Espelho Mágico: A reforma interior e a ilusão do ”eu”.

Suponha que eu saia agora, escolha uma pessoa qualquer na rua, agarre sua mão e a acompanhe lado a lado com o objetivo de agradá-la. “O que você gostaria de comer? Curtiu aquele sapato? Você está bem hoje? Aceita um banho bem quente assim que voltar para casa?”. Suponha que eu não desgrude mais dessa pessoa, por meses, décadas, e que não faça nada além de me dedicar a montar uma vida na qual ela seja feliz.

“Quer namorar com ele?  Tudo bem, procuro outra empresa. Vamos comprar uma cama nova? E como está seu extrato bancário? Dá uma lida nesses textos, precisamos escolher um psicólogo.” Suponha que eu me interesse tanto pela vida dessa pessoa, que eu sinta raiva de quem a maltrata, ciúme quando seu namorado desvia o olhar, orgulho de seus feitos, inveja das alegrias alheias. Aceito, me identifico, concordo com tudo o que ela pensa e fala, como se essa pessoa fosse meu centro de gravidade. Brigo e a culpo, porém me sinto culpado junto. Pago por cirurgias plásticas assim que ela começa a se sentir feia. Eventualmente enxergo e beneficio outros seres também, mas só aqueles relacionados à pessoa que ela chama de meu ou minha alguma coisa.

Na verdade, tenho muita dificuldade em ajudar essa pessoa. A gente combina de cortar hábitos negativos, a gente se planeja, mas muita coisa fica parada. Não importa o quanto eu a entulhe de experiências, sempre acabamos frustrados, insatisfeitos. É um relacionamento que me exige muito! Mesmo assim, eu não consigo mais imaginar minha vida sem ela.

OK, enquanto você ficou imaginando toda essa história que contei há pouco, te pergunto agora: me achou maluco ou fixado? Ficou abismado, sem entender por que eu desperdiçaria todos os dias da minha vida correndo atrás dessa pessoa?

É absurdo considerar a ideia de me agarrar e me tornar serviçal de apenas uma pessoa, mas parece natural quando essa pessoa sou eu.
Seguir impulsos, emoções, crenças e visões de mundo de outra pessoa é escravidão… no entanto, o que muda quando essa outra pessoa é você?

Pois é assim, agarrados, que vivemos. Não somos nem um pouco diferentes. A boa notícia: dá para soltar as mãos dessa pessoa que nos acostumamos a mimar, olhar bem ao redor e direcionar nossa atenção e nosso tempo a estranhos, desconhecidos, incontáveis pessoas que nunca habitariam nosso mundo, mas cujas vidas estão aí, escancaradas, para a participação de todos. É quando minha vida deixa de ser minha que ela começa.

Texto de Gustavo Gitti, publicado na Revista Vida Simples. Para saber mais sobre o autor acesse: www.gustavogitti.com

 

O ego é como a sua sala

O ego é como a sua sala, uma sala com uma vista, com a temperatura e os odores e a música que você gosta. Você a quer da sua maneira. Você apenas gostaria de um pouco de paz, um pouco de felicidade, sabe, apenas para “dar um tempo”.

No entanto, quanto mais você pensar assim, tentando ajustar a vida para que ela sempre se adeque a você, quanto mais você temer outras pessoas, mais crescerá o que está fora de sua sala. Em vez de se tornar mais tranquilo, você começa a fechar as cortinas e a trancar a porta.

Quando você sai, a experiência se torna mais e mais desconfortável e conflitante. Você se torna mais hiper-sensível, mais temeroso, mais irritadiço do que nunca. Quanto mais você tentar ajustar as coisas à sua maneira, menos você se sentirá em casa.

Pema Chodron


Memória e imaginação criam a ilusão do Eu.

David Hume, filósofo inglês do séc. XVII.

Porque no fundo, como Hume afirma, quando se começa a introspecção, notamos um grupo de pensamentos e sentimentos e percepções e tudo isso, mas nunca nos apercebemos de uma substância à qual possamos chamar “o Eu”. […]

Hume compara a alma ao povo de uma nação (commonwealth), que retém a sua identidade não em virtude de uma substância básica permanente, mas que é composto de muitos elementos relacionados mas em permanente mutação.

Não-Euimages

Uma causa primária do sofrimento é a ilusão: nossa falta de habilidade — devido a uma sutil cegueira voluntária — para enxergar as coisas do modo como realmente são. Ao invés disso, vemos de uma maneira distorcida. O mundo é, na verdade, uma unidade dinâmica sem um único remendo, um único organismo vivo que está passando por mudanças constantemente. Nossas mentes, contudo, repartem-no em pedaços e partículas estáticas e isoladas, às quais tentamos física e mentalmente manipular.

Uma das criações mais queridas da mente é a idéia da pessoa e, mais perto ainda, de uma pessoa muito especial que cada um de nós chama de “eu”: uma personalidade ou ego separado e persistente. Há o “eu”. E há todo o resto. Isso significa conflito e dor, já que o “eu” não pode controlar aquela insondável vastidão contra a qual ele se ajusta. Obviamente, ele tentará, como uma pulga que se joga contra um elefante. Mas é um empreendimento em vão.

No centro dos ensinamentos de Buda está a doutrina do anatman, ou “não-eu”. Ela não nega que a noção de um “eu” funcione no cotidiano do mundo. De fato, precisamos de um ego sólido e estável para atuar na sociedade. Contudo, o “eu” não é real no sentido último. É um “nome”: uma construção fictícia que não guarda nenhuma correspondência com o que existe de verdade. Devido a essa separação todos os tipos de problemas surgem.

Uma vez que nossas mentes criaram a noção do “eu”, ele se torna nosso ponto de referência central. Nos apegamos e nos identificamos com ele totalmente. Tentamos atender ao que parecem ser o seus interesses, defendê-lo contra ameaças reais ou ilusórias. E procuramos auto-afirmação a todo momento: confirmação de que existimos e somos valorizados. O Nó Górdio das preocupações que surgem de tudo isso nos absorve exclusivamente, às vezes ao ponto da obsessão.

Este é, contudo, um estreito e apertado modo de ser. Embora não possamos ver quando estamos em meio às convoluções do ego, há algo em nós que é muito maior e profundo: um jeito de ser totalmente diferente.

John Snelling


Todo ser humano faz uma grande divisão do universo inteiro em duas metades e, para cada um de nós, praticamente, todo o interesse está em uma das metades. Mas todos traçamos a linha divisória em um lugar diferente. Quando eu disser que todos chamamos essas duas metades pelos mesmos nomes, e que esses nomes são respectivamente “eu” e “não-eu”, será compreendido o que quero dizer.

William James


 
TROCANDO O ‘EU’ PELOS OUTROS
Ou transformando-nos nos outros
INTRODUÇÃO AO BUDISMO Uma visão da doutrina budista através dos textos 
Este é um trabalho de seleção e ordenação de textos de vários autores e mestres budistas por Karma Tenpa Darghye.

 

Segundo o Budismo, para sermos felizes, temos de desenvolver um genuíno sentimento de amor pelos outros: temos de ser capazes de amá-los. Este pensamento, este sentimento – o de amor pelos outros – é a porta que abre as práticas Mahayanas. Todo sofrimento que experimentamos tem uma causa: e esta causa reside no pensamento egoísta, no pensamento de se preservar a si mesmo, de só pensar em si mesmo, de tirar vantagem para si, proveito para si mesmo em tudo e com tudo. Ou seja, só pensar em si mesmo, o tempo todo. O nosso real inimigo é esse tipo de auto-centramento. Ou seja, o pensamento que diz sempre: “eu podia ter conseguido isso para mim”, “isso me aconteceu”, “fizeram isso comigo”, “o que há de errado comigo?”, “por que isso só acontece comigo?” Esse é o tipo de pensamento que gera a infelicidade: o de apenas pensar em si mesmo.

Não se trata de desprezar-nos a nós mesmos, julgando-nos inferior: muito ao contrário, devemos desenvolver uma imensa autoconfiança na nossa capacidade de ir em socorro dos outros, de ser deles a salvação e o amparo.

Temos de realizar um treinamento constante para reverter nossa tendência atual e nos dedicarmos a pensar exclusivamente nos outros, esquecendo-nos de nós mesmos. Podemos começar pelas pequenas coisas, como anular nossas reações de resposta às agressividades do outro para conosco, quando o outro se encontra sob o poder dominador das aflições mentais. Em vez de reagir, em vez de gerar ódio e negatividade, quando atacados, devemos tentar anular-nos como pessoas, tornar-nos “vazios”, como sujeito zero, de tal forma que não haverá “alguém” ali para ser ofendido ou atacado, ou não haverá ninguém.

Isto a princípio parecerá muito difícil, como tudo que a princípio aprendemos, mas depois poderá nos parecer familiar. Podemos até sentir ódio, mas não demonstramos, mas anulamos imediatamente este ódio-resposta, de forma que aos pouco vamos nos tornando mestres de nós mesmos e de nossas reações. Todos os nossos problemas derivam de nós nos prezarmos demais, de pensarmos muito em nós mesmos, de estimarmo-nos demais a nós mesmos. Alimentamos este pensamento há muito tempo, há muitas vidas, que é o pensamento instintivo de preservação.

Todos os Buddhas praticaram este treinamento de trocar o “eu” pelos outros. Todos os Bodisattvas também realizaram isso. Eles continuam fazendo isto: o cuidado para com os outros. Incontáveis vidas o Bodisattva praticou assim, antes de se tornar um Buddha. E é muito importante ver e entusiasmar-se com os exemplos dos grandes Mestres que praticaram antes de nós: ou seja, não se importar com o que acontece ou acontecerá conosco mesmos, e sim com os demais. Não se dar muito valor… e ao mesmo tempo se considerar com a responsabilidade universal de assegurar o bem-estar do mundo. Este pensamento nos transforma num deus, nos transformará num Buddha.

Só depois de aumentarmos e fortalecermos o pensamento de preocupação com os outros e despreocupação conosco mesmo é que começamos a nos trocar pelos outros. Por exemplo, se dermos toda a nossa comida para os outros, sem nos importarmos conosco mesmo. Devemos começar pelas coisas mais simples, como ceder a vez numa fila, ou dar o seu lugar no ônibus. Devemos aprender a nos dedicar aos outros nos mínimos gestos, por exemplo, distribuindo sorriso e afeto genuíno. Mesmos os animais sentem quando nos aproximamos deles com afeto, com amor, com alegria de vê-lo, de encontrá-lo.

É pela análise, é pela observação racional e minuciosa que podemos nos convencer das imensas vantagens que afinal colhemos pela prática de anularmos os nossos interesses e dedicarmo-nos ao amor genuíno e verdadeiro aos demais. São imensos os frutos, espirituais e materiais.

O egoísmo, tentando engrandecer o “eu”, contraditoriamente é o principal inimigo do “eu”. Quem se sente só, quem se sente isolado, é devido ao egoísmo que se sente só e isolado. Quem se dedica aos demais, quem se dá aos demais, tem muitos amigos, atrai muitos amigos. A bondade é algo que se irradia e atinge os outros, e é algo que faz bem aos outros, que os outros sentem.

É por esta prática que se começa a desenvolver a chamada bodhicitta, ou mente de iluminação. A bodhicitta é o desejo de atingir o estado de Buddha pelo bem de todos os seres. A bodhicitta é amor e compaixão. Amor se define pelo desejo de que o outro seja feliz. Compaixão se define pelo desejo de que o outro se liberte do sofrimento.

Algumas pessoas têm muito valor, muito saber, mas não são reconhecidas porque não desenvolveram a bodhicitta. Porque são egoístas. E como são egoístas, acumulam negatividades, geram negatividades e atraem negatividades para si. As pessoas egoístas não têm muitos amigos. Ao contrário, têm inimigos. Assim, o egoísta não consegue ajuda e socorro quando precisa, quando encontram problemas.

A nossa sociedade moderna se fundamenta no contrário, se baseia no egoísmo, no narcisismo. Por isso há muito sofrimento. O egoísmo gera ódio, o ódio é a raiz da guerra. Ao contrário, a nossa mente deve voltar-se para a maioria, para fora. Pensar na maioria nos faz crescer, como heróis. Por isso os bodisattvas são conhecidos como heróis.

Pensar no mundo, na humanidade, sem ilusões, sem fantasia, mas começando pelos mais próximos – isto nos faz crescer, aumenta a nossa capacidade de amar e de nos libertar a nós mesmos e aos outros.

Por isso devemos nos concentrar em pensar constantemente nos outros e não no nosso egoístico eu. Um dos modos de treinamento é o esforço por desenvolver a equanimidade. Com equanimidade nós não fazemos diferença entre eu e você, entre amigos e inimigos, entre familiares e estranhos. Assim vemos que todos, como nós, querem a felicidade. E como nós também os outros buscam isso de diferentes maneiras. Nós também desenvolvemos a troca do eu pelos outros pelo raciocínio. Como nós, os outros também não querem o sofrimento, mas querem a felicidade.

É quando pensamos muito pouco em nós mesmos, e o tempo todo nos outros, que desenvolvemos a troca pelos outros, o trocar-se pelos outros.

O forte pensamento, o forte sentimento de beneficiar os outros, de que os outros estejam bem, é isso que se chama trocar a si pelos outros. É fazer sugir esse tipo de mente búdica, de mente de bodhicitta. Se o nosso trabalho, se a nossa mente for toda dirigida para o benefício dos outros nós seremos os principais benfeitores de nós mesmos e dos outros. Nós seremos incluídos.

Aquilo que plantamos, colhemos. Quando plantamos para os outros, a riqueza vem abundante, automaticamente.

Quando só pensamos nisto, minuto a minuto, nós nos trocamos pelos outros. É esse treinamento da mente a prática mais sagrada. Quando dominamos essa técnica conseguimos gerar compaixão espontânea, amor espontâneo.

A partir daí passamos a dar a nossa felicidade, e assumir o sofrimento dos outros. A compaixão é o insuportável sentimento de dor pelo sofrimento do outro. Os Budhas são feitos da matéria da compaixão. Lentamente progredimos da pequena para a grande compaixão. Praticando diariamente.

Como o nosso tempo é da era degenerada, só investe nesta prática os heróis, ou seja, temos de ter coragem e constância. O esforço é necessário para atingir a experiência. Fazemos a seguinte promessa: “Eu tomo a responsabilidade de liberar a todos esses seres do sofrimento”

Anotações de uma palestra de Geshe Lobsang Tenpa


O inferno e o céu, na verdade, não estão tão longe um do outro. Entender isso é um pouco capcioso, já que a experiência do céu é muito diferente da do inferno. Mas isso ganha sentido se considerarmos o exemplo de uma substância simples como a água. Para os humanos, a água é crucial para a manutenção da vida; para os peixes, é o seu meio ambiente; para os deuses mundanos, uma substância semelhante à ambrósia; para os fantasmas famintos, sangue e pus; para os seres dos infernos, lava derretida. Não é que a substância em si varie de um caso para outro, mas, sim, que se modifica a percepção e a experiência que seres diferentes têm dela. Da mesma forma que nossa visão se altera quando pomos óculos com graus diferentes, nossa experiência da realidade é inteiramente condicionada por nossa percepção, a qual é determinada pela extensão dos nossos enganos e fantasias.

Chagdud Tulku Rinpoche, no livro “Portões da Prática Budista“


Instruções que desanimam

Práticas budistas são técnicas que usamos para lidar com nosso auto-acariciamento habitual. Cada uma é projetada para atacar hábitos individuais até que a compulsão de se agarrar a um “eu” seja completamente erradicada. Então, embora uma prática possa parecer budista, se ela reforça o apego a si, na verdade é muito mais perigosa que qualquer prática abertamente não-budista.

O objetivo de um número excessivo de ensinamentos hoje em dia é fazer as pessoas “se sentirem bem”; alguns mestres budistas estão até começando a soar como apóstolos New Age. Suas palestras são inteiramente voltadas para validar as manifestações do ego e apoiar a “nobreza” de nossos sentimentos, coisas que não têm nada a ver com os ensinamentos que encontramos nas instruções essenciais.

Então, se você está preocupado apenas em sentir-se bem, será muito melhor receber uma massagem corporal completa ou ouvir alguma música enaltecedora, ou do tipo “viva a vida!”, do que receber ensinamentos do darma — que definitivamente não foram projetados para te animar. Pelo contrário, o darma foi tramado especificamente para expor suas falhas e fazer você sentir-se horrível.

Experimente ler “As palavras de meu professor perfeito”. Se achar depressivo, se as verdades desconcertantes de Patrul Rinpoche balançarem sua autoconfiança mundana, fique contente. Esse é um sinal de que finalmente você está começando a compreender algo sobre o darma.

Falando nisso, ficar deprimido não é sempre uma coisa ruim. É completamente compreensível alguém ficar deprimido e desanimado quando sua falha mais humilhante é exposta. Quem não se sentiria meio nu em um situação assim? Mas não é melhor estar dolorosamente consciente de uma falha do que totalmente inconsciente dela? Se uma falha em sua personalidade permanece escondida, como você pode fazer qualquer coisa a respeito?

Então, embora instruções essenciais possam temporariamente te deprimir, elas também vão ajudar a desenraizar suas deficiências ao trazê-las para a luz do dia. Isso é o que quer dizer a frase “o darma penetrando em sua mente”, ou como Kongtrul Rinpoche coloca: “a prática do darma dando frutos”, em vez das tais boas experiências que muitos de nós almejamos, como bons sonhos, sensações de bem-aventurança, êxtase, clarividência ou aperfeiçoamento da intuição.

Para Kongtrul Rinpoche, quando um praticante para de considerar uma grande coisa aquilo que costumava dar muito importância o tempo todo, esse é um sinal de que a prática do darma está dando frutos. Por exemplo, antes de se tornar um genuíno praticante, receber um elogio sobre seu cabelo iria te intoxicar de deleite, enquanto a mera sugestão de que ele estava um pouco menos que perfeito imediatamente te jogaria na espiral descendente da depressão.

Nem chegar a reagir em qualquer uma das situações é um sinal de que a prática está dando frutos e que você está se tornando um praticante autêntico do darma, e isso é muito melhor do que ter um milhão de elogios, sonhos encorajadores ou sensações de êxtase.

É um grande erro pressupor que praticar o darma irá nos ajudar a acalmar e a levar uma vida sem problemas; nada poderia estar mais distante da verdade. Darma não é uma terapia. É bem o oposto na verdade: o darma é algo sob medida para virar sua vida de cabeça para baixo — é justamente isso que você encomendou.

Então, quando sua vida sai completamente do planejado, por que você reclama? Se sua prática e sua vida não capotarem, esse é um sinal de que o que você está fazendo não está funcionando.

É isso que distingue o darma de métodos New Age envolvendo auras, relacionamentos, comunicação, bem-estar, a Criança Interior, ser um com o universo e abraçar árvores. Do ponto de vista do darma, tais interesses são os brinquedos de seres samsáricos — brinquedos que rapidamente nos entediam até a letargia.

– Dzongsar Khyentse


O autocentramento é essa praga que nos faz ignorar o outro e suas infinitas possibilidades. Quando nos concedemos o direito de criticar supostas falhas alheias, condenar seus comportamentos, julgar o que deveriam ou não estar fazendo, posso diagnosticar com alguma certeza que estamos vivendo um surto de autocentramento. O autocentramento que me ataca é uma fixação exagerada na minha própria paisagem, aliada a diferentes graus de indisposição de incluir o outro. E ainda saímos por aí querendo paz. Como seria possível viver uma experiência de paz? No mundo convencional dos seis reinos, cada um está defendendo o jogo da sua identidade e na melhor das hipóteses tentando moldar o outro ao conforto do seu próprio mundo. Em algum momento os interesses vão colidir, certo? Para experimentar a paz, precisamos deslocar nossa paisagem para fora deste mundo das identidades. Sentir compaixão e amor. Ceder. Aceitar.Lama Padma Samten

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A maioria das pessoas é condicionada pelas sociedades às quais pertencem a aplicar rótulos conceituais à cadeia em constante mutação dos fenômenos mentais e materiais. Por exemplo, quando olhamos atentamente para uma mesa, ainda a rotulamos, de modo instintivo, como uma mesa — apesar de termos visto que ela não é uma coisa única, mas algo composto de várias partes diferentes: uma parte superior, as pernas, as laterais, uma parte de trás e uma parte da frente. Na verdade, nenhuma dessas partes poderia ser identificada como a própria “mesa”. Na verdade, “mesa” foi só um nome que aplicamos a um fenômeno que surge e se dissolve rapidamente e que meramente produz a ilusão de algo definitivo ou absolutamente real.

Da mesma forma, a maioria de nós foi treinada para relacionar a palavra “eu” a uma cadeia de experiências que confirmam nosso senso pessoal de nós mesmos ou o que se convencionou chamar de “ego”. Sentimos que somos essa entidade singular e única que continua imutável ao longo do tempo. Em geral, tendemos a sentir que somos hoje a mesma pessoa que éramos ontem. Lembramo-nos de ser adolescentes e de ir à escola e tendemos a sentir que o “eu” que somos agora é o mesmo “eu” que ia à escola, cresceu, saiu de casa, conseguiu um emprego e assim por diante.Mas, se nos olharmos em um espelho, podemos ver que este “eu” mudou ao longo do tempo. Talvez possamos ver rugas agora que não existiam um ano atrás. Talvez agora estejamos usando óculos. Talvez tenhamos cabelos de cor diferente — ou, quem sabe, não nos tenha restado nenhum fio cabelo. Em um nível molecular básico, as células em nossos corpos estão sempre mudando, à medida que as células velhas morrem e novas células são geradas. Também podemos analisar esse senso de individualidade da mesma forma como olhamos para a mesa e ver que essa coisa que chamamos de “eu” na verdade é composta de várias partes diferentes. Ela tem pernas, braços, uma cabeça, mãos, pés e órgãos internos. Será que podemos identificar qualquer uma dessas partes separadas como definitivamente o “eu”?

Podemos dizer: “Bem, minha mão não sou eu, mas é minha mão.” Mas a mão é composta de cinco dedos, a palma e as costas da mão. Cada uma dessas partes pode ser desmembrada em partes ainda menores, como unhas, pele, ossos e assim por diante. Cada um desses componentes pode ser definido como nossa “mão”? Podemos seguir essa linha de investigação até os níveis atômico e subatômico e ainda nos deparar com o mesmo problema de sermos incapazes de encontrar alguma coisa que possamos definitivamente identificar como “eu”.Assim, independentemente de estarmos analisando objetos materiais, o tempo, nosso “eu” ou nossa mente, mais cedo ou mais tarde, atingiremos um ponto no qual perceberemos que a nossa análise não mais se sustenta. Nesse ponto, nossa busca por algo irredutível finalmente entra em colapso. Nesse momento, quando desistimos de procurar algo absoluto, experimentamos pela primeira vez a vacuidade, o infinito, a essência indefinível da realidade como ela é.

A medida que contemplamos a enorme variedade de fatores que devem se unir para produzir um senso específico de individualidade, nosso apego a esse “eu” que achamos que somos começa a se desfazer. Ficamos mais dispostos a abrir mão do desejo de controlar ou bloquear nossos pensamentos, emoções, sensações e assim por diante, e começamos a vívencíá-los sem dor ou culpa, absorvendo sua passagem como manifestações de um universo de possibilidades infinitas. Ao fazer isso, retomamos a perspectiva inocente que a maioria de nós conhecia quando criança. Nossos corações se abrem para os outros, como flores na primavera. Tornamo-nos ouvintes melhores, ficamos mais conscientes de tudo o que se passa a nosso redor e somos capazes de reagir com mais espontaneidade e adequação a situações que costumavam nos preocupar ou nos confundir. Aos poucos, talvez em um nível tão sutil que podemos nem reparar que está acontecendo, vemo-nos despertando para um estado de espírito mais livre, límpido e afetuoso, com o qual jamais sonharíamos.

Mas é necessário ter muita paciência para aprender a ver essas possibilidades. Na verdade, é necessário ter muita paciência para ver. – ‘

‘A Alegria de Viver – Descobrindo o Segredo da Felicidade”


 Espelho mágico: Reforma Interior 

Num sentido espiritual, não é muito efetivo tentar mudar o mundo externo para evitar nosso sofrimento. Por exemplo, se nos olhamos num espelho e vemos um rosto sujo, poderíamos pensar “Oh, que rosto imundo!” e rapidamente pegar um pano e esfregar o espelho. Esta não é a forma de nos livrarmos da face suja que vemos.

Uma vez tendo realizado que o que está refletido é nossa própria face, podemos mudar a aparência no espelho simplesmente lavando o rosto. Não obteremos resultados lavando o sofrimento de nossas circunstâncias mas, reconhecendo nossa mente como a causa original, podemos nos modificar.

Chagdud Tulku Rinpoche, em “Vida e Morte no Budismo Tibetano“


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B. Alan Wallace

Quem você é realmente?

Do ponto de vista psicológico moderno, destruir o inimigo da centralidade em si pode parecer uma fragmentação radical da individualidade. A noção de que alguns processos mentais (a generosidade, a abertura e a alegria) são aceitáveis, ao passo que outros (o principal sendo “o grande demônio”, a centralização em si) devem ser exterminados, parece uma antítese do ponto de vista psicológico moderno da aceitação de si mesmo e da integração. Entretanto, o tema psicológico moderno da aceitação de si mesmo global e a atitude guerreira budista tibetana da aniquilação completa do inimigo podem não ser tão diferentes quanto parecem a princípio. Por exemplo, quando você fica gripado, nunca pensa: “Esta gripe é parte de mim. Devo me abrir para ela!”. O vírus da gripe não é você, é um elemento estranho que invadiu seu corpo e está lhe fazendo mal. Similarmente, as aflições mentais, todas elas, não são constituintes inatos da sua mente. Habitual, sim; inato, não. Você pode se aceitar e reconhecer que existem invasores de mente, assim como existem vírus que invadem o corpo. Quando você ponderar sobre isto, considere: quem você é realmente? Além das suas aflições mentais, da sua história pessoal, das virtudes e dos talentos que adquiriu, do seu corpo e do seu comportamento — nenhum dos quais é você —, que “você” resta disto? Antes de abraçar sinceramente a ideia de se aceitar como você é, seria uma boa idéia descobrir quem este “você” é.

“Budismo com Atitude”, cap. 3v

Comentarios:

comments

  • alan

    Muito bom, obrigado pelo texto.

  • Fantastico post. Gracias por publicarlo…Espero màs…

    Saludos