoa querida ou do emprego, o sentimento de felicidade poderá desaparecer. Além disso, declarar-se satisfeito porque não há razão para reclamar das condições de vida (entre todos os países pesquisados, a Suíça tem o povo mais “feliz”) de modo algum impede que, bem lá no fundo, tenhamos um sentimento de desconforto. Aos trinta e cinco anos, 15% dos norte-americanos já passaram por pelo menos uma depressão profunda. Desde 1960, o índice de divórcio nos Estados Unidos dobrou, enquanto o número de estupros relatados às autoridades multiplicou por quatro, e o da violência juvenil, por cinco.
Essa distinção entre bem-estar exterior e interior explica a aparente contradição entre algumas dessas descobertas e a afirmação budista de que o sofrimento é onipresente no universo. Quando falamos de onipresente, isso não quer dizer que as pessoas estejam continuamente em estado de sofrimento, mas que são vulneráveis a um sofrimento latente que pode aparecer a qualquer momento. E elas continuarão sendo vulneráveis enquanto não forem capazes de dissolver os venenos mentais que causam a infelicidade.
A FELICIDADE É APENAS UMA FORMA DE ADIAR O SOFRIMENTO?
Inúmeras pessoas pensam que a felicidade é meramente uma calmaria passageira, vivida positivamente como o contrário do sofrimento. Para Schopenhauer “toda felicidade é negativa. […] Em última análise, a satisfação e o contentamento não são mais do que a cessação de uma dor ou de uma privação” 3. Quanto a Freud, ele escreve que “aquilo que chamamos de felicidade, no sentido mundano mais estrito, resulta da satisfação mais ou menos inesperada das necessidades reprimidas. Por sua própria natureza, ela não pode ser mais do que um fenômeno episódico”. Quando o sofrimento diminui ou cessa por algum tempo, o período seguinte é experienciado, por contraste, como “feliz”. Desse modo, a felicidade é vista apenas como um momento de calmaria ilusória em meio a uma tormenta.
Um amigo, que passou muitos anos preso em um campo de concentração chinês no Tibete, contou-me que, durante o seu interrogatório, forçaram-no a ficar em pé imóvel sobre um banquinho por dias inteiros a fio. Quando ele desmaiava, os breves momentos em que ficava deitado no cimento gelado de sua cela antes de ser levantado à força proporcionavam-lhe um alívio delicioso. Ainda que este seja um exemplo extremo de como a felicidade pode surgir da atenuação do sofrimento, meu amigo esforçou-se para convencer-me de que havia sobrevivido a tantos anos de encarceramento e tortura devido à sua condição estável de bem-estar interior.
Em uma situação muito menos sombria, lembro-me de uma viagem de trem que fiz pela Índia em condições muito difíceis. Eu tinha reservado meu assento – como se deve fazer em se tratando de uma viagem de trinta e seis horas – mas o vagão em que eu viajaria foi substituído. Acabei, então, por ficar em outro vagão, superlotado, sem divisões ou compartimentos e com as janelas desprovidas de vidros. Sentado na beira de um banco de madeira, juntamente com meia dúzia de viajantes congelados (era inverno!), observei que centenas de pessoas se amontoavam em seus assentos e no chão do corredor. Como se isso não bastasse, eu estava com febre alto e reumatismo lombar.
Atravessávamos a região de Bihar, repleta de bandidos, por isso os passageiros haviam amarrado a bagagem onde podiam. Eu estava acostumado a viajar pela Índia e guardei a minha pasta, com um laptop contendo todo o trabalho de um mês, num canto aparentemente seguro do leito superior. Mesmo assim, um criativo ladrão do leito vizinho deu-lhe o sumiço, talvez por meio de um gancho. Ao cair da noite, percebi o que acontecera. As luzes do trem, então, deixaram de funcionar por várias horas.
Ali estava eu, no escuro, embrulhado em meu saco de dormir, ouvindo o praguejar dos passageiros que tentavam manter algum controle sobre a sua bagagem. De repente, percebi que, longe de estar contrariado, eu me sentia leve, num estado de felicidade e liberdade totais. Você pode estar imaginando que a febre talvez tenha me feito delirar, mas eu estava totalmente lúcido, e o contraste entre a situação e os meus sentimentos era tão cômico que comecei a rir ali mesmo, no escuro.
Esse não era um caso de felicidade por atenuação, mas uma vivência da serenidade inata colocada em foco por circunstâncias exteriores particularmente desagradáveis. Era um momento de desprendimento, um estado de profunda satisfação encontrado somente dentro de nós mesmos e que, portanto independe das circunstâncias externas. Não podemos negar a existência de sensações agradáveis e desagradáveis, mas elas têm pouca importância aos olhos da felicidade genuína. Essas experiências ajudaram-me a compreender que é possível viver num estado de felicidade duradoura.
Chegando a essa conclusão, a nossa meta agora se transforma: trata-se de determinar de forma sensata e criteriosa as causas da infelicidade e corrigi-las. Como a verdadeira felicidade não é limitada ao alívio momentâneo dos altos e baixos da vida, ela requer que eliminemos as principais causas da infelicidade, que, como vimos, são ignorância e os venenos mentais. Se a felicidade é um modo de ser, um estado de consciência e de liberdade interior, não há nada que possa nos impedir de atingi-la.
Muitas vezes negamos a possibilidade de sermos felizes por acreditarmos que o mundo e a humanidade são fundamentalmente maus. Essa crença deriva em grande medida da noção do pecado original, que Freud, conforme o psicólogo Martin Seligman, “trouxe […] para a psicologia do século XX, ao definir a totalidade da civilização [incluindo aqui os seus elementos fundamentais, como a moralidade, a ciência, a religião e o progresso tecnológico moderno] como apenas uma defesa elaborada para enfrentar os conflitos básicos do indivíduo, tensões que tem origem na sexualidade infantil e na agressividade. Nós reprimimos esses conflitos porque eles provocam uma ansiedade insuportável, e essa ansiedade é transmutada em uma energia que gera a civilização”. Esse tipo de interpretação levou muitos intelectuais contemporâneos a concluir, de modo absurdo, que qualquer ato de bondade ou de generosidade pode ser atribuído a um impulso negativo. Seligman cita Doris Kearns Goodwin, a biográfa de Franklin e Eleanor Roosvelt, que afirma que a primeira dama devotou grande parte da sua vida a ajudar pessoas negras, pobres e doentes como um mecanismo de compensação diante do narcisismo de sua mãe e do alcoolismo de seu pai. Goodwin, diz Seligman, nunca chegou a considerar a possibilidade de que Elanor Roosevelt tivesse agido com bondade! Para Seligman e seus colegas do campo da psicologia positiva, “não há a menor evidência de que a força e a virtude derivem de motivações negativas.”
Sabemos também que o constante bombardeamento que sofremos com as más notícias transmitidas pela mídia, em que a violência é apresentada como a solução máxima para qualquer conflito, estimula aquilo que os sociólogos chamam de “síndrome do mundo cruel” (wicked world syndrome). Para dar um exemplo simples, posso mencionar um fato ocorrido na exposição Visa Pour L’lmage de 1999, um festival internacional de fotojornalismo realizado em Perpignan, na França, do qual participei como expositor. Das trinta e seis mostras de fotografia desse festival, somente duas dedicavam-se a temas que davam uma ideia construtiva da natureza humana. As trinta e quatro restantes eram sobre a guerra (os organizadores receberam propostas de mais de cem fotógrafos tratando de Kosovo), os crimes da máfia em Palermo, os locais vivem os drogados em Nova Iorque e outros aspectos negativos do mundo.
A “síndrome do mundo cruel” nos faz questionar a própria possibilidade de pôr em prática a felicidade, fazendo a batalha parecer perdida antes de começarmos. A crença de que a natureza humana é essencialmente corrupta envenena com o pessimismo a nossa visão da existência, nos fazendo duvidar do próprio fundamento da busca da felicidade, ou seja, do potencial que cada ser humano tem para a perfeição. Recordemos que, segundo o budismo, o desabrochar desse potencial é a própria realização espiritual. Não se trata, portanto, de tentar purificar algo que é fundamentalmente mau – isso seria tão sem sentido quanto a tentativa de embranquecer um pedaço de carvão – mas sim de polir uma pepita de outro até que o seu brilho se revele.
QUANDO O MENSAGEIRO SE TORNA A MENSAGEM
Tudo isso é muito bonito em teoria, mas… e na prática, o que acontece? O psiquiatra americano Howard Cutler assinala, em A arte da felicidade: “Fiquei convencido de que o Dalai Lama aprendeu a viver com um sentimento de realização e um grau de serenidade como eu nunca vi em outras pessoas.” Podemos pensar que um exemplo como esse esteja fora do nosso alcance, mas a verdade é que, apesar disso parecer inacessível, o Dalai Lama com toda certeza não é um caso isolado. Eu mesmo passei trinta e cinco anos vivendo não só entre sábios e mestres espirituais, mas também na companhia de várias pessoas comuns cuja serenidade interior e alegria eram-lhes de grande ajuda para enfrentar a maior parte dos altos e baixos da vida. Essa pessoas não tinham mais nada a ganhar para si mesmas, e ficavam portanto, totalmente disponíveis para os outros.
Meu amigo Alan Wallace relata o caso de um eremita tibetano que ele conheceu bem e que lhe disse, sem qualquer pretensão (esse eremita vivia tranquilo em seu retiro, sem pedir nada a ninguém), que tinha vivido por vinte anos em “um estado de bem-aventurança contínua”
Não se trata aqui de nos maravilharmos com casos excepcionais ou proclamar a superioridade da abordagem budista sobre as outras escolas de pensamento. A principal lição que tiro disso é a seguinte: se os sábios podem ser felizes, então a felicidade deve ser possível. Esse é um ponto crucial, já que, com efeito, tantos acreditam que a felicidade verdadeira é impossível.
O sábio e a sabedoria que ele encarna não são um ideal inacessível, mas um exemplo vivo. E representam os pontos de referência de que precisamos, na nossa vida cotidiana, para compreender melhor aquilo em que podemos nos tornar. O ponto aqui não é que devemos rejeitar sem critério a vida que levamos, a nossa vida, mas que podemos nos beneficiar muito da sabedoria daqueles que elucidaram a dinâmica da felicidade e do sofrimento.
Felizmente, a ideia do homem sábio e feliz não é estranha nem ao mundo ocidental nem ao moderno, ainda que tenha se tornado uma mercadoria rara. Segundo o filósofo André Comte-Sponville: “O sábio não tem mais nada a esperar ou exigir. Como ele é inteiramente feliz, não precisa de nada. Como não precisa de nada, é inteiramente feliz” Qualidades assim como essas não caem do céu, e se a imagem do sábio anda um pouco fora de moda – pelo menos no Ocidente – , de quem é o erro? Somos responsáveis pela escassez que nos aflige. Não nascemos sábios, nós nos tornamos.
DO MONASTÉRIO AO ESCRITÓRIO
Você pode dizer: tudo isso é muito inspirador, mas o que apresenta de bom para minha vida diária com a família ou no meu emprego, já que passo a maior parte do meu tempo em circunstâncias muito diferentes daquelas que desfrutam os sábios e os eremitas? E, no entanto, o homem sábio representa uma nota de esperança. Ele nos mostra quilo que podemos nos tornar, pois trilhou um caminho aberto para todos, e cada passo dado nesse percurso é uma fonte de enriquecimento. São poucos os que podem tornar-se atletas olímpicos de dardo, mas qualquer um pode aprender a arremessa-lo e desenvolver alguma habilidade ao fazê-lo. Você não tem que ser um Andre Agassi para gostar muito de jogar tênis, ou um Louis Armstrong para deliciar-se tocando um instrumento musical. Em cada esfera da atividade humana há fontes de inspiração cuja perfeição, longe de nos desencorajar, nos aguçam o ânimo, oferecendo-nos uma admirável visão daquilo a que podemos aspirar. Não é exatamente por esse motivo que amamos e respeitamos os grandes artistas, os homens e as mulheres de convicção, os heróis?
A prática espiritual pode ser muito benéfica. O fato é que é possível conseguir um treinamento espiritual sério se reservamos, todos os dias, algum tempo para a meditação. Muito mais gente do que você imagina faz isso, sem deixar de conviver com sua família ou realizar seu trabalho de forma eficiente. As vantagens de abrir espaço para a meditação superam em muito os eventuais problemas para quem tem uma agenda muito apertada. É possível empreender uma transformação interior baseada na realidade do dia-a-dia.
Quando eu trabalhava no Instituto Pasteur e estava mergulhando na vida parisiense, os poucos momentos que reservava todos os dias para contemplação traziam-me benefícios enormes. Eles se prolongavam como um perfume nas atividades do dia e lhes davam um valor inteiramente novo. Por contemplação, aqui, quero dizer não um mero momento de relaxamento, mas voltar o olhar para dentro. É muito fecundo observar como os pensamentos surgem, e contemplar o estado de serenidade e simplicidade que está sempre presente por trás da trama que tecem, sejam eles sombrios, sejam otimistas. Isso não é tão complicado quanto parece a primeira vista. Basta que você dedique um pouco do seu tempo a esse exercício para sentir seu impacto e apreciar sua fertilidade.
Adquirindo gradualmente, por meio da experiência introspectiva, uma compreensão melhor de como nascem os pensamentos, aprendemos a nos proteger dos venenos mentais. Uma vez que encontremos um pouco mais de paz interior, é muito mais fácil assistir ao desabrochar da vida emocional e profissional. De forma semelhante, à medida que nos libertamos de inseguranças e medos interiores (que em geral estão ligados a um autocentramento excessivo e a uma compreensão muito limitada do funcionamento da mente), tendo menos a recear, tornamo-nos mais abertos aos outros e melhor instrumentalizados para enfrentar os altos e baixos da vida.
Nenhum Estado, nenhuma Igreja, nenhum déspota pode decretar que temos obrigação de desenvolver as qualidades humanas. Depende de nós fazer essa escolha.
Como dizem eloquentemente o geneticista-demógrafo Luca Cavalli-Sforza e seu filho Francesco:
A nossa liberdade interior não tem outros limites senão aqueles nós lhe impomos ou os que aceitamos que nos sejam impostos. E essa liberdade nos traz também um grande poder. Ela pode transformar o indivíduo, permitir que ele alimente as suas capacidades e viva cada momento em completa plenitude. Quando os indivíduos se transformam, fazendo com que a sua consciência chegue à maturidade, o mundo também se transforma, porque esse mundo é feito de indivíduos.
EXERCÍCIO: Como começar a meditar
Não importa quais sejam as circunstâncias externas que se apresentem na sua vida – sempre há, lá no fundo, bem dentro de você, um potencial pronto pra desabrochar. É um potencial de bondade amorosa, compaixão e paz interior. Tente entrar em contato com ele e vivenciá-lo – um potencial que está sempre presente, como uma pepita de ouro, no seu coração e na sua mente.
Esses recursos potenciais precisam ser desenvolvidos e amadurecidos para que você obtenha um sentimento mais estável de bem-estar. No entanto, esse processo não acontecerá por si. Você precisa desenvolvê-lo como uma habilidade. Para tanto, comece por conhecer melhor a sua própria mente. Este é o início da meditação.
Sente-se calmamente, numa postura confortável mas equilibrada. Qualquer que seja o modo de sentar-se – com as pernas cruzadas, numa almofada, ou mais convencionalmente, numa cadeira – tente manter as costas eretas, mas sem ficar tenso. Apóie as mãos nos joelhos, nas coxas ou colo. Mantenha o seu olhar leve e dirigido para o espaço à sua frente, e respire naturalmente. Observe a sua mente, o ir e vir dos seus pensamentos. No começo, pode parecer que, ao serem observados, os pensamentos, em vez de diminuírem, tomem conta da sua mente, como se viessem aos borbotões de uma cachoeira. Apenas observe-os, à medida que surgem. Deixe-os virem e irem embora, sem tentar impedi-los, mas também sem alimentá-los.
No final da prática, reserve alguns momentos para saborear o calor e a alegria que resultam de uma mente mais calma.